Marcello Magliocchi, 21 de Abril de 2013

Fascinado por Portugal

texto Paulo Chagas

Marcello Magliocchi é um veterano do jazz criativo de Itália, tendo tocado com muitas das principais personalidades internacionais deste idioma musical, como Mal Waldron, John Tchicai, Peter Kowald, Steve Potts, Kent Carter, Joelle Léandre, Roger Turner, Carlos “Zíngaro” e William Parker. Se hoje é um músico de referência da improvisação transalpina, tomou a decisão de trocar a cidade pelo campo, onde dedica uma boa parte do seu tempo à sua outra actividade artística, a escultura.

Nos últimos anos edita o seu trabalho, sobretudo, na etiqueta discográfica que ele próprio criou, a Setola di Maiali, com tiragens reduzidas que são disputadas por quem segue fielmente o seu trajecto.

Volta e meia, parte em digressão, e recentemente as suas viagens têm-no trazido a Portugal, onde mantém um grupo co-liderado com o violinista suíço Matthias Boss, o Improvisers Consort, que integra músicos como o acima referido “Zíngaro”, Paulo Curado, Paulo Chagas (o autor desta entrevista), João Pedro Viegas e Abdul Moimême. Por vezes, associa-se-lhes também um segundo baterista, João Pais Filipe.

 

Vives no campo. O que te fez tomar essa opção e o que é que isso contribui para a tua criação musical?
Vivo na zona das colinas de Monopoli (perto de Bari) há cerca de 10 anos. Antes disso, morei em Bari, a cidade onde nasci. Vir para aqui foi a escolha natural de quem quer viver em liberdade, usufruindo dos ritmos humanos da vida, tentando aprender com o que nos é dado observar.

Aqui posso ter uma visão natural das coisas, entre toda a diversidade que a natureza me oferece. Tudo isso tem contribuído positivamente para a música que faço. Aqui tenho liberdade para a tocar e praticar em qualquer momento, além de que posso escutar o som do silêncio, fora do caos e do egocentrismo da vida da cidade - que tem também os seus sons e emoções, mas que já não é compatível com a minha exigência de liberdade... e de cores...

 

O que nos podes dizer sobre a tua carreira de escultor? Como é que as tuas duas facetas artísticas se articulam?

Na realidade, tudo isso evoluiu da minha forma de tocar e da minha abordagem ao som. Do mesmo modo, tem-se transformado também o “set” que uso nas minhas performances. No fundo, o que construo são esculturas de som. O primeiro trabalho que realizei foi em 1987, “Byo Faccia”, com M. Volpe e M. De Liso, apresentado no Al Time Zone Fest, estimulou-me para ir ao encontro do som, das possíveis aplicações e usos do som, através da combinação aleatória dos ruídos do vento e da chuva. Bem como através da aplicação de novas tecnologias para o transformar.

Na verdade, prefiro o som da natureza pura, das madeiras, dos metais, como por exemplo o bronze usado para o “Ring Mantra Dan” (que criei em 2002 com o maestro T. de Gennaro).  A inspiração desses objectos, ou o desejo de os fazer assim, nasce da observação em silêncio, à qual se seguem o estímulo da imaginação, a prática e a curiosidade.

Momentos mágicos

 

A tua discografia é vasta e inclui colaborações com nomes muito importantes do jazz e da improvisação internacional. Como é que te sentes em relação a isso?

Sinto a necessidade de documentar estes belos encontros. Sinto-me muito sortudo por poder partilhar a música e a amizade com todos eles, por poder partilhar esses momentos criativos que me ajudam a evoluir – espero eu – e a mostrar um diferente modo de ouvir, ver, tocar, etc. Tive a oportunidade de trabalhar com muitos artistas, de facto. Foram momentos mágicos, nos quais a verdadeira magia acontecia quando a consciência se desenvolvia também.

 

Como é que a música surgiu na tua vida? Que diferentes fases se podem identificar na tua carreira musical?

Quando fiz 12 anos de idade o meu pai comprou uma guitarra. Ele não sabia tocar, mas a música era importante para ele, de tal forma que, pouco tempo depois, até comprou um daqueles primeiros teclados electrónicos. Ainda na adolescência, lembro-me de ver na televisão um programa de jazz que me fascinava e me permitiu conhecer nomes como Max Roach e Errol Garner.

Nessa altura, o meu pai comprou a crédito – com prestações de mil liras por mês – uma bateria. Comecei então a experimentá-la, aprendendo, sobretudo, a partir do muito que ouvia e seguindo os conselhos dos "anciãos". Os meus amigos com mais dinheiro compravam discos, pelo que tive oportunidade de escutar muita coisa. Foi assim que conheci praticamente todo o rock dos anos 1960 e 70 (Genesis e Led Zeppelin, por exemplo) e descobri Coltrane, Monk, Pierre Courbois, Tony Oxley…

Na minha fase inicial como baterista, no início da década de 70, não tinha ainda muita inclinação para a prática da improvisação. Era mais um estudo autodidacta, embora metódico, compensado pela prática e pela escuta. No fundo, o estudo e a prática do jazz, da música clássica, da música contemporânea, sempre com muito respeito e paixão. Comecei então a ser convidado para tocar em clubes de jazz, gravar em estúdio e na altura até fui a Espanha com um grupo que participou num festival de fantoches, a tocar música improvisada.

