Breve história da arte do arranjo (Post 1)
A soma das partes
Ao longo da história do jazz, foi sempre dado um papel fulcral ao “arranjo”, essa obscura arte que permite que uma composição seja adaptada e reinterpretada por diferentes grupos de instrumentos ou vozes.
Com o surgimento de diversas orquestras no nosso país, de reconhecido mérito, torna-se importante realçar a importância do arranjador, por vezes herói anónimo de uma saga com cerca de 100 anos. Desde as orquestras de swing até ao mundo da música comercial, o seu ofício tem sido tão versátil quanto abrangente.
“Rapsody in Blue” é possivelmente a peça mais conhecida do repertório sinfónico norte-americano, cuja composição atribuímos de imediato a George Gershwin, compositor incontornável do século XX. Embora ninguém questione a autoria da peça, poucos sabem que Gershwin apenas lhe concebeu a alma, delegando a articulação das suas partes mais “mecânicas” ao arranjador Ferde Grofé, que concluiu a orquestração da obra com grande urgência.
Os tempos eram de concorrência feroz e a encomenda do director Paul Whitman arriscava-se a ser suplantada pela ambição do seu arqui-rival, Vicente Lopez - a ambição de criar um concerto semelhantemente arrojado, ou seja, de concepção “experimental”. A ameaça de Vicente Lopez, filho de imigrantes portugueses, era para ser levada a sério, pois tratava-se de um dos líderes de banda mais populares da década de 1940, e ainda o locutor de um popular programa de rádio que começava todos os dias com o seu emblemático genérico: «Lopez speaking!»
A situação era tanto mais agravada dado nas fileiras da sua orquestra constarem os nomes de algumas promissoras estrelas do jazz e da música de dança. Entre estes, Artie Shaw, os irmãos Dorsey, Xavier Cugat e Glenn Miller foram os que mais se destacaram nas décadas seguintes.
Múltiplas sinergias
Apesar de ‘Rapsody in Blue’ não ser jazz, no sentido estrito do termo, o episódio serve para ilustrar o destaque dado ao compositor e ao maestro, relegando para segundo plano a figura do, neste caso, orquestrador. No passado, essa hierarquização de papéis poder-se-á ter justificado, mas na maioria dos casos a complexa e subtil técnica do arranjo atingiu as proporções de grande arte.
A título de exemplo, se considerarmos a estreita ligação entre Duke Ellington e Billy Strayhorn, o seu mais estreito colaborador e autor de composições inesquecíveis como “Lush Life” e “Chelsea Bridge”, apercebemo-nos de como composição, arranjo e interpretação se fundiram num corpo indissociável de sinergias múltiplas. Citando o contrabaixista e pedagogo inglês Graham Collier, nas páginas do seu livro “Jazz”, «estes dois homens trabalharam de forma muito estreita, por vezes ao ponto de ser quase impossível saber, em determinada composição, quem escreveu o quê».
Por seu lado, Strayhorn relatava que os arranjos e as orquestrações de Ellington podiam ser alterados de imediato, caso este verificasse num ensaio, ou numa actuação, que o músico e a correspondente parte não tinham o mesmo carácter. Ou seja, Ellington escrevia tomando em consideração as qualidades específicas de cada membro da sua orquestra.
Regra geral, não se trabalhava assim, sobretudo na área da música comercial, onde o “arranjador” escrevia para músicos de estúdio profissionais que não conhecia, nem tão pouco viria a conhecer.
De Dixie a Ascension
No dixieland primitivo e mesmo hoje em dia, contava-se apenas com simples arranjos na concepção da música para pequenos grupos, memorizados pelos improvisadores e denominados como “head arrangements”. Por vezes estes eram criados, ‘in loco’, pelos próprios músicos. No caso das grandes orquestras, a interpretação de passagens complexas seria impensável nestes moldes, e dai a necessidade de uma estrutura orientadora que criasse eventualmente uma introdução à peça, a desenvolvesse e a concluísse.
É certo que em “Ascension”, uma das obras mais ambiciosas de John Coltrane, este músico contou com 11 dos improvisadores mais brilhantes da cena nova-iorquina de 1965, permitindo-se apenas orientá-los por via de algumas ideias, apontadas num pequeno pedaço de papel durante o decorrer da própria sessão de estúdio. Segundo o testemunho de John Tchicai, esses parcos apontamentos melódicos serviram como o único “arranjo” dado por Coltrane à pequena orquestra.
