Grande e orquestral
O contrabaixista italo-norueguês Per Zanussi está de regresso ao nosso país para um punhado de concertos com os Zanussi 5, o seu projeto mais longevo, que se completa com os saxofones de Kjetil Møster, Eirik Hegdal e Jørgen Mathisen e a bateria de Gard Nilssen. Coimbra (Jazz ao Centro, em três sessões no Salão Brazil, a 30 e 31 de Maio e 1 de Junho) e Lisboa (Culturgest, a 2 de Junho) serão os palcos para uma das mais interessantes formações de jazz provenientes do Norte da Europa.
Com o Trespass Trio e Joe McPhee deste excelentes concertos em Portugal no ano passado. Agora, estás de regresso com os Zanussi 5 para concertos em Lisboa e em Coimbra. O que pode o público português esperar destes concertos? Há álbum novo a caminho?
Estes concertos vão funcionar da mesma forma dos do ano passado com o Trespass/McPhee: tocamos três noites em Coimbra mais uma em Lisboa e estes concertos serão gravados pela Clean Feed. Depois escolheremos o melhor material para uma edição daqui a um ano. O disco do Trespass/McPhee será lançado durante o festival em Coimbra este ano e o dos Zanussi 5 no ano que vem.
Vens regularmente a Portugal. Gostas do país? O que conheces do panorama português do jazz e da música improvisada?
Gosto muito de Portugal, das pessoas, da música e do país em geral. Parece-me que vocês têm uma cena muito boa para esta música e também um público muito bom. Os públicos parecem-me ser muito abertos à boa música, e são possivelmente menos “blasé” do que em outros países europeus. Terá isto alguma coisa a ver com uma história ligeiramente menor da música improvisada em Portugal do que, por exemplo, na Alemanha? Também as pessoas por detrás da cena parecem ser amigas e cooperarem bem, o que não é o caso em toda a parte...
No passado colaboraste com Ernesto Rodrigues, Rodrigo Amado, Pedro Sousa, Gabriel Ferrandini… Como foram estas experiências? Consideras a possibilidade de voltar a trabalhar com músicos portugueses?
As minhas experiências têm sido muito boas. Acabei de falar com o Rodrigo e com o Gabriel para voltarmos a fazer alguma coisa em breve. Penso que os músicos são, na generalidade, muito bons e cooperam com os festivais e os organizadores e com as pessoas fantásticas da Clean Feed. Tudo está no sítio para um grande desenvolvimento da cena.
Tens sangue italiano e norueguês a correr nas tuas veias. Como vês a presente tensão política e económica entres países do Norte e do Sul da Europa? Algumas pessoas no Norte pensam que trabalham e pagam para um Sul “preguiçoso”… Isto não é perigoso? Que opinião tens sobre esta situação?
Apesar da Noruega não fazer parte da União Europeia, estou certo de que este sentimento estaria presente no meu país se fizéssemos. O que vejo, como meio italiano, é que deve ser muito frustrante fazer parte dos 50 por cento da população que não elegeu políticos criminosos (como Berlusconi) que deram cabo da economia de Itália
O melhor de dois mundos
Voltando à música… Parece que gostas de expandir e reduzir as formações que lideras: Zanussi 5, Zanussi 13… Trabalhas regularmente em trio… Afinal que tipo de contexto musical preferes? A intimidade de um grupo pequeno ou o poder e a força de um ensemble maior? Isto apesar das tuas formações mais alargadas soarem por vezes muito tranquilas... Olhando para o teu trabalho passado assumo que gostes de explorar todas as possibilidades…
Gosto de explorar as diferentes possibilidades, sim. O som de um ensemble alargado é fantástico, mas a interação íntima de um trio é também algo que adoro. E, claro, não seria possível trabalhar sempre com grandes formações, até devido a questões organizativas. O quinteto é um formato com o qual sinto poder obter o melhor dos dois mundos: quer a comunicação de um pequeno grupo, quer uma certa paleta de sons para a qual escrever. Tenho tentado que o quinteto (Zanussi 5) soe tão grande e orquestral quanto possível com os meios que tenho.
