Free the fuckin jazz!
O trio The Thing volta no próximo dia 7 ao Jazz em Agosto, nove anos depois de ter tocado no festival da Fundação Gulbenkian. Desta feita com quatro acrescentos ao formato original composto por Mats Gustafsson, Ingebrigt Haker Flaten e Paal Nilssen-Love: são eles o trompetista Peter Evans, o trombonista Mats Äleklint, o guitarrista Terrie Ex e o teclista Jim Baker. Nomes que, à partida, indicam o que aí vem: uma explosão free entre o jazz e o rock (sim, Terrie Ex pertence à banda punk anarquista The Ex)…
A jazz.pt conversou com Gustafsson para saber ao que ele anda, o que pensa, o que lhe interessa, o que o preocupa, o que está a fazer. O saxofonista sueco não é homem de muitas palavras, mas o que diz vai ao centro das questões… Para ler já de seguida.
Sei que és um aficionado do vinil. Porque é que achas que os discos são objectos importantes da nossa cultura? Conheces a balada, muito triste, de Billy Bragg, “Tears of My Tracks”, sobre o dia em que vendeu os seus LPs?
O vinil é tudo. Um pouco de vinil por dia mantém os médicos à distância. Reflecte tudo, é feito de “grooves” de amor e espiritualidade.
Quando a minha mulher descobriu que tenho vários exemplares do mesmo disco (como um exemplar argentino do “Joe’s Garage” de Zappa, porque a capa está em Espanhol), olhou para mim como a mulher olhou para o marido no filme “Shining”, ao descobrir que ele escrevia a mesma frase vezes sem conta. Acha que o coleccionismo de vinil é uma adição?
O vinilolismo é para ser tomado seriamente. Não existe cura, mas eu também não quero ser curado. Qualquer impressão que foi feita do teu álbum favorito deve ser incluída na tua colecção.
Podes indicar-me cinco discos de jazz e cinco discos de rock que estejam ligados a momentos especiais da tua vida? Aqueles de que abusaste mesmo as espirais (“stressed their spirals”)?
Stressed their spirals? Oh, isso dá um grande título. Posso usar? Os meus cinco discos estão sempre a mudar. É por isso que as listas são inúteis (ou úteis, dependendo do ponto de vista). Neste momento estou focado nos EPs de Tommy Potter na Metronome, nos discos de transcrições radiofónicas de Dollar Brand e dos Blue Notes, numa gravação de Cecil Taylor feita no Jazz Lab da American Record Society e no “Spiritual Unity” de Albert Ayler.
Sem ser na área do jazz apontaria “India”, de Gal Costa, uns EPs do Little Richard, o “Phileman Arthur and the Dung on Silence”, o “Wrong” dos No Means No e o “Gravest Hits” dos Cramps…
A indústria está a tentar banir a partilha de música, apesar de sempre o termos feito em bobina, cassete, etc. Qual é a tua perspectiva sobre esta questão ligada à Internet?
A única coisa que eu partilho é vinil…
Como foi a tua formação musical? Tiveste lições privadas? Frequentaste escolas? Privaste com músicos? Imitaste o que estava nos discos?
Sou um autodidacta de corpo inteiro. Os músicos que admiro têm sido os meus melhores professores. É nisso que está a beleza da coisa: aprendermos com a experiência das outras pessoas e criarmos o nosso próprio universo, a nossa própria linguagem.
Tens uma série de projectos musicais e todos eles parecem ter uma lógica interna própria e uma personalidade, que começa de resto pelo teu som pessoal. Podes destacar-me alguns marcos da tua carreira?
Ainda estou à procura desses marcos, mas duvido muito que apareçam (risos). Prefiro não utilizar o termo “carreira”. Simplesmente, a música é um “must” para mim. A música é a definição da minha vida, e isso é muito mais importante do que fazer qualquer tipo de carreira. Se assim não fosse teria sido melhor ganhar a vida de outra maneira. Como Derek Bailey costumava dizer: «A música é como viver, mas para melhor.»
