Gil Dionísio, 1 de Dezembro de 2013

A caminho do futuro

texto Rui Eduardo Paes

Gil Dionísio. Eis um nome que vai crescendo de dia para dia nos meios do jazz e da improvisação, graças a projectos como Aye-Aye, Neighbours, Pás de Problème ou os seus solos. Também nos da performance e do teatro e da dança, porque o jovem violinista e cantor tem um apreço especial pela inclusão do movimento no seu mister. Acrescenta-se que Gil Dionísio não cria apenas arte – dedica uma parte do seu tempo a organizar oportunidades para que a arte aconteça, bem como a juntar pessoas, a despertar-lhes as consciências, a formar crianças e até a fazer crítica, designadamente de música para cinema. A jazz.pt bateu-lhe à porta para saber mais e ele não se fez rogado…

 

Apresentas-te como um “violinista autodidacta” e sei que uma estadia na Roménia, país com uma grande tradição violinística cigana, foi fundamental para a maneira como tocas o instrumento. Antes disso fizeste estudos na Escola de Jazz Luís Villas-Boas, do Hot Clube de Portugal. Enquanto cantor, que também és, ou com o violino?

A minha paixão pela música cigana vem desde uma altura em que eu não sabia que existiam essas distinções. Sabia que os povos tinham as suas músicas particulares, mas não sabia a profundidade disso mesmo e na altura, por volta dos meus 18 anos, tinha (e ainda hoje tenho) uma admiração enorme pelo cantar árabe de influência muçulmana.

O som do Muezzin sempre foi algo muito místico para mim, e acho que foi aí que aquelas escalas árabes começaram a entranhar-se, todas aquelas formas melódicas que desafiam a afinação, tornando-a altamente narrativa em todos os instantes, traçada pelos caminhos todos possíveis, carregada de um sentido bastante verdadeiro, aqueles saltos tão não-europeus, aquelas notas contínuas que eram tudo menos a direito, como se cada uma delas tivesse os seus percalços próprios. Percebi que esses percalços, esses saltos nada óbvios para o meu ouvido, altamente exóticos, não eram estanques, não estavam necessariamente escritos, eram consequenciais da cultura, do sítio e do estado.

Esse meu interesse pela música de origem árabe foi o princípio de tudo. Na faculdade cheguei a aprender Árabe, mas acabou por ser na altura em que deixei o curso por causa do violino. Interessei-me bastante pelos filósofos árabes, mas já estava a entrar na fase em que o violino ocupava demasiado o meu tempo e a minha cabeça e esse estudo teve uma continuidade muito forte na música. Uma procura das suas características, do porquê daquela música ser assim, das suas histórias. A música árabe fez-me olhar com mais atenção para a música do Egipto, depois descobri a música indiana e a um dia alcancei os Balcãs. Fora a profundidade que só encontro mesmo na espera e nas dinâmicas arrastadas da música árabe e nos sons do almuadem, por exemplo, a música das Balcãs era, em certa medida, uma continuidade conceptual daquilo que me fascinava: as escalas, que estão todas ligadas, e a imprevisibilidade de toda aquela música e da sua forma.

Depois, a minha influência bebop começou a surgir quando descobri que grande parte da música cigana das Balcãs, a turca, a búlgara e a romena, é muito muito rápida e tecnicista e descobri que  o som que tirava do meu instrumento era parecido com aquela música, na força, na fricção, nos vibratos. Tínhamos algo em comum e descobri rapidamente o que era: não havia uma obrigação na técnica, havia sim uma liberdade imensa para tirar a nota das formas todas possíveis, e aquele meu violino, ora cheio de ar na fricção, ora altamente embriagado na minha vontade de tocar sem qualquer formação clássica, cheio de harmónicos por todo o lado, era tão parecido com os violinos turcos e romenos! Comecei a sentir que aquela era a minha escola, que o meu som era semelhante ao som daquelas pessoas.

Imagina então a minha excitação! Aos 23 anos decidi que tinha de ir para a Roménia. Entretanto, já tinha passado pelo Hot Clube e pela JBJazz. Na JB estive um ano lectivo e no Hot uns três meses, julgo. Larguei tudo quando fui para a Roménia.

Agora o porquê de ser autodidacta: tive cerca de um mês de aulas com uma professora clássica logo quando arranjei o meu primeiro violino. Era numa escolinha ali nas Laranjeiras e a professora não tinha muito entusiasmo naquilo que fazia. Larguei essas aulas e passados três meses a tocar violino em casa inscrevi-me na JBJazz. Entrei no nível zero, que não tem direito a combo, mas passado uns meses já andava metido nos combos do primeiro ano e já tinha formado um combo com mais malta do ano zero e do primeiro ano e foi aí que conheci o Raul e o Abuka, que tal como eu tinham uma pancada enorme pelas músicas cigana e balcânica - enquanto eu estava na Roménia, eles criaram os Pás de Problème, que foi o oficializar do que fazíamos juntos e que eles próprios já tinham, uma tradição muito característica: tocar na rua, música cheia de fogo, com altas influencias “gipsy”.

