De malas aviadas
Boa notícia: Bob Ostertag vem a Portugal em Dezembro para dois concertos no Porto. O primeiro será a 14 no Edifício AXA, onde a associação Porta-Jazz tem o seu quartel-general, e o outro logo no dia seguinte no auditório da Fundação de Serralves, para apresentar uma das suas mais importantes e comoventes obras, “Sooner or Later”, doída memória da guerra civil de El Salvador. A jazz.pt falou com ele para saber o que anda a fazer este músico com uma carreira de 40 anos que se tornou um dos mais importantes da música improvisada e do jazz com utilização de electrónica. E como não podia deixar de ser, aqui ficam algumas pistas sobre o que é de esperar desta sua visita…
Tens estado a utilizar sintetizadores “vintage” como o Buchla, mas também um “software” (o Aalto) que mimetiza os sons da electrónica analógica. Isto coloca interessantes questões no que concerne à tua visão da tecnologia. É conhecida a tua opinião sobre a música por computador (texto “Why Computer Music Sucks”), mas diz-me: porquê este retorno à primeira geração dos sintetizadores modulares portáteis, enquanto ao mesmo tempo utilizas programas informáticos alimentados por velhos sons?
Tudo aconteceu por acaso com a descoberta de um velho sintetizador Buchla que estava armazenado há décadas no departamento de música da universidade em que dou aulas. Ninguém no departamento sabia como utilizá-lo ou estava interessado nisso. Eu fiquei curioso, dado que não tocava num instrumento como este desde o início dos anos 1980. Comecei a brincar com a máquina e recordei-me imediatamente do divertido que era, em comparação com os instrumentos electrónicos de hoje. Mas quando acabei de preparar o CD que fiz com ele (“Motormouth”, 2011) lembrei-me também de quão frustrantes eram as limitações desses antigos sintetizadores. Questionei-me sobre se havia “softwares” de sintetizador que combinassem o melhor de ambos os mundos. O meu amigo Rrose indicou-me o Aalto, gravei com ele o álbum “Bob Ostertag Plays the Aalto”, que saiu este ano, e vou levá-lo para o Porto.
Muito do teu trabalho recente foi realizado com recurso ao “sampling” e com “sons encontrados” e “gravações de campo”. A tua presente atenção aos sintetizadores significa que desejas diversificar as tuas abordagens musicais, ou é uma nova direcção que pretendes tomar? Qual o motivo, se assim for?
Quando se dedica toda uma vida à música ou a qualquer tipo de empreendimento criativo, balança-se inevitavelmente entre as alegrias de mergulhar profundamente num domínio (ou o drama de ficar preso numa rotina) e a excitação de mudar de rumo (ou o perigo de ser superficial).
És um improvisador que utiliza electrónica. Que considerações específicas no que respeita à improvisação te são colocadas pela electrónica? Essas considerações mudaram ao longo do tempo?
Oh, sim, as minhas noções sobre tecnologia transformaram-se dramaticamente conforme os anos foram passando. Por estes dias, penso sobretudo como a tecnologia está a destruir o nosso mundo…
Perdeu-se o “punch”
Costumas tocar com artistas da área do jazz e da música livremente improvisada, mas pareces alheio a considerações como ser um “músico de jazz” ou um “músico de improvisação”. Como é que te vês a ti mesmo?
Muitos músicos de jazz que conheço também são estranhos à consideração de que são “músicos de jazz” (risos). A “improvisação” enquanto ideia organizadora central foi importante para mim nas décadas de 1970 e 1980, mas já não é assim. Quando comecei a tocar “música improvisada” havia apenas uma mão-cheia de LPs desse tipo e só os encontrava em lojas específicas ou encomendando por correio. Era uma pequena comunidade de músicos em alguns países, todos nos conhecíamos pessoalmente ou através de correspondência (por carta, ainda não havia email) e cada novo projecto parecia acrescentar-se significativamente ao conjunto do trabalho que se realizava. Hoje, com tanta música improvisada disponível em disco ou procurando na Internet (mais do que uma pessoa pode ouvir no seu tempo de vida), perdeu o seu “punch”.
Além disso, nos Sessentas e nos Setentas a “livre improvisação” referia-se a uma explosiva intersecção de diversas tradições musicais que antes estavam separadas. Isso foi muito excitante, mas é coisa do passado.
Apesar de seres um músico electrónico, sempre preferiste trabalhar com instrumentistas convencionais, de Roscoe Mitchell, John Zorn e Fred Frith a Otomo Yoshihide, Mark Dresser e Phil Minton. Há uma explicação para isso?
Quando me iniciei na música electrónica nos anos 1970, tinha a consciência de que alguma coisa faltava quando tocava estes dispositivos. Não eram suficientemente “live”. Sentia a falta do virtuosismo envolvido na execução de instrumentos acústicos. Tinha a aguda percepção de que o meu trabalho não evidenciava nada disso, pelo que sempre quis rodear-me de virtuosos instrumentais. Aliás, fico surpreendido quando vejo alguém levar o seu “laptop” para o palco e fixar o ecrã sem se aperceber que alguma coisa de fundamental não está ali. É uma profunda diferença geracional.
Um dos teus concertos no Porto recupera um antigo projecto, “Sooner or Later” – o disco de 1991 em que manipulas o registo de uma criança salvadorenha a enterrar o pai, morto pelos soldados governamentais. O que justifica que este ainda continue “na estrada”?
