O beat do bebop (Parte 2)
Tudo nu com Charlie Parker
No segundo tomo de uma série de textos sobre a memória do bebop, Abdul Moimême conta como se encontraram as gravações da “jam” nudista do mais importante saxofonista da história do jazz. Já não se vive a música assim...
Os termos beatnik, bebop, artes plásticas, agricultura de subsistência e física quântica não invocam, à partida, qualquer relação, o que não é de estranhar. No entanto, ao tropeçarmos no nome de Jirayr Zorthian, um excêntrico artista plástico arménio, esta correlação improvável torna-se subitamente verosímil. Para a compreendermos somos obrigados a regressar ao ano de 1952, a um rancho californiano entalado entre o reboliço de Hollywood e a placidez zen do sopé das montanhas: San Gabriel. Foi aqui, no número 3990 da North Fair Oaks Avenue, que este filho do Império Otomano se instalou com a mulher milionária e a família, tornando-se prontamente num anfitrião de renome em toda a redondeza.
A pacatez da pequena vila de Altadena nunca mais voltou a ser a mesma e o movimento beatnik da grande Los Angeles ganhava dois novos mecenas. Assim, artes plásticas, “happenings”, concertos e a proto-agricultura de subsistência consubstanciavam-se num nova sinergia; uma sinergia em comunhão com o movimento beatnik e o bebop.
E quanto à física quântica? De facto, as ondas sísmicas das experiências atómicas que o exército efectuava nos desertos do Nevada e do Novo México chegavam incessantemente pelo lado do Mojave. Trespassavam o Grand Canyon, abanavam a vida nocturna de Las Vegas, mas nada fazia suspeitar que, vindo da aridez intransponível do deserto, chegasse às portas do rancho Zorthian um jovem físico nuclear e futuro Nobel, disfarçado de entusiástico tocador de bongos. Como músico tinha jeito, mas dava para perceber que se tratava de um destemido autodidacta, talvez algo convencido. Tratava-se, nada mais, nada menos do próprio Richard Feynman, percussionista em regime de “part-time”, futuro tocador de “frigideira” numa escola de samba do Rio de Janeiro.
Festa bacante
No livro autobiográfico sobre as suas errâncias, “Está a Brincar, Sr. Feynman!”, o físico conta-nos que, na noite em que partilhou o palco em casa de Zorthian com outros músicos, a algazarra foi tão empolgante que o artista plástico tatuou o corpo seminu com espuma de barbear e adornou as orelhas com vermelhas cerejas, sacudindo-se violentamente ao ritmo do som. A pose era bacante, assim como a festa… como todas as festas de Zorthian!
Mas esta seria apenas a ponta do icebergue e os relatos que vinham do rancho ainda reverberam nos dias de hoje. Não é difícil imaginar que os irmãos Joel e Ethan Coen se tenham inspirado neste microcosmos para criar a personagem Jackie Treehorn (interpretada por Ben Gazzara), no filme “O Grande Lebowski”. Treehorn, o magnate do submundo da cinematografia pornográfica, anfitrião de debochadas festas nocturnas. Vejamos!
Durante a passada época balnear, perspicazmente denominada, na cultura anglo-saxónica, por “silly season”, um amigo chamou-me à atenção para uma notícia a condizer com o espírito estival: o título dizia “Toda a Gente se Desnudou com Charlie 'Bird' Parker na Festa Mais Selvagem de L.A.”. Com um título destes quem não ia prestar atenção, sobretudo se aparece na L.A.Weekly, revista tablóide da cena “in” da cidade dos anjos caídos. Segundo a crónica, Andy Warhol e Charlie Parker passaram pelo rancho, convertido em infame comuna artística da contracultura, sob o auspício de Zorthian, o seu sacerdote-mor. Concretamente, sabemos que, na madrugada de 16 de Julho, Charlie Parker chegava ao local, muito depois da sua restante banda, composta por alguns dos pesos pesados do bebop da Costa Oeste.