O objectivo dessas linhas era apenas servir como ponto de partida, foco central e pivô para o improviso colectivo. Começava uma nova era em que a própria forma podia ser criada em tempo real pelos grandes agrupamentos. Recuando cerca de três décadas, em pleno auge da era do swing, a abordagem era quase diametralmente oposta e cada orquestra dependia da destreza do seu arranjador, obtendo do seu ouvido e da sua caneta o som que a caracterizava, destacando-se das restantes formações, em assanhado despique pela popularidade.
O arranjador passou assim a constituir a “impressão digital” sonora de cada agrupamento. No caso da orquestra de Fletcher Henderson, foi Don Redman, o seu arranjador (tio de Dewey Redman e tio-avô de Joshua Redman), que lhe imprimiu o cunho específico, diferenciando-a das orquestras de Duke Ellington, Count Basie e Earl Hines.
Origens e um “rolo de gelatina”
A história começa muito mais cedo, na viragem do século XIX para o XX, quando um crioulo de nome Ferdinand Joseph LaMothe, desafiando os padrões da moral cristã, mentia à avó, com quem vivia, fingindo trabalhar à noite como guarda de uma fábrica de pipas. Em realidade, a sua profissão era a de pianista num bordel de esquina, onde era conhecido por Jelly Roll Morton, alcunha declaradamente elusiva à genitália que circundava por essa verdadeira instituição do bem-viver.
Apanhado em flagrante delito pela matriarca, o jovem foi obrigado a fazer-se à vida. Abandonando o conforto do lar, acompanhou de forma errante os espectáculos de minstrel e vaudeville pelo Sul dos Estados Unidos. Foi durante este périplo que se forjou um dos grandes compositores de jazz e possivelmente o seu primeiro arranjador.
Em 1915, Jelly Roll passava para a pauta a herança de uma longa tradição oral, inscrita agora na sua composição “Jelly Roll Blues”. Apesar desse enorme contributo para o património da escrita musical, Morton teve de penar ainda mais alguns anos, até que, em 1926, a editora Victor lhe deu a oportunidade de ver os seus arranjos interpretados por um grupo de músicos à altura do seu conteúdo formal. Nasciam assim os Jelly Roll Morton & His Red Hot Peppers.
Infelizmente, com a queda da bolsa norte-americana e o colapso da indústria fonográfica, três anos mais tarde o músico foi vítima dos efeitos da Grande Depressão e as suas composições passaram a ser interpretadas pelas bandas de Fletcher Henderson e Benny Goodman, entre outras, sem por isso receber quaisquer direitos de autor. Entrávamos em pleno swing, onde a arte do arranjador se tornou ferramenta imprescindível para a disciplina e para o som das grandes formações de baile.
Vozes bem-dispostas
Num “head arrangement” típico para um quarteto de dixieland, para além da forte marcação rítmica binária o tema era frequentemente interpretado pelo trompete no registo agudo, com o saxofone enfatizando a harmonia por debaixo daquele, o trombone dobrando a linha do baixo e o clarinete reforçando a harmonia por cima da linha melódica, em animado contraponto.
Quando Fletcher Henderson decidiu começar a escrever os seus próprios arranjos, como o famoso “King Porter Stomp”, em meados dos anos 1930, o singelo quarteto de dixieland já tinha sido largamente ampliado. A nova orquestra podia incluir cinco saxofones, três trompetes, três trombones e uma secção rítmica composta por bateria, chocalho, piano e guitarra. A linha melódica era cantada por uma voz.
Fletcher não incluía nenhuma harmonia particularmente sofísticada e tão pouco usava efeitos técnicos particularmente engenhosos. Mas, segundo Van Alexander, arranjador de Chick Webb, autor do êxito “A-Tisket, A-Tasket”, de Ella Fitzgerald, «a forma distinta dos arranjos de Fletcher Henderson prendia-se com o seu uso de figuras sincopadas e o seu estilo de fraseado, que acabou por criar o estilo “Henderson”». Foi o auge das grandes orquestras de swing.
Em continuação…
Para saber mais
www.allaboutjazz.com/php/article.php?id=40936
http://jazztimes.com/articles/24395-behind-the-music-the-jazz-arrangers
Discografia
"The Jelly Roll Morton Centennial: His Complete Victor Recordings" (Bluebird RCA, 1990)
Leonard Bernstein / Columbia Symphony Orchestra: "Gershwin: Rhapsody in Blue / An American in Paris" (Sony Classical Essential Classics, 2006)