Na JB tive aulas com Jorge Reis e aí ouvi algumas  bocas, do tipo «epá, tu vê lá se queres ir tocar com o Carlos “Zíngaro”». Quando me sentava ao piano e entrava em modo Cecil Taylor, ouvia comentários na mesma onda e foi aí que me começou a impressionar como é que pessoas que estudavam jazz e um instrumento não se interessavam por explorar todas as capacidades possíveis do mesmo. Impressionava-me o porquê de não lhes ser interessante a desconstrução, quando para mim foi sempre o caminho mais óbvio para perceber seja o que for: destilar, olhar por dentro, perceber os mecanismos todos, usá-los fora do óbvio e finalmente entender o todo. 

As aulas com o Jorge foram boas dentro do possível, deram-me o “know how” para começar, mas o Jorge é um saxofonista que tocou violino, não é um violinista, pelo que comecei a pensar algo que agora digo e sinto muito a sério: um professor, seja de que arte for, não te pode ensinar a fazer arte, mas pode passar aquela que é a sua visão artística do instrumento. O professor pode ensinar os mecanismos, pode passar as ferramentas, mas não pode ensinar a sua experiência interior. Pode mostrar como chegar lá, ou melhor, a forma como ELE, o professor, chega até lá e o aluno absorve ou rejeita.

No meu caso, aprender o violino era algo de muito particular, e o Jorge, apesar de me ter passado muito boas ferramentas, não conseguiu perceber qual era a minha relação com o instrumento. Naquela altura eu estava a tentar aprender, sozinho, em cada mês, tudo o que uma criança que começa aos 4 aprende num ano. O que eu aprendia colocava logo em prática, porque a minha aprendizagem do instrumento não aconteceu em paralelo com o meu crescimento e a formação das minhas ideias. Essas já tinham bases, algumas já tinham caminhos muito concretos, muitas delas já eram fortes, e por isso cada evolução no instrumento era a possibilidade de pôr em prática coisas que eu já tinha na minha cabeça, que o meu corpo já queria fazer.

Assim, quando larguei o Hot, oficializei isso mesmo, a minha condição de autodidacta. Rejeitei grande parte das coisas que aqueles que já tocavam ou tinham ideias sobre o violino me queriam passar, porque para fazer esse caminho mais formal eu estava muito atrasado. A conselho de Jorge Reis cheguei a ir ter com um amigo dele violinista, professor na Metropolitana. Foi uma experiência bem pesada, porque o gajo deitou-me bastante abaixo, com alguma maldade até. Chegou a dizer-me que eu nunca iria conseguir tocar violino. Mas aprendi algo de muito valioso: que as noções formais e “mais acertadas” precisam de ser desafiadas. Aprendi que é tão, se não até mais, valioso perceber primeiro quais são os limites e as consequências dessa formalização e que o “desformalizar” pode ser o caminho mais adequado para chegar ao fundo do que quer que seja. Se é que não é, por vezes, o único caminho possível…

Por isso é que me considero autodidacta. Não foi Jorge Reis que me ensinou a tocar, foi na música por mim ouvida que aprendi a tocar. Foram os discos os meus mestres, foi no free jazz e na música cigana que percebi que eu não estava sozinho: uso o ruído, uso ferramentas 'erradas' – por exemplo, não uso o suporte do ombro, o que quer dizer que logo por isso o meu som muda, a minha forma muda, a minha força muda, mas permite que me mova enquanto toco. Com esse suporte, eu nem sequer teria pensado em movimento da forma como o faço agora.

A minha técnica, desenvolvida por mim mesmo, deu-me caminhos harmónicos e melódicos que só encontrei porque não tive um professor a dizer-me como fazer. Se tivesse tido, era agora provavelmente um péssimo violinista, a tentar tocar música romântica que não interessa a ninguém. Ou talvez não, porque sempre existiu demasiado jazz na minha cabeça para me permitir tal coisa. 

Esta é a história do meu violino, mas aplica-se também à minha voz. A história é a mesma, com a excepção de que sempre cantei. Apercebi-me muito cedo que tinha capacidades vocais e sempre as explorei, numa imitação constante das coisas que me rodeiam. Apesar da minha relação com a voz ser algo que sempre me lembro de estar presente na minha vida, não consigo  definir quando é que me apercebi realmente que era algo que fazia bem, que era sério e que era também algo meu. 