No próximo Verão voltarei a El Salvador pela primeira vez desde 1988, para tocar “Sooner or Later” num festival que se realizará num antigo campo de guerrilha nas montanhas. Será algo de muito importante para mim, e achei que devia fazê-lo ao vivo um par de vezes antes dessa apresentação. Não toco a peça há 20 anos…
És um dos poucos músicos na área da chamada improvisação que pensa, e escreve, sobre esta prática. O que tens a dizer sobre a ausência de uma reflexão sobre a “improv” pelos próprios improvisadores? A que se deve?
Muitos músicos são atraídos pela improvisação precisamente porque é tão imediata. Mas houve Derek Bailey, que escreveu todo um livro sobre o tema…
O que significa para ti ser um activista? Alguém que pensa politicamente sobre arte? Que cria arte com um conceito politico? Que tem uma actividade política extra (publicaste vários livros com esse âmbito, de resto) que transcende a música?
Não tenho uma resposta clara para essa questão. Daria um livro inteiro. Mas espera… acho que já escrevi esse livro (risos). Intitula-se “Creative Life: Music, Politics, People and Machines”…
Olhar pela janela
Os teus temas políticos foram desde um interesse pelas falhadas revoluções latino-americanas (“Sooner or Later”) até à luta pelos direitos de “gays” e lésbicas (as colaborações com Justin Bond e Lynn Breedlove). Esta transição da arena política tradicional (deitar abaixo um regime repressivo e construir uma sociedade socialista) para uma intervenção ao nível dos “estilos de vida” (a designação que Murray Bookchin deu às acções dos anarquistas “queer”) tem ilações? Significa que deixaste de acreditar na revolução?
Não penso estas coisas de forma tão abstracta. Apenas olho pela janela e vejo o que se está a passar. Nos anos 1980 estive, de facto, envolvido nos movimentos revolucionários da América Central, mas depois mudei-me para San Francisco no auge da epidemia da Sida…
Outro dos teus gestos políticos foi a colocação da maior parte da tua música na Internet, para descarregamento grátis. Apresentaste a decisão provocativamente como um “suicídio profissional”, mas fizeste-o para promover um entendimento alternativo sobre o “copyright”. É um “copyleft”? Diz-me como achas que o acesso à música gravada devia ser…
O acesso à música gravada está a mudar tão rapidamente, e as mudanças são tão profundas, que até se torna difícil falar sobre isso. Quem sabe como isto vai acabar? O certo é que a quantidade de música disponível para toda a gente, em todo o lado e em todos os instantes, desde que se tenha ligação à Internet, tornou-se tão massiva, tão radicalmente diferente do que acontecia antes, que isso está até a mudar o que é a música e o que é ser músico.
A tua parceria com o realizador Pierre Hérbert (desde “Living Cinema Presents Between Science and Garbage”, DVD de 2004) deriva de algum particular interesse pelo cinema?
Não de um particular interesse pelo cinema, mas de um interesse pelo próprio Pierre Hérbert. O que me atrai são as pessoas, não ideias abstractas, géneros ou disciplinas artísticas. Quando conheço alguém cuja obra é algo que eu nem sequer imaginava que existisse, a minha atenção fica presa. E se descubro que essa pessoa tem sentido de humor, então encontro um colaborador. Não sou do tipo de músico que colabora com dezenas ou centenas de artistas. Conheço quem o faça (Fred Frith e John Zorn vêm-me logo à ideia), tenho um imenso respeito por eles, mas essa não é a minha via. Apenas estabeleci parcerias com um punhado de pessoas e todas elas têm as mesmas características. Têm práticas profundamente originais que expandem o meu entendimento do que é possível e têm sentido de humor. Além disso, se vou trabalhar com elas, precisam de ser agradáveis e generosas. Ora, o Pierre é uma pérola, um homem de grande talento e um ego muito pequeno. Adoro-o.
Para saber mais
Discografia seleccionada
Bob Ostertag: “Bob Ostertag Plays the Aalto” (CD Baby, 2013)
Bob Ostertag ( Shelley Hirsh / Theo Bleckmann / Phil Minton / Roscoe Mitchell: “A Book of Hours” (CD Baby, 2012)
Bob Ostertag: “Motormouth” (free download, 2011)
Bob Ostertag: “wOOt” (free download, 2007)
Bob Ostertag / Pierre Hérbert: “Living Cinema Presents Between Science and Garbage” (Tzadik, 2004)
Bob Ostertag / Phil Minton / Mark Dresser / Gerry Hemingway / Joey Baron: “Say No More 1, 2, 3 & 4” (Seeland, 2002)
Bob Ostertag: “DJ of the Month: Bob Ostertag Solo” (Seeland, 2002)
Bob Ostertag / Otomo Yoshihide / Justin Bond: “PantyChrist” (Seeland, 1999)
Bob Ostertag / Hansa Gymnasium: “Dear Prime Minister” (WDR/Hansa Special, 1998)
Bob Ostertag: “Like a Melody, No Bitterness” (Seeland, 1997)
Bob Ostertag / Otomo Yoshihide: “Twins” (Creativeman, 1996)
Bob Ostertag / Mike Patton / Fred Frith / Justin Bond / Lynn Breedlove: “Fear No Love” (Avant, 1995)
Bob Ostertag / Kronos Quartet: “All the Rage” (Elektra-Nonesuch, 1993)
Bob Ostertag: “Burns Like Fire” (Seeland, 1992)
Bob Ostertag: “Sooner or Later” (Seeland, 1991)
Bob Ostertag / John Zorn / Fred Frith: “Attention Span” (Rift Records, 1990)