Suplicaram que tocasse, vacilou caprichosamente, como bom “junkie” que era, e resistiu mais um pouco, até que uma solícita jovem propôs executar um “striptease”, com todos os matadouros, caso Parker o pedisse com gentileza. As notas de “Embraceable You" foram responsáveis pela subsequente cena voluptuosa, que o pudor não nos permite aqui relatar. A questão é que a banda sonora dessa noite desvairada ficou registada para a posteridade em fita magnética, graças aos gravadores de bobina caseiros que abundavam nos lares americanos na época do Pós-Guerra. Acompanhado por Don Wilkerson no saxofone tenor, Frank Morgan no alto (que tinha apenas 19 anos), Amos Trice no piano, David Bryant no contrabaixo e Larance Marable na bateria, Parker foi gravado a tocar com a nata de L.A. fora dos circuitos comerciais.
Surgia assim uma gravação singular, devido ao contexto em que foi realizada, uma festa descomprometida e privada, contribuindo para a conturbada história do bebop. Por azar, as fitas desapareceram durante muitas e longas décadas, sendo nesta altura que entra na história a figura de John Burton, activista dos direitos cívicos e politico californiano concorrente de Schwarzenegger. Obcecado pelo Charlie Parker desde os tempos da faculdade, Burton montou uma pequena editora discográfica em paralelo com a sua carreira profissional, dedicando parte do seu tempo à procura de material inédito de Bird, juntando-se assim à hermética comunidade de “Bird detectives”, denominação dada àqueles que, em nome da obra parkeriana, decidiram dar corpo à personagem de Raymond Chandler, transformando-se nos Philip Marlowe do bebop.
O tipo de personagem que passa tudo a pente fino, à procura da mais ínfima relíquia, ou melhor ainda, de alguma mala esquecida, repleta de fitas magnéticas em registo “bootleg”. Caves húmidas e escuras, sótãos poeirentos, foi tudo passado a pente fino, com as palavras de Chandler a reverberar-lhes na alma: «Não se pode engendrar uma boa história, ela tem que ser mesmo destilada.»
Assim, grão a grão, os “Bird detectives” vasculharam um pouco por todo o lado. Escusado dizer que, quase 60 anos após a morte de Parker, tornou-se imensamente difícil descobrir material inédito do músico. Mas Burton nunca desistiu e ainda na era pré-Internet escreveu a um notável “Bird detective”, Norman Saks, a pedir-lhe conselho.
Uma grande vitória
A reputação de Saks consolidara-se com a descoberta das gravações que Bob Redcross fizera de Bird a tocar saxofone tenor num quarto de hotel de Chicago, em 1943. Um episódio raro, pois Bird só foi gravado a tocar tenor em “Collectors' Items”, de Miles Davis, onde emparceirou pela primeira e, possivelmente, a única vez, com Sonny Rollins. Para além dos aspectos alquímicos de uma boa história, o detective está sempre à espera de uma boa dica. A chave indispensável para a resolução do mistério. Foi o que sucedeu a Burton, um coleccionador com apenas 20 anos. Norman Saks deu-lhe uma grande pista: «De cada vez que ouvires uma banda de jazz, pergunta aos músicos por gravações de Bird não editadas», escreveu-lhe o veterano.
A estratégia apenas valeu a Burton uma única vitória, mas foi uma grande vitória, uma vitória num dia particularmente invulgar. No Outono de 1989 o pai de Burton faleceu e, como a sua mulher era do corpo administrativo do Museu de Arte Contemporânea, a cerimónia em sua memória incluiu um grupo de jazz a tocar ao vivo no espaço do museu. Burton dirigiu-se a um dos músicos e colocou-lhe a pergunta: «Por acaso sabe de alguma gravação de Bird?» «Por acaso sei»,retorquiu o músico. «Vá falar com Zorthian, ele tem uma.» «Zorthian?» «Sim… Ele está ali mesmo!»