Sempre tive uma paixão enorme pela não-palavra, pelo “gibberish”, pela profundidade da voz enquanto som significativo e isso foi levado tão a fundo que tenho  pouco interesse em cantar letras, apesar de também o fazer. E um dia descobri Louis Armstrong e isso, tal como aconteceu com a música cigana, deu um sentido ao meu violino. O “scat” abriu um caminho a algo que eu já fazia e daí até chegar ao bebop foi um instante. O meu crescimento enquanto artista determinou aquilo que sou enquanto pessoa, disso não há dúvida, e o facto de ter aprendido por mim mesmo marcou brutalmente a minha formação artística. 

Consciência de palco

Com Sara Anjo 

A tua maneira de estar na música, e na improvisação, é particularmente performativa. Também tens actividade como performer e actor e estás envolvido com o teatro e a dança. Nestes domínios funcionas essencialmente como músico ou há alturas em que a música é colocada de lado?

A atitude performativa é uma consciência de palco. Não sou bailarino e não sei se sou actor, pois não tenho formação como tal, mas sou “performer” e sim, faço teatro, para além de música. Acho que sou estas coisas todas, ao mesmo tempo. Mas sim, por vezes não surjo como instrumentista e intérprete. Apesar disso, a musicalidade nunca fica de lado – numa performance há ritmo e dinâmica e isso é musical. Um actor sem musicalidade é do pior que se pode ver e ouvir.

Enquanto músico, enquanto improvisador, faço uma leitura do todo que é muito performativa, porque engloba a ideia de estar em cena, de entrar nesse estado e esse é um estado tanto interior como exterior, que permite sair para o que está lá fora mas também mediar o teu eu, que tem ímpetos, vontades, necessidades e uma preocupação, consciente ou inconsciente, que é musical, que é do instrumento, que é da harmonia ou do estado do som. A dança também está aí, porque o movimento do corpo faz parte da minha forma de tocar, para mais quando o meu instrumento é tão físico. 

É por isso que me interessa a conceptualidade da dança, que se aplica à minha musicalidade, mesmo que eu não seja bailarino. A consciência do movimento só é possível através da aceitação da não formalização da arte, do entendimento desta  como algo de mutável e em que o erro e a destruição são possíveis. 

 

Consideras que a música improvisada é, por definição, uma música performativa, ou está aquém e além (ou noutro lado) desse âmbito?

Há uma música improvisada que só é música porque é performativa, assim como há alguma música improvisada que, enquanto objecto sonoro apenas, não faz muito sentido. Há música que só consigo sentir se estiver ali, no momento, a ver as mãos, os sopros e os corpos que a fazem. Essa música só é música de todo porque é performativa, porque os seus intérpretes usam ferramentas que, apesar de desvirtuarem a qualidade tecnicista da música, ou seja, de resultarem em algo tecnicamente pouco exigente, pela forma torna-se altamente interessante. Isto não tem nada a ver com a profundidade e a possibilidade emocional da música em questão… Acho que isso depende do músico.

Por outro lado, grande parte da música improvisada é, em primeiro lugar, música e depois pode ser performativa, dependendo da linguagem, da forma e do intérprete. Thelonious Monk é um exemplo perfeito: é performativo, as suas técnicas extensívas são performativas. Ernesto Rodrigues tem dias em que é performativo e outros em que nem por isso, é simplesmente um músico que está ali a tocar, o que até não desvirtua o seu trabalho. São estados. 

Quero ir ainda mais longe: ouvir música improvisada em CD não tem, obviamente, nada de performativo, mas se pensarmos no álbum "Jazz at the Messey Hall", com Charles Mingus, Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Bud Powell e Max Roach, encontramos pelo menos um momento que talvez seja performativo: na interpretação de "Salt Peanuts", logo depois da última volta de tema, aparece o Mingus a gritar em altos berros: SAAAAAAALT PEAAAAAANUTS. Isso para mim é performance. Aquilo que o Dizzy me transmite ao cantar o tema ao vivo é performativo. As pessoas reagem àquilo. Outro exemplo: dizer «the name of the song» a meio do tema é perfomativo, porque é musical, é teatral e acontece fora da música “ela mesma”. Claro que isto é um modo muito vasto de definir performance, mas que é performance, é.

 

Em alguns contextos associas improvisação e composição. Que linhas de força te orientam em termos composicionais? Que problemáticas te levanta a associação do improvisado com o composto?

Vou tentar primeiro listar os diferentes contextos em que essa relação acontece. O grupo Aye-Aye toca horas a fio em improviso e depois agarramos em algumas coisas e “compomos” um tema, com partes chave e um refrão, apesar de o caminho até ele não estar definido. Os concertos dos Aye-Aye são, assim, uma improvisação com secções chave, que às vezes são assinaladas previamente, regra geral com uma pauta gráfica, e os caminhos até esses momentos são criados através da improvisação. 