Enfim, sou um autodidacta curioso e tudo isso levou-me até agora a experiências fantásticas, como por exemplo trabalhar com uma orquestra sinfónica, ensembles de improvisadores, bandas sonoras de filmes e muito mais. Tive até uma curta passagem pelo ensino, mas que abandonei.

O som do carpinteiro

 

O que é que costumas ouvir actualmente?

Gosto de ouvir as obras dos jovens improvisadores, jazz – mas não o actual –, a música contemporânea, toda a música que acompanha o seu tempo real, o som do carpinteiro ou o som de um motor... o meu som possível.

 

Sei que também tens sido um dinâmico organizador de concertos e festivais e um editor discográfico. Quais são as forças que te fazem mover nesse sentido e onde pretendes chegar?

Dá-me muito gozo realizar e envolver-me em reuniões entre diferentes pessoas ligadas à música, para poder proporcionar um confronto e um crescimento recíproco. Esta é a única motivação. A curiosidade é um poderoso incentivo que pode superar todas as dificuldades. Tudo isto sem qualquer apoio político ou de outras forças que podem limitar a minha liberdade de acção.

A falta de dinheiro para realizar essas coisas é um falso problema. O verdadeiro problema é a falta de maturidade nas escolhas e nos confrontos. Isso sim, continua a ser um grande problema (não meu) que encontro na música de muitos artistas. Fazer música, produzir eventos e tudo o mais, não deve ser um facto hedonista, mas sim uma necessidade existencial. Tal como as nossas necessidades primárias, para as quais a humanidade tem sempre feito grandes coisas – para sua satisfação –, mas também provocado tantos danos.

 

Nos últimos tempos estiveste por duas vezes em Portugal. Qual é a tua motivação para cá vir e tocar com músicos portugueses?

Portugal é para mim uma descoberta maravilhosa. Está no meu coração. A cor, o som, a luz e o calor humano… Espero voltar novamente. Os músicos que conheci foram uma consequência de ter tocado com Carlos “Zíngaro” em Itália. Em Portugal tive a sorte de conhecer pessoas disponíveis para o confronto e a partilha, curiosas, competentes e verdadeiramente humanas na sua abordagem à vida.

Acho que a confiança que existe entre os músicos portugueses que conheço é a verdadeira força, capaz de criar uma verdadeira comunidade, algo nem sempre possível noutros lugares. Provavelmente é um traço de carácter dos portugueses – não sei exactamente...

Em Portugal é claro que há muitas dificuldades, mas a força do carácter e o espírito de entreajuda são muito grandes. Todos os artistas com quem já trabalhei até agora em Portugal deixaram certamente uma marca em mim.

 

O que podemos esperar de ti como músico no futuro próximo? Em que projectos estás a trabalhar e o que tens em mente?

Estive agora em digressão por Itália com o grande contrabaixista japonês Maresuke Okamoto. Toquei também com Evan Parker aqui em Itália. Neste momento tenho diversas edições discográficas em preparação - gravações recentes do Improvisers Consort, dos Three Uncles e várias novas parcerias.

Em suma, estou ansioso. Espero ver o horizonte e, se possível, o que está para lá. Sempre curioso e com a certeza do tempo que tenho disponível, entre as mil dificuldades que existem nesta sociedade global, mas que nem sempre parecem visíveis.

 

Para saber mais

http://musicians.allaboutjazz.com/musician.php?id=18937#.UXOsI7V00vk

https://www.facebook.com/marcello.magliocchi/info

 

Discografia seleccionada

Paulo Chagas / Matthias Boss / Maresuke Okamoto / Marcello Magliocchi: “Instant Chamber Music” (Setola di Maiali, 2012)

Improvisers Consort: “Lisboa Sessions” (Setola di Maiali, 2012)

Gianni Lenoci / Beñat Achiary / Carlos “Zíngaro” / Joelle Léandre / Marcello Magliocchi: “Panji” (Setola di Maiali, 2010)

Gianni Lenoci / Bruno Angeloni / Juan Castañon / Marcello Magliocchi: “The Spell and the City” (Setola di Maiali, 2010)

Steve Potts / Gianni Lenoci / Marcello Magliocchi: “Kid Steps” (Setola di Maiali, 2010)

Gianni Lenoci / Kent Carter / Marcello Magliocchi: “Freefall” (Setola di Maiali, 2010)

Gianni Lenoci / William Parker / Vittorino Curci / Marcello Magliocchi: “Serving an Evolving Humanity” (Setola di Maiali, 2010)

Stefano Mangia / Gianni Lenoci / Pasquale Gadaleta / Marcello Magliocchi: “Painting on Wood” (Leo Records, 2009)

John Tchicai & Open Orchestra: “Spiritual Man” (Terre Sommerse, 2009)

Carlos “Zíngaro” / Gianni Lenoci / Marcello Magliocchi: “Serendipity” (Amirani Records, 2009)

Gianni Lenoci: “Sextant” (Ambiances Magnétiques, 2006)

Gianna Montecalvo: “Steve’s Mirror” (Soul Note, 2005)

Meridiana Multijazz Orchestra: “Terronia” (Enja, 2005)

Agenda

10 Junho

Imersão / Improvisação

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