Sendo um grupo totalmente acústico, os Zanussi 5 são o teu projeto mais duradouro. Em Portugal costumamos dizer que «no meio é que está a virtude»…
Desde o principio, há cerca de 11 anos, que o conceito tem sido ter um veículo para escrever e tocar música que reflita as minhas influências num dado momento. Aproximei-me da música contemporânea, do rock progressivo, da música exótica, do free jazz, da música de filmes, do afrobeat, etc., em períodos diferentes. Tento misturar tudo de um modo que dê um sabor original às nossas bases musicais, que são o jazz e a improvisação.
Utilizo os três saxofones porque eles se misturam bem em temos sonoros e por terem muito poucas limitações técnicas, por isso posso escrever mais ou menos tudo o que quero. Eles têm também uma rica paleta de sons e um grande leque de dinâmicas. Gosto da liberdade musical (e do lado prático também!) de não ter um instrumento harmónico. Mais espaço para o contrabaixo.
Ouvimos muitas frases feitas sobre o chamado “jazz escandinavo” ou o “jazz norueguês” (frequentemente associadas a um certo “som ECM”) com a utilização de adjetivos como “frio”, “atmosférico”, “etéreo”... Mas isto está muito longe da realidade musical dessa parte da Europa. O que está a acontecer agora na Noruega? Sentes que existe alguma espécie de fosso entre as gerações anteriores (Garbarek, Andersen,…) e as mais recentes ou, pelo contrário, há uma continuidade neste fluxo?
Acho que existe essa continuidade, apesar de tudo se mover em ondas. Às vezes há alguns conflitos, mas é tudo resolvido à medida que são desenvolvidas novas ideias. Garbarek e outros foram, no início, inspirados pelo free e pelo jazz tradicional, tendo depois gradualmente (e constantemente) levado a sua música para a frente inspirados por outras sonoridades. O objetivo era encontrarem as suas vozes próprias.
Claro que a ECM foi também muito importante em todo este processo. A sua música influenciou muito um conjunto de músicos mais jovens nos anos 1980. A certa altura (talvez no início da década seguinte) houve uma reação ao som ECM dominante e mais músicos jovens começaram a obter reconhecimento por tocarem música mais energética influenciada por Coltrane, pelo free jazz, pela improv, etc.. Ao mesmo tempo, estes músicos foram também inspirados por outros mais velhos como, por exemplo, Garbarek, e por muitas outras coisas, por isso não foi necessariamente um movimento nostálgico.
A filosofia principal de “seres tu próprio” (como os mais velhos fizeram) ainda guia a música. O melhor na cena de Oslo é que tem havido muita cooperação entre os diferentes estilos, por isso diria que a abertura é um traço importante.
Podes dizer-nos alguns nomes noruegueses de que provavelmente nunca ouvimos falar e que precisemos de conhecer?
Gisle Johansen [saxofonista e compositor], Klaus Holm [saxofonista, clarinetista, manipulador de eletrónica], Dag Erik Knedal Andersen [baterista], Kristoffer Alberts [saxofonista], André Roligheten [saxofonista], Stine Motland [vocalista e compositor], Ståle Solberg [baterista].
Ritmo, melodia e energia
A tua música, ao contrário da definição anterior, é quente, vibrante e colorida. Como é o teu processo pessoal de criação musical?
Durante os próximos três anos estarei a desenvolver um projeto de investigação artística sobre composição para improvisadores, pelo que imagino que as minhas formas de compor irão desenvolver-se muito. Isto através do “Programa Norueguês de Investigação Artística”.
E tens ideia por onde pretendes seguir?
Estou a tentar encontrar a forma de como compor para músicos improvisadores de modo a que eles se sintam livres para utilizarem o seu arsenal de técnicas e expressões pessoais enquanto eu, ao mesmo tempo, tenho algum grau de input onde é necessário. Também quero ver como é possível conservar uma certa identidade composicional com música improvisada. Tenho estado a fazer isto há uns tempos com Zanussi 13/ Zanussi 5 e outros projetos, mas agora quero ir mais fundo nesta questão.
Estou a utilizar textos, técnicas espetrais, gráficos e outras estratégias da música contemporânea. Para além disto irei estudar conceitos da música tradicional coreana para perceber se consigo encontrar alguma inspiração aí. Irei à Coreia em junho para estudar a música local de forma mais intensa.
Isto significa que todos os teus processos criativos poderão vir a mudar num futuro mais ou menos próximo...