Os Neighbours fazem só improvisação. Não há momentos chave nem coisas preparadas de antemão – chegamos lá através de improvisos e decidimos que é aquele o caminho que queremos seguir –, pelo que os concertos partem do nada e apenas estamos conscientes de onde queremos chegar. De qualquer modo, trata-se igualmente de temas, pois fazemos questão que haja uma estrutura. Como se trata de uma estética muito melódica em que se força a canção, é fácil criar essas estruturas com uma ideia mais “folky” em mente. Vamos transformando e fazendo bases com as linhas melódicas que encontramos. Claro que, como temos influências muito diferentes, a coisa volta e meia fica meio free, mas nunca perde esse caminho melódico e de cantiga.

O que faço a solo não sei se devo chamar improvisação ou composição. Dou por mim a fazer coisas que já fiz, através de repetições ou usando simplesmente algo que já conheço, uma ideia que tenho decorada, mesmo que inconscientemente, quase compondo ao vivo linhas e ideias que iniciei noutras alturas. Ou então, parto daquilo que o meu corpo tiver para dar, sem acrescentar nada para improvisar, das ideias e dos estados que me afectam em particular na altura do concerto e isso para mim é improvisar de uma forma tão genuína quanto possível, a partir do nada. A improvisação parte do corpo, de facto, mas a improvisação verdadeira não pode tomar o nada como um vazio. O improvisador usa a sua linguagem como um nada possível, isto é, torna os seus vícios e as suas ferramentas em algo completamente intuitivo e natural para o corpo e assim este não tem nenhum intermediário para improvisar, é verdadeiro nas primeiras coisas que diz  e é aí que está o sublime da coisa.

Esta ideia é bastante platónica, na medida em que, para se chegar ao campo das ideias, tem de se desprender primeiro do corpo. Este desprendimento é algo que tento encontrar a solo e arrisco-me muito, porque não parte de uma premissa simples e é uma forma de improvisar em que ainda só tenho uns anitos de experiência. É tudo novo, mas ao mesmo tempo é-me muito natural. É quase uma conversa com as pessoas que estão comigo naquele momento e eu desafio-me a isso. 

Regra geral, o concerto é um largar daquilo que o corpo tiver para largar. Claro que isso é adaptado ao contexto ou ao que eu me propus fazer. Há uns meses, no Festival Aogosto, não pensei nem preparei nada. Fui e a coisa foi tão forte e tão saída de dentro que recebi uma ovação gigante. Nem sabia como reagir no final, porque não esperava aquilo, mas julgo perceber porque é que foi assim: dei tudo o que tinha para dar, emocionalmente, e isso, mesmo que a técnica não estivesse lá, foi forte para quem lá esteve. É isso que me interessa fazer a solo. Num outro festival, o Praga, na Figueira da Foz, foi diferente. Estava nesse dia bastante zangado com notícias do Orçamento de Estado e suas consequências, e o Praga, um evento que acontece numas antigas instalações militares onde se está desde manhã até de madrugada no mesmo espaço, faz com que seja algo muito humano na relação entre pessoas, artistas e ideias. A meio da tarde, lembrei-me que seria interessante pedir ao público que quem quisesse se apresentasse, dissesse o seu nome e algo sobre si. No início foi difícil, mas alguém superou a timidez e lá me deu algo e assim que pegou foi brutal, eu ia ouvindo e ia construindo com e sobre isso. Cheguei a ter pessoas a apresentarem-se enquanto eu tocava, outras nas pausas, e eu fui construindo. Resultou em algo de extremamente político, com referência no estado da cultura e no estado das pessoas. Foi música improvisada? Foi improvisado, mas não sei se lhe posso chamar música improvisada. 

A solo, com os Aye-Aye e com os Neighbours encontro a improvisação e a composição numa relação muito dúbia. Depois há a música improvisada, em que se está puramente a improvisar e a compor em tempo real, como se costuma dizer. E há a composição propriamente dita, uma das ferramentas que mais uso para chegar a ideias ou para trabalhar ideias, seja na música ou no teatro.

Não sei se essa associação entre o improvisado e o composto levanta problemas. Nunca pensei a fundo sobre isso. Para mim, a improvisação está quase sempre em primeiro lugar, seja de uma forma mais estruturada ou não, e como cresci musicalmente a improvisar, passo muito tempo a fazê-lo. Então sim, cria-me por vezes problemas em projectos que não são tão improvisados. Por exemplo, nos In Loko de Carlos Barretto acontece constantemente termos umas linhas para fazer, estilo “big band”, e eu, mesmo quando estou a forçar-me para não o fazer, faço essas linhas e sempre mais qualquer coisa, nem que seja um som a mais. Está alguma coisa a acontecer e lá estou eu a fazer qualquer coisa a mais. Claro que na medida do respeito pelo outro e pela composição, mas estou sempre com esse modo activo.

