Lua Cheia #3
O maior bode de todos os tempos
Oriundo de São Paulo, Rodrigo Brandão é performer de spoken word e está ligado à música desde sempre. Nesta colaboração com a jazz.pt, Brandão faz uma ponte com a música brasileira e outras referências pessoais do jazz. Depois de artigos dedicados a Naná Vasconcelos e Brian Jackson, nesta terceira edição da série “Lua Cheia” Rodrigo Brandão conversa com Guilherme Granado (Hurtmold, São Paulo Underground e GOATFACE!).
Guilherme Granado é um cidadão do mundo nascido, criado e baseado na Zona Oeste de São Paulo / SP. Nome fundamental da cena mais à esquerda da cidade, é um instrumentista forjado nas ruas, com filosofia punk, guiado pela intuição, sentimento, ouvido e nada mais. Um espírito de skater que faz tricks e manobras partitura afora, e que, seguindo suas próprias regras, alcançou os palcos de grandes festivais a nível internacional, juntamente com nomes icónicos das mais variadas searas e eras.
Integrante fundador do Hurtmold, verdadeira instituição da música criativa brasileira nos últimos vinte anos, e também do conceituado São Paulo Underground, junto com Rob Mazurek, ele ainda participa de mais uma penca de projetos e formações. Dentre esses, ganha destaque em tempo recente o GOATFACE!, que já soma um par de lançamentos, tanto no Brasil quanto nos EUA. É uma honra encher essa “Lua” com a voz e a verve de um herói da resistência.
1. Goat em inglês designa o bode, mas GOAT é sigla para Greatest Of All Times. Sempre penso nisso quando leio a alcunha GOATFACE!. Me fala um pouco sobre essa relação.
«Na verdade, a alusão à palavra BODE vem de antes desse uso de GOAT popular atualmente. Desde meu primeiro disco solo, como Bodes & Elefantes essa imagem é constante nos meus projetos. Eu até acho engraçado o que a sigla significa hoje em dia, e às vezes penso que algumas pessoas podem achar que eu uso a palavra nesse sentido. Não é o caso. Minha autoestima não me deixaria fazer isso...»
2. Ainda acerca do nome do time, existe também uma menção explícita ao mais consistente de todos os samurais líricos do Wu Tang. Quanto, e como, o Clan influência o som do grupo?
«O Wu Tang Clan é uma influência enorme e uma coisa formativa para mim. A primeira leva de discos, entre “Enter The 36 Chambers” e “Wu Tang Forever”, literalmente mudou a minha vida. Em quase tudo que eu faço também existe alguma referência, nem que seja bem subtil, ao Wu Tang. Nada mais justo do que o nome desse projeto juntar o Bode com o Wu.»
3. Que outras forças informam, e formam, a face do bode?
«Coltrane, Fugazi, Sun Ra, Art Ensemble of Chicago, Pharoah Sanders, Don Cherry, Clipse, Moondog, Terry Ryley, Baden Powell, Lungfish, Native Tongues, DJ Premier, Isotope 217, todos os nossos amigos e companheiros que produzem música de coração tanto com a gente como em outras configurações, a música brasileira que permeia o dia a dia das nossas vidas e mais tantas outras coisas que estão injustiçadas por não estarem nessa lista.»
4. O mundo acabou de receber, quase que simultaneamente, dois lançamentos do GOATFACE!. Me guia, por favor, através dessa história.
«O primeiro lançamento, “Akhenaten Bazucas”, é fruto de duas sessões gravadas no estudio fitacrepe em São Paulo. Eu e o Leandro Archela usámos o tempo do início da pandemia para mixar e editar o material todo, depois disso eu adicionei mais alguns elementos, encontrei e costurei uma história que podia ser contada com o material e o disco nasceu. O segundo, “Bordas Líquidas” veio de um show no meio da pandemia, sem público, para o SESC, em São Paulo. Não nos víamos nem tínhamos tocado juntos há mais de um ano, e o momento foi capturado. Achei que a energia dessa história toda era interessante e, de novo, editei e mixei o material bruto. Trato esse lançamento mais como um registro desse momento tão confuso que o mundo inteiro viveu.»
5. Quanto à origem, formação & dinâmica da banda, parece a mim que tem espírito coletivo, mas é capitaneado por você, tanto em termos estéticos, quanto na identidade visual, passando pela linguagem, e explodindo nas composições…
«Sim, eu diria que até certo ponto é um projeto idealizado por mim. A formação, o nome, a parte gráfica e as ideias iniciais partiram de mim. Mas eu gosto da ideia de bandas serem organismos vivos, onde todo mundo tem força igual. E acho que quando estamos tocando é isso que acontece, e quero que aconteça cada vez mais.»
6. Como essa banda se encaixa no panorama dos projetos que você participa?
«Difícil apontar. Todos os projetos que eu faço parte são especiais para mim. Acho que o GOATFACE! tem uma estética bem especifica no meio deles todos, portanto tem um lugar único e especial dentro disso.»
7. Sei que você é discreto a ponto de beirar a auto-sabotagem, então cabe a mim um pouquinho de justiça poética aqui: dentre as tantas parcerias que você desenvolveu com mestres da música universal, quero saber quais as que mais te marcaram, e como.
«Rob Mazurek obviamente, por ser um grande amigo, inspiração, parceiro e muitas vezes professor e mentor. Muitas coisas aconteceram na minha vida, que eu nunca imaginaria que poderiam acontecer como músico, e como fã de música. Tocar com Pharoah Sanders, Naná Vasconcelos, Roscoe Mitchell, Paulo Santos, Brian Jackson, Marshall Allen, BIll Dixon, entre tantos outros. sem contar as parcerias com contemporâneos como Prefuse 73, Mike Ladd, Marcelo Camelo, você Brandão, Jorge du Peixe, todos do universo da Exploding Star Orchestra e da cena de Chicago, e mais inúmeras figuras especiais, inspiradoras e acolhedoras. Tenho sorte.»
8. O que precisa ser dito e ninguém fala?
«Tentar se entender geralmente é mais gratificante e construtivo do que brigar, procurar vilões, apontar dedos e excluir.»
9. Qual foi a última vez, até agora, que um disco mudou a sua vida?
«Essa é difícil. Eu acho que toda música (arte, na verdade) que acaba te impactando, mesmo que de uma maneira menor, acaba mudando a sua vida de alguma maneira. Não sei se consigo apontar exatamente um disco que mudou minha vida pela última vez, até porque algumas coisas que ouvi nos últimos anos podem se demonstrar enormes daqui a um tempo e com perspetiva...»
10. E sua ligação com Portugal? Entendo que já existe um histórico significativo...
«Lisboa é uma das minhas cidades favoritas. Já fui para Portugal muitas vezes para tocar e tive muitos momentos especiais e memoráveis pelo país. Lisboa é uma das poucas cidades do mundo que eu sinto saudade e quero voltar pouco tempo depois de ter ido embora. A luz, a comida, as pessoas, o ritmo da cidade. Tudo muito querido para mim.»