Finalmente, destilava-se uma história digna de ser contada e a coincidência, ingrediente fundamental em qualquer ficção “pulp”, materializara o arménio no local certo à hora certa. Graças a esse acaso, Burton confirmou na hora que Zorthian possuía a gravação e que estava disposto a partilhá-la com o mundo! As fitas foram guardadas pelo advogado de Zorthian, que as tinha transferido para cassetes (as saudosas cassetes!) com a ajuda da University of South California, onde se encontravam arquivadas. No dia seguinte, o advogado forneceu-lhe cópias do acervo e Burton correu para casa a fim de ouvir o que nelas estivera adormecido durante décadas.
Ficou positivamente surpreendido, embora a qualidade sonora não fosse a melhor. Telefonou de imediato a Norman Saks, que por sua vez lhe pediu que as tocasse pelo auscultador do telefone. «Coloquei o telefone perto da coluna e ele ficou a ouvir durante meia hora», relatou Burton. Ambos confirmaram que se tratava, inquestionavelmente, de Bird a tocar no contexto descontraído de uma festa. Também reconheceram duas das faixas, que ambos já tinham ouvido noutro “bootleg” e que agora podiam atribuir à festa no rancho de Zorthian. Mas seis das faixas eram completamente novas! No seu primeiro ano como detective parkeriano, Burton tinha feito uma descoberta de peso. Destilava-se assim um grande final. Posteriormente, e ao longo dos anos, Burton reuniu-se inúmeras vezes com Zorthian, extraindo todos os pormenores que rodearam a festa e os seus convidados. Vejamos alguns dos pormenores relatados…
Em quinteto no Tiffany Club
A 29 de Maio de 1952, o quinteto de Charlie Parker arrancara com um ciclo de concertos de duas semanas e meia no The Tiffany Club de Los Angeles. O clube situava-se no número 3260 da 8th Street, perto da esquina com a Normandie, na zona de L.A. que estava na moda no início da década de 1950. A poucos quarteirões localizava-se o Haig Club e o Coconut Grove funcionava no Ambassador Hotel, mas era na 8th Street que acontecia a maior parte da acção, entre o 400 Club, o 331 e o Agua Caliente, todos eles distanciados por um pequeno percurso a pé, considerando os padrões de L.A. Nesta fase da sua carreira, Parker estava associado a Norman Granz, tendo recentemente gravado com a orquestra de Joe Lippman e aparecido em público como destacada estrela, apenas acompanhado por trios ou quartetos, compostos por músicos locais.
O Tiffany era um reputado clube onde Billie Holiday já se tinha apresentado, acompanhada pelo jovem saxofonista tenor Wardell Gray. Os concertos na sua sala eram eventos bem divulgados, que não escapavam às lentes de fotógrafos como Bob Willoughby, William Claxton e Bob Douglas, que os documentaram com algumas das imagens mais emblemáticas da época. Uma das circunstâncias que mais se destacaram durante a residência de Parker no clube foi a sua associação com um então desconhecido jovem trompetista chamado Chet Baker. Nessa altura, Baker estava nos começos da sua seminal colaboração com o saxofonista barítono e arranjador Gerry Mulligan, que se deslocara para Oeste à procura de trabalho bem remunerado e, ironicamente, uma vida livre da droga. Nas segundas-feiras à noite as “jam sessions” eram com Mulligan no The Haig, que se situava na Wilshire Boulevard.
Chet Baker teve assim a oportunidade de iniciar o seu prolífico percurso profissional com dois dos grandes mestres, oportunidade valiosa, sobretudo considerando que não sabia ler uma nota: tocava exclusivamente de ouvido! Foi nesta altura que gravou o seu primeiro álbum com Bird, no contexto das sessões ao vivo no The Trade Winds, a 16 de Junho, outro clube da zona, exactamente um mês após a “jam” de Bird na casa de Zorthian. Trata-se de “Chet & Bird”, o primeiro disco de Baker. Mas essa é outra história.