Podia ser problemático se o Barretto não me conhecesse já de ginjeira, ou se o “band leader” fosse mais ditador, mas a verdade é que isso já me trouxe tantas coisas boas em tantas experiências musicais que daí acabam por sair arranjos. Como os In Loko não são um grupo muito grande, existe esse espaço ou criei-o eu. Tenho uma dificuldade enorme em ouvir passivamente um bom músico a tocar e até chego a invadir palcos. Claro que educadamente e com simpatia. Foi assim que acabei a tocar no Palácio da Rainha Elisabeta, na Roménia, onde George Enesco ensaiava. 

O que é o ser

Pás de Problème 

Fizeste estudos de Filosofia. Levou-te isso à formulação de uma pensamento sobre a música que praticas, conduzindo a uma conceptualização da mesma ou pelo menos a uma reflexão (auto)crítica?

Sim, claro. Não sei, no entanto, se foi a filosofia que meu deu essa forma de pensar ou se foi já ter um princípio que fosse dessa forma de pensar que me levou à filosofia. A verdade é que, na altura em que estava na faculdade, não estava de todo preparado para fazer filosofia. Acredito que quem trabalha no campo das ideias deve ter uma consciência emocional e social do que é o ser, o eu e o outro. Ora, foi o violino que me permitiu isso. Já tinha muitos princípios em mim, muitas ideias em potência, mas foi com o violino que tudo o resto veio. Agora que a filosofia me ofereceu possibilidades imensas, ofereceu!  Larguei o curso já faz quase quatro anos, mas estou há dois a trabalhar em filosofia com crianças, com a filósofa Rita Pedro. Se não fosse a minha passagem pelo curso, talvez esse trabalho não tivesse acontecido. Tem sido um campo de pesquisa enorme para o meu trabalho enquanto formador e até enquanto artista.

Tenho uma paixão enorme pela educação e acredito que há muito trabalho a fazer com as crianças, principalmente neste país, onde a cultura é mais do que desvalorizada. Preocupa-me muito mostrar que a cultura somos nós, que é reflexo da nossa natureza e que, para além do entretenimento, a cultura e a arte servem também para nos alimentar por dentro. Podemos crescer sempre, seja com 5 ou com 45 anos. A filosofia deu-me uma perspectiva e métodos que não teria encontrado de outra forma.

 

Tens uma postura na música e nas artes performativas que julgo ser reminiscente do punk. É um facto? É uma opção consciente, um propósito?

Não me considero punk, mas sim, existe em mim uma reminiscência de impulsos muito semelhantes ao punk. Essa é uma leitura possível da minha postura, por um lado porque a maneira como o violino acabou por ganhar forma na minha vida implicou o prescindir de coisas e o submeter-me a situações que tiveram o seu custo. Por outro lado, conseguir viver num meio artístico difícil, foi uma emancipação social enorme e que teve também os seus custos. Essa emancipação deu-me uma perspectiva sobre o estado artístico e social do País muito categórica e, acima de tudo, muito consciente da farsa que nos tentam impingir. Daí que a minha maneira de estar pareça muitas vezes, ou é realmente, bastante agressiva, o que se reflecte na música que toco.

Sei também como alcançar objectivamente essa agressividade. A minha expressão é de confronto. Mas se por vezes uso conscientemente essa agressividade, em outras ocasiões surge porque não pode ser de outra maneira. Apesar de me considerar bastante saudável de espírito, existem muitas coisas que me irritam, política, social e artisticamente. Porra, se existem! E julgo que isso acaba por aparecer na música (e não só) que faço. No entanto, tenho a sorte de ter um lado que é mais delicado e isso  equilibra muito o meu discurso. Caso contrário, “partir esta merda toda” seria a palavra de ordem, porque este país assim o pede e nunca na minha vida me quero sentir obrigado a sair de um lugar que me é tão significativo a vários níveis. 

É o que me apetece fazer e existem muitas coisas que precisam de ser partidas. Não tenho paciência para manifestaçõezinhas, para ir passear a cerveja pela Avenida da Liberdade, para gritar palavras de ordem na terça-feira-dia-de-manif e no dia seguinte fazer exactamente aquilo que se faz todos os dias, como se nada se passasse. Reivindicar não é estar numa zona de conforto, é dar o corpo ao manifesto, é ser-se o manifesto e estar-se sempre consciente desse  corpo, cheio de mazelas, nos dias todos que te passam pela pele. É saber que tudo o que fazes, todas as palavras que te saem da boca e todos os movimentos são políticos. É é aí que está o trabalho, é aí que se fazem as mudanças. 

Há algo de profundamente errado. É tal o nível de manipulação que me chego a sentir mal só de pensar nisso. Mas sei também que não existem bichos papões e que tem de haver uma mudança radical, não no particular mas de forma geral. As mudanças têm de ser transversais, não cabem apenas aos políticos e aos “media”, somos todos nós que as temos de fazer. Os artistas também. As pessoas com quem posso primeiro entrar em diálogo são outros artistas e os públicos e é neles que me foco. Vivemos num país onde o secretário de Estado da Cultura diz coisas como «a cultura é importante para o desenvolvimento, mas os artistas não podem desconstruir demasiado, isso não é bom». Precisamos de desconstruir, precisamos de desconstruir e depressa. O facto de ter acesso às pessoas leva-me a ter um papel importante. É naquilo que faço que posso tentar transmitir a noção de que existem outras formas de viver.