Significa que a minha música irá provavelmente mudar muito, mas espero manter o meu interesse no ritmo, na melodia e na energia. É importante para mim desenvolver sempre a minha música e penso que reconhecerás que os três discos dos Zanussi 5 (e os dos Zanussi 13 e da Trondheim Jazz Orchestra) são bastante diferentes, ainda que o compositor seja o mesmo.
Começarei a trabalhar em duos, com músicos como Martin Kuchen, Ole Henrik Moe, Eivind Lønning, Sofia Jernberg, Stine Motland, Rolf-Erik Nystrøm, Morten Engebretsen, Dag Erik Knedal Andersen, entre outros. Formarei então novos pequenos ensembles e no final um grupo maior. Desta forma, espero conseguir desenvolver a música e também conhecer intimamente os músicos. Assim estarei apto a utilizar as suas forças nas minhas composições e estratégias.
Começaste muito cedo a tocar vários instrumentos, mas, alguns anos depois, decidiste tocar baixo em bandas de rock. O que te levou a fazer esta escolha? Nunca pensaste em ser guitarrista ou pianista, por exemplo? Porquê o baixo?
Eu já tocava outros instrumentos, como guitarra e trombone, quando entrei num grupo de rock com alguns amigos. Já havia guitarras suficientes, mas não havia baixo, por isso comprei um e comecei a tocar. Ao princípio fui influenciado por Pastorius e outros que tocam baixo elétrico, mas então ouvi pessoas como Dave Holland, Gary Peacock, etc., através de um amigo que gostava de jazz, e decidi começar a tocar contrabaixo. Esta foi também uma boa escola de música. Tocar baixo foi bastante natural para mim desde cedo, acho.
Ainda tocas baixo elétrico com regularidade?
Tenho tocado baixo elétrico em algumas ocasiões ao longo dos últimos anos. Por exemplo, com Kjetil Møster e Per Oddvar Johansen no trio Action Jazz, com a Circulasione Totale Orchestra de Frode Gjerstad e com um grupo de afrobeat em Oslo.
Tens memória de como e quando tiveste os primeiros contactos sérios com o jazz e a música improvisada? Qual era o ambiente musical em que vivias na juventude?
Em Stavanger também estive exposto ao free jazz e à improvisação bastante cedo, escutando pessoas como Frode Gjerstad (às vezes com John Stevens) e Didrik Ingvaldsen, o que foi muito importante.
Fundaste em 1996 o trio de jazz eletrónico Wibutee, quando ainda eras estudante no Conservatório de Trondheim. Qual é agora a tua ligação à eletrónica? Usa-la como um “instrumento orgânico” ou estás à procura de diferentes “inputs” para a tua música?
Depois da vaga de música eletrónica na Noruega, senti que a improvisação com eletrónica era um processo muito mais lento e menos dinâmico do que com instrumentos acústicos. Mais tarde toquei com pessoas da eletrónica que são excelentes improvisadores, como, por exemplo Lasse Marhaug. Tenho usado recentemente guitarra elétrica processada na minha música (Stian Westerhus nos Zanussi 13), e também um pouco de eletrónica eu próprio, recentemente também. Compus alguma música electrónica para espetáculos de dança e teatro. Julgo que tudo depende da situação. Estou muito aberto às eletrónicas hoje em dia.
A propósito das tuas composições para dança e teatro. Gostas de explorar as diferenças e as complementaridades entre as diversas formas de arte?
Gosto. Compor para dança e teatro (como também, ocasionalmente, para vídeo e cinema) dá-me um interessante “input”: a forma musical é algumas vezes ditada pelas formas da outra arte, por isso tens de fazer música que seja diferente da que farias se estivesses no teu próprio contexto. Por vezes utilizo conceitos não musicais para gerar formas quando componho a minha própria música.
Quão longe ou quão perto estás da chamada “tradição do jazz”? Esta recorrente discussão significa alguma coisa para ti? Estás, por exemplo, interessado em pegar em alguns elementos do passado e reciclá-los? Escutando a tua música é, pelo menos para mim, fácil de detetar muito claramente alguns traços de diversos períodos da história do jazz…
Tive algumas experiências com a tradição do jazz e gosto de ouvir jazz mais antigo, assim como estilos mais recentes. Penso nunca ter estado interessado em emular um certo estilo, mas antes tocar (e brincar com) qualquer coisa que me atraia. Claro que a minha preocupação principal tem sido quase sempre fazer algo que seja fresco e interessante, independentemente do estilo.