Movido a pontapés
És um saxofonista intenso e poderoso. Quais foram as tuas principais referências enquanto aprendias a tocar?
A minha mais antiga e importante influência foi a secção de sopros que estava atrás de Little Richard nos primeiros discos da Specialty. Um pouco depois, alguns “barulhos” de Albert Ayler e Bengt Nordström fizeram-me escolher este bom e criativo caminho em que me movo a pontapés. O coleccionismo discográfico ajudou-me, e a esse nível aprendi muito com Harald Hult, John Corbett e Jim O’Rourke.
Como escolhes os teus parceiros musicais? Deixas que as coisas aconteçam ou pensas muito sobre os músicos que possam valorizar as tuas ideias?
As situações são muito diferentes. Algumas colaborações apenas têm de acontecer, enquanto outras necessitam de mais tempo. O importante é que eu esteja aberto e tente novas coisas continuamente, sem nunca parar. Novas parcerias e colaborações antigas – todas são necessárias. Só quero tocar com quem me dê um pontapé no rabo e na alma, levando-me para uma direcção inesperada…
Ken Pickering, o director artístico do Vancouver Jazz Festival, teve a brilhante ideia de te colocar e a Colin Stetson no mesmo palco e de gravar a performance que resultou no álbum “Stones”. Gostas deste tipo de encontros às cegas?
Sim, é uma muito importante parte do que faço e explica mesmo porque o faço. Interacção directa e “instant playing” são tão importantes quanto trabalhar com as formações mais antigas – as situações alimentam-se umas das outras. É o que faz com que me desenvolva mais como músico e como ser humano. Estou sempre interessado em verificar o que acontece com os primeiros encontros. Umas vezes funcionam e outras não, mas isso é que é fantástico.
A noção de “caminho musical” perspectiva-te apenas a procura de novas formas de criar música interessante ou envolve outros planos?
O meu único “plano” é desenvolver a minha linguagem musical e as minhas colaborações com outros músicos. O que é bem diferente de uma carreira, como já disse. As carreiras são para outros…
“The Cherry Thing”, a recente edição de The Thing com Neneh Cherry, é um disco brilhante que pode unir vários tipos de ouvintes e apresentar o teu grupo a uma audiência maior. Porque é que este projecto não está em digressão? Terminou?
Está apenas num momento de pausa, mas tencionamos voltar a trazê-lo para a estrada. É óptimo trabalhar com a Neneh. Incrível! O futuro está em aberto, tal como a música.
Após um concerto, perguntaram a Thelonious Monk o que achava da actuação e ele respondeu: «Não foi boa. Cometi os erros errados.» Quais achas que são os teus erros incorrectos?
Todos os erros são bons, se estivermos dispostos a aprender com eles. Monk é Monk e eu adoro os erros dele. Adoro! Quanto aos meus, ainda estou a tentar compreendê-los. Mas uma coisa é certa: cometo-os o tempo todo (risos).
Porquê a improvisação (ou porque não?)? Porque preferes a ideia de não ter um discurso previamente definido ou de este, mesmo que esteja já estipulado, permitir a inclusão de novos “inputs”?
De que vale ficarmos sóbrios se sabemos que vamos embebedar-nos outra vez (risos)?
Como é que habitualmente explicas aos outros o que ouvir na música improvisada? Se tiveres de explicar à minha mãe, que não ouve estas coisas, do que se trata, o que lhe recomendarias para procurar?
A música ela mesma, sobretudo se for ao vivo. Esta é uma música para ouvir ao vivo. Vinil é vinil, música é música…
Os teus pais ouvem o que fazes? E gostam?