Cresci artisticamente enquanto crescia em mim a influência do surrealismo de Vian (e agora que descobri o Peret, oh my!), do dadaísmo de Tzara ou do neo-dadaísmo de Yamataka Eye. Daí que aprecie o “nonsense”, o saber “destruir”, o saber rir, o saber sentir e até amar o ridículo. Também saber que as palavras podem ser tudo ou apenas brócolos e que “merda” é algo para dizer na rua. Sentir tem de ser feito com o corpo todo ao mesmo tempo ou não serve para nada.

Com todo o decadentismo que nos rodeia (ainda para mais, um decadentismo disfarçado de vida moderna) e a velocidade com que eu e estas pessoas que estão comigo vivemos todo esse decadentismo, que é rico, tão rico artisticamente, faz com que, sim, sejamos felizes nisto. Porque sabemos qual é a nossa natureza e essa natureza é o ponto de partida para a criação, para as criações todas. Mesmo nas mais belas criações está lá esse fodidismo, tantas vezes demoníaco e ao mesmo tempo alicerce de todo o nosso universo. Por isso, tudo o que dizemos e fazemos é político, tudo é intencional, mesmo quando achamos que é dança.

Esse decadentismo, o saber vivê-lo, permitiu-nos ser verdadeiros e é no saber perceber essa verdade que nos encontramos enquanto pessoas e artistas e sermos convictos naquilo que nos é certo - porque só sabendo que estamos fodidos é que conseguimos não o estar.

 

O que é uma atitude “underground”, contracultural. Certo?

Sim, pratico uma contraculturalidade. Claro que isso é delicado, pois tenho muito medo dos absolutismos, de me fechar. Não quero que a minha atitude seja toda ela “punk”, porque não posso permitir que o estado das coisas me altere o suficiente para que eu ande sempre zangado. Isso seria a maior vitória deste fodidismo. Dignificá-lo-ia! Preciso de controlar o que quero e desejo também experienciar outras coisas. 

Estou no “underground” porque as escolhas artísticas que fiz e faço são bem distintas daquelas que são a generalidade do produto que temos disponível, para mais num país tão pequeno. Se não tenho paciência para a generalidade do jazz português, não é por não gostar da sua cor, mas por tudo o que representa. O jazz surgiu na América como uma manifestação de liberdade. Como uma música de fogo e esse fogo foi consequência de se querer sentir a vida. Acima de tudo existia identidade, uma identidade com voz, com algo para dizer e isso para mim é que é o jazz. Ok, Keith Jarett diz que não há jazz europeu. Para ele o jazz da Europa é outra coisa, é hazz, ou lazz, mas não é jazz. O certo é que se trata de uma linguagem de que nos apropriámos, e assim sendo, cada um é livre de a tocar da forma que lhe apetecer.

A consequência é que podemos não concordar com os resultados, e o certo é que acho este jazz muito fraco estética, artística e musicalmente. Na grande maioria do jazz português não há fogo, não há “swing”. Para mim é grave não haver identidade, não haver nada a dizer. Como é que se toca jazz sem ter nada a dizer? Há excepções, claro que sim, mas sinto que em Portugal faz-se um jazz sem risco e demasiado confortável. Para mim, não é jazz. 

Estou a falar de jazz, mas podia estar a referir-me ao rock, ao teatro ou à dança. De qualquer arte feita só por fazer, do artista que o é pelas razões erradas. Quando aquilo que se faz surge de ânimo leve ou sem profundidade, por muitas horas que se leve a aperfeiçoar a técnica, acho sinceramente que não serve de nada. Há muitos artistas que não passam de artesãos. Podem ser mestres na sua “arte”, mas não criam arte. 

O “swing” é outro

Solo 

Enquanto cantor, mais do que enquanto violinista, parece-me estares particularmente ligado à tradição do jazz e de factores como o “swing”. Confirmas?

Claro, não o é violinisticamente porque a minha técnica acabou por se formar com base em outras noções de som. Com a voz não consigo explorar essas concepções do som como exploro no violino, por isso acho que os dois instrumentos se complementam bem e preenchem campos diferentes. E claro, porque tecnicamente o jazz tem sido algo complicado para mim no violino, apesar de ouvir atentamente os violinistas de jazz. A começar por Leroy Jenkins, que é o rei do número de audições cá em casa.