A lei do prazer
A tua música exibe um significativo grau de complexidade e as tuas composições nunca são óbvias, mas, por outro lado, têm um grande sentido de espontaneidade e alegria. Como geres todos estes ingredientes de maneira coerente?
Debussy disse: «Não há teoria. Só tens de ouvir. O prazer é a lei.» Penso que esta citação é bastante verdadeira quando lidas com material mais complexo. Gosto que seja musical e que pareça espontâneo, mesmo que o sistema possa ser complexo. Gosto do ritmo e da melodia e ao mesmo tempo gosto de sons e de música mais modernista. Não é necessariamente um problema misturar estas coisas, desde que soe bem.
Já que estamos numa de citações, Charles Mingus disse que «fazer do simples complicado é banal; fazer do complicado simples, incrivelmente simples, é criatividade»…
A clareza é importante, mesmo em música complexa.
Haverá um denominador comum na tua música, independentemente do contexto, alguma espécie de “marca Zanussi”? Ouves o teu trabalho anterior para, por exemplo, procurares padrões, observando o quadro geral?
É difícil de dizer. Nunca analisei muito a minha própria obra no passado (embora o faça mais hoje em dia), mas penso que, nos Zanussi 5, um traço comum tem sido uma certa forma de criar melodias. Reconheço isto como algo que faço desde a juventude. Aparte isto, misturar estilos, “ostinati”, “grooves”, “voicings”, etc.
Qual é o teu conceito de “improvisação”? Pensas que improvisação e composição sejam os dois lados de uma mesma moeda ou são dimensões diferentes?
Penso que alguns aspetos da música são mais fáceis de alcançar através da improvisação e outros mais fáceis de atingir via composição. A composição pode ajudar a criar uma identidade comum em várias peças, dar uma forma clara a texturas complexas numa base mais controlável, evitar lugares comuns, etc.. Claro que isto também é possível de alcançar através da improvisação, dependendo dos músicos. A improvisação tem por vezes a possibilidade de resultar em música muito natural, interessante e surpreendente, que seria muito difícil de compor. Esta grande música é feita num instante e não em meses de trabalho.
Tens feito alguns concertos a solo. Está nos teus planos fazer um disco a solo? É uma possibilidade que te atrai?
Tenho tocado recentemente a solo em alguns concertos e sim, sou atraído pela ideia. Gosto de ser surpreendido e inspirado por outros músicos e isto é um pouco mais difícil de atingir quando estás a trabalhar apenas contigo próprio. Penso que tocar a solo é muito bom para desenvolveres a tua própria linguagem. Acho muito útil levar coisas que toco a solo para situações em que toco acompanhado. Pode também ser bom só teres que te preocupar contigo próprio em chegar a horas aos concertos (risos).
Que música costumas ouvir?
Ouço música muito variada, de brasileira, via jazz, até música improvisada e contemporânea. O último disco que comprei foi uma gravação de música coreana, que tem sido uma grande inspiração para o meu trabalho atual. Como disse, vou para a Coreia em junho para estudar esta música. Ouço música para efeitos de investigação, para inspiração e por prazer.
Em que outros projetos estás agora envolvido? Há ideias a fervilhar quanto a novos projetos, novas colaborações? O que nos trarás nos próximos tempos?
O projeto de investigação artística em que estarei envolvido durante os próximos três anos, de que já falei, irá, espero, desenvolver a minha música em novas direções. Espero sair deste processo com um ensemblealargado, alguns trios/quartetos e duos, assim como alguma música a solo. Isto será feito com alguns músicos com quem já trabalhei antes e com outros que são novos para mim. Veremos quão longe consigo chegar com este trabalho em apenas três anos, mas estou certo de que sairá alguma música nova e interessante.
Para saber mais
Discografia selecionada
Zanussi 13: “Live” (Moserobie, 2012)
Trespass Trio: “Bruder Beda” (Clean Feed, 2012)
Trondheim Jazz Orchestra & Per Zanussi: “Morning Songs” (MNJ Records, 2011)
Zanussi 5: “Ghost Dance" (Moserobie, 2010)
Trespass Trio: “... Was There to Illuminate the Night Sky…” (Clean Feed, 2009)
Zanussi 5: “Alborado” (Moserobie, 2007)
Zanussi 5: “Zanussi Five” (Moserobie, 2005)