Tal como Miles, o fraseado espaçoso e “cool” de Baker complementava a angulosidade dos densos arabescos de Parker. Se o saxofonista estava no início do declínio que culminou com a sua morte três anos mais tarde, em 1952 Chet Baker encontrava-se em plena ascensão. Aparentemente, os “Trade Winds” vinham cruzados! Pouco tempo depois, Baker era convidado por Gerry Mulligan a formar o seu famoso quarteto “sem piano”, à mercê dos ventos do “cool” que sopravam desde Nova Iorque.
Um mergulho na piscina
Por que razão é que Chet Baker, um desconhecido trompetista local, foi escolhido, entre tantos outros trompetistas, para partilhar o palco com Bird? Donn Trenner, o pianista das sessões no The Tiffany Club explica: «Recebi um telefonema da Associated Booking Corporation. Cliff Aaronson ligou-me a perguntar se eu podia juntar uma banda para tocar com Bird. Obviamente disse que sim!» Relativamente aos boatos de que Parker teve de adaptar o seu estilo às limitações técnicas de Chet Baker conta: «Não me lembro de nada disso. É possível, mas embora Chet fosse um músico algo inexperiente, era maravilhoso, tocava muito bem.»
Sobre Parker, adianta Trenner: «Recordo que ele adorava comida mexicana. Nos intervalos do Tiffany Club levávamo-lo a um restaurante mexicano, onde ele se enchia de comida. Bebia muito e despejava tudo muito depressa. Mas era encantador; uma pessoa muito acessível. Nunca houve qualquer tensão durante as actuações.»
Foi numa destas noites, no início de Julho, que Zorthian se deslocou à cidade para assistir a uma festa com uma amiga escultora, Julie McDonald, amiga de Charlie Parker. Como a festa se tornara numa chatice, para os padrões de Zorthian e da amiga, decidiram abandoná-la. À saída, encontraram Charlie Parker bêbado, a jogar pingue-pongue. Zorthian sugeriu que se divertiriam muito mais se fossem até ao seu rancho, nadar na piscina. No espírito beatnik de então, nadaram nus e Parker divertiu-se tanto que decidiu retribuir a hospitalidade prometendo regressar para tocar com a sua banda. Escolheram o dia 14 de Julho, por ser uma segunda-feira, dia de descanso de Parker, pois Chet Baker tinha de tocar no The Haig com Mulligan. A hora estipulada foi as 21h30. Conhecendo a fama de Parker e da corte que o rodeava, Zorthian estipulou: «Quero certificar-me de que não trazes aqui todos os teus amigos “agarrados”, certo?»
Segundo o relato de John Burton, os primeiros a aparecer na festa foram os “junkies” amigos de Parker. O espírito beat sobrepunha-se à palavra de honra, e os “junkies” foram impiedosamente responsabilizados pelo súbito surto de nudez que assolou a festa de Zorthian naquela madrugada de 15 de Julho de 1952. A fita atesta o frenesim que se instalou a partir das 2 da manhã, entre gritos e apitos, e a verdade é que a memória da maioria dos convidados entrevistados por Burton vaporiza-se depois da cena de “striptease”. Felizmente para a posteridade, o irmão de Julie McDonald manteve a lucidez suficiente para concluir a gravação. A festa de Zorthian atingiu tais proporções de lenda na comunidade do jazz que, anos mais tarde, Thelonious Monk perguntou a este, em tom invejoso, «Espera aí, tu é que foste o gajo que deu aquela festa nudista?»
Epílogo
Em 1990, a Rare Live Recordings lançou uma cópia não autorizada pela dupla Zorthian / Burton que, aparentemente, desvirtua a qualidade, já em si questionável, do original. Segundo John Burton, o próprio está a preparar uma nova versão a partir das bobinas originais. Ficamos à espera dos resultados, assim como da história do rapaz que trabalhava nos armazéns da Macy’s, que contarei na parte III de “O beat do bebop”…