Oiço muito Dizzy Gillespie, muito Bud Powell. E muito Lee Morgan, muito, muito Louis Armstrong e muito Jon Hendricks. Tanto assim que, quando toco jazz no violino sinto falta que este seja um instrumento de sopro. Tiro as frases desses gigantes e toco-as no violino, mas não soa, o “swing” é outro. Daí que me tenha virado para o free jazz. Durante muito tempo não tive referências fora do “swing”, apenas dois ou três violinistas e o pessoal do manouche, que é uma linguagem brilhante, mas também fechada. Com a voz já me deparei com uma paleta infindável de referências. Foi-me mais natural como cantor ir para a tradição do jazz. Estranhamente, ainda não encontrei ninguém quem possa tocar comigo um jazz mais convencional, mais swingado. Ainda não encontrei um baterista e um contrabaixista da escola clássica do jazz com quem me identifique, alguém que não esteja na onda feia e fria do jazz português. E digo-te, isso entristece-me. 

 

Em que linhagem do violino te inseres? Quais são as tuas referências e o que pretendes fazer com o violino, que utilizas com amplificação e pedais de efeitos, lembrando certas utilizações violinísticas rock?

Em que linhagem me insiro? Ui, não sei! No que toca a influências bastante directas, bem, se Carlos “Zíngaro” e Jon Rose tivessem um filho juntos, e que este fosse criado por Leroy Jenkins numa fase estranha em que o Leroy só tocasse hip hop dos anos 1990 num “talk show” apresentado por Ray Nance, eu poderia ser essa pessoa!  É uma pergunta a que não te sei responder. Acho que é demasiado cedo para poder dizer qual é a minha linhagem. Se daqui a 20 anos eu tiver um corpo de trabalho com características que o possam identificar, essa será a minha linhagem. Agora não sei, sou uma miscelânea imensa de tanta coisa, ainda que seja muito eu, muito a minha própria escola, numa teimosia de não me deixar influenciar em demasia.

Os nomes que indiquei são os que violinisticamente me servem de exemplo, sim, mas as minhas referências são, acima de tudo, não-violinísticas, indo do minimalismo de um William Basinski ao repetitivismo de Philip Glass. Do hip hop duvidoso de Eminem (porra, o homem tem uma forma de usar a palavra que me deixa parvo) ao hip hop jazzistico dos Pharcyde ou de Flying Lotus, altamente contemporâneo. Do noise performativo de Hanatarash ao trabalho de Kevin Drumm e de James Newton Howard. Da ginga que encontro em Heitor Villa-Lobos à esquizofrenia do Arrigo Barnabé ou à eloquência de Arthur Russell. Da profundidade de “Black and Blue” de Louis Armstrong à felicidade que encontro quando o mesmo canta temas como "You Rascall You".

Além da quantidade de mathcore e hardcore que me influenciou tanto durante tantos anos (Daughters, The Number Twelve Looks Like You, The Locust, barulho matemático do melhor), da folk que tanto me bate, da música electrónica que me faz mexer e da outra música electrónica que me frita todo, experimental e infinitamente intrincada. A lista é interminável. Não só acho que me influencia, como consigo identificar naquilo que toco onde é que estas coisas estão e onde me levam as frases, a forma, os sons e até o modo como agarro e olho para o violino. 

É curioso que não tenha muitas referências de violinistas fora do jazz e do free, e muito menos do rock – alguns, mas nenhum deles forte o suficiente para me impressionar, pois, regra geral, usam cores que não me fascinam, uma espécie de Pontys fora da altura Zappa, tudo muito foleiro. Muito menos de violinistas que usam pedais, por estranho que pareça. Talvez Warren Ellis, mas acho que aprecio mais o trabalho dele enquanto parte do grupo de Nick Cave do que propriamente enquanto violinista. Acho que as minhas influências relativas ao violino amplificado vêm da guitarra. De resto, a minha postura enquanto violinista é a de um guitarrista que utiliza distorções pesadas e “riffs”. Com muita influência do noise, em que a delicadeza das cordas é substituída pela força toda da amplificação, com ruído, ruído, muito ruído. 

Uma grande festa

Neighbours por Mariana Bártolo 

Já te referiste aos grupos Aye-Aye, Neighbours e Pás de Probléme, mas peço-te agora que caracterizes esses projectos, bem como outros em que estejas envolvido… 

Há alguns novos na calha, com Yaw Tembe e Bernardo Álvares. Com Miguel Mira há a intenção de constituir um quarteto de cordas de free jazz, ou pelo menos um duo. Os Neighbours surgiram da minha relação de amizade com António Duarte, mas ele entretanto foi para Amesterdão e agora só tocamos quando conseguimos. Os Aye-Aye são uma banda de noise, mas um noise muito “groovy”, quase dançante. Temos Felix Lozano connosco, um bailarino com uma escola bastante peculiar. Há uma poética muito interessante nos Aye-Aye – eu cuido da palavra, explorando um universo meio “noir” e demente, assim como que uma ode,de celebração da violência. 