Todos os pais gostam do que os seus filhos fazem. É assim que as coisas funcionam. Mas é melhor perguntares-lhes a eles (risos)…
Free the rock
O rock é muito importante na nossa geração e está bastante presente na tua música, explicando até algumas ligações tuas, por exemplo com Sonic Youth, The Ex, Merzbow. Isso é porque cresceste com o punk? Ainda ouves os Ramones? Qual é o papel do rock ‘n’ roll na tua música?
Bom, dir-te-ei mais coisas – há muito, muito a dizer sobre isto – quando nos encontrarmos no bar da Gulbenkian. Mas sim, sem dúvida. Eu era um adolescente quando o punk explodiu na minha cara, e claro que o meu cérebro e o meu cu também rebentaram. Free the jazz – but don’t fuckin touch my rock!!!!
O que pensas de uma sociedade que paga mais a um DJ – que toca música feita por outros – do que a um músico?
Os DJs são boa gente, não os culpo. Eles apenas estão a “scratchar” o que nós fizemos. Mas afinal, está tudo aí para ser apropriado. Mas tocadores de gira-discos como Dieb 13, Otomo Yoshihide e Christian Marclay são outra coisa. Esses três são uns monstros. O que eles fazem é assustadoramente fantástico! E com certeza que deveriam receber melhores “cachets” que os DJs (risos)…
Tocaste no Jazz em Agosto com The Thing em 2004 e agora regressas com uma formação bastante diferente, The Thing XXL. Como é que este subprojecto nasceu?
Sim, The Thing XXL é uma nova tentativa para verificar que erros podem ser cometidos. Trata-se simplesmente de estender o trio com a inclusão de alguns dos nossos músicos favoritos: Peter Evans, Jim Baker, Terrie Ex e Mats Äleklint. O Mats é o mais malvado filho da mãe do trombone desde que Roswell Rudd deu um chuto no Archie Shepp nos anos 1960…
A Fundação Calouste Gulbenkian sentiu a necessidade de juntar o subtítulo «O Outro Lado do Jazz» ao nome do festival Jazz em Agosto porque há pessoas preocupadas em avaliar se a música tocada é jazz, meio jazz ou um quarto de jazz e protesta quando acha que não há jazz suficiente. Presumo que tenhas ocasionalmente de lidar com estas questões uma vez ou outra. Diz-me lá: quais achas que são os limites da palavra “jazz”?
(gritando) FREE THE FUCKIN JAZZ!
Para saber mais
Discografia seleccionada
Correction with Mats Gustafsson: “Shift” (NoBusiness, 2013)
Mats Gustafsson & Didi Kern: “Eissalon (Live)” (Rock is Hell, 2013)
Merzbow / Pándi / Gustafsson: “Cuts” (RareNoise Records, 2013)
Bengt: “Bengt” (Utech Records, 2012)
Gustafsson / Russell / Strid: “Birds” (dEN Records, 2012)
Mats Gustafsson & Thurston Moore: “Play Some Fucking Stooges” (Quasi Pop Records, 2012)
Gustafsson / Nilssen-Love / Asmamaw: “Baro 101” (Terp Records, 2012)
Ich Bin Nintendo & Mats Gustafsson: “Ich Bin Nintendo & Mats Gustafsson” (Va Fongool, 2012)
Colin Stetson & Mats Gustafsson: “Stones” (Rune Grammofon, 2012)
Akita / Gustafsson / O’Rourke: “One Bird Two Bird (Mego, 2011)
Evans / Fernández / Gustafsson: “Kopros Lithos” (Multikulti Project, 2011)
(Fake) The Facts: “(Fake) The Facts” (Mego, 2011)
The Sons of God & Mats Gustafsson: “Reception” (Firework, 2011)
Hebden / Reid / Gustafsson: “Live at the South Bank” (Smalltown Superjazz, 2011)
Gord Grdina Trio with Mats Gustafsson: “Barrel Fire” (Drip Audio, 2010)
Needs!: “Needs!” (Dancing Wayang, 2010)