Os Pás de Problème são uma grande festa e uma grande arruaça. Começámos já a ser conhecidos por uma boa quantidade  de pessoas que nos segue em todo o País. Pás de Problème é a Real Padrada. É todo um léxico, um universo imenso, numa banda com uma atitude quase punk, porque somos Gajos da Rua, mas festiva. Tem altas influências ciganas e jazz, com trombone, saxofone alto, clarinete, violino, vozes, guitarra, baixo, bateria. Nós os oito temos vindo a criar uma linguagem sem sequer nos apercebermos disso, com alter-egos, com poesia, com um gozo brutal em tocarmos aquilo que tocamos. Com o passar do tempo fomos evoluindo tecnicamente e  a arruaça foi ficando séria, mas nunca se perdeu. Foi-se criando um culto à nossa volta e vamos trazendo quem se aproxima de nós para dentro deste universo. O que faz com que não sejamos só uma banda, é muito mais do que isso, é algo de muito familiar, muito humano. 

 

Integraste igualmente a nova formação dos In Loko de Carlos Barretto, como aliás já referiste. O que estão a fazer por estes dias?

Demos um concerto no Verão passado que correu bem. Trabalhámos durante quase dois meses para isso, com as participações de Mário Delgado, José Salgueiro, Selma Uamusse e um naipe de sopros. Entretanto, tiveram de sair dois membros do grupo, e depois de umas semanas parados e com um saxofonista e um trompetista novos, só agora voltámos a ensaiar e estamos a olear a coisa, a ver arranjos, a trabalhar novos temas e a criar repertório. Sinceramente não sei dizer qual será o futuro do grupo. Acho  que ainda está à procura de uma linguagem que o defina, até porque reúne pessoas com “backgrounds” diferentes, mesmo que lá estejam aqueles três colossos, os membros dos Lokomotiv, que definem logo à partida uma sonoridade.

 

O que é a TRIPA, trabalho que estás agora a desenvolver tendo como suporte a estação de rádio “online” Stress.FM?

Desde sempre que brinquei muito com os sons que consigo produzir com a boca, que vão de um “beatbox” baratinho a um canto lírico descontrolado. Desde imitar o som do pisca do carro a vocalizar como se estivesse numa banda de death metal (com pouco sucesso, devo dizer), passando por aqueles sons todos que me saem da garganta ou do ranger dos dentes. A TRIPA surgiu no MIA deste ano. Tinha conhecido Adriano Lopes e foi das primeiras vezes que vi Maria Radich. Estava na rua a falar com o Boris, dos Aye-Aye, com o Adriano e com Joana Guerra quando me surgiu a ideia e comuniquei-lhes logo a intenção. Fiz o convite ao Adriano, que aceitou de imediato, e desde esse dia tenho vindo a construir a coisa.  

Queria trabalhar só com a voz, algo que já tinha começado a fazer no teatro, designadamente num espectáculo do Teatro do Silencio em que a banda sonora era toda ela feita com os sons da minha voz, e quis deixar o violino na mala e ir do “scat” ao drum n' bass, passando pela imitação das máquinas todas que existem. Porquê ser na Stress.FM? Por uma razão muito simples: a TRIPA é um projecto experimental e, se já há poucas salas decentes para tocar uma música mais popular, então para a música experimental não há de todo. Não me estava a apetecer fazer mais um concerto banal, num sítio roufenho com o mesmo público de sempre. Seria um ritual de mais do mesmo e senti que precisava de criar outro espaço. Propus à Stress fazer os três primeiros concertos da TRIPA em emissões em directo, até porque a voz tem uma ligação muito íntima com a rádio. O facto de a TRIPA começar na rádio reforça-lhe o carácter de objecto sonoro, pois é disso que se trata. 

Mas não quero que a TRIPA se fique por um conjunto de perguntas sem resposta. Assim, pretendo oscilar entre a pesquisa da música improvisada e o lirismo de uma boa cantiga. Por isso, se por um lado retomo perguntas já feitas por Meredith Monk, Fatima Miranda ou Maria João, desejo muito que o projecto ganhe outros contornos, seja mergulhando na cultura pop (tipo Adventure Time) ou no fritanço completo (à la Ex-Models). Não procuro o som pelo som, mas o som com significado, que vai de um lirismo poético (Lopes) com todas as sílabas sibiladas, cortadas e manipuladas até à experimentação do detalhe e daquilo que vem antes da linguagem, como a trama sonora de um zumbido (Radich).

Eu pretendo fazer alguma coisa próxima do free jazz, mas não quero de todo enclausurar-me nesse conceito. Muitos músicos que fazem free julgam que só se pode fazer free e esquecem-se que existe um milhão de outras coisas que também soam bem. Quero incluir o hip hop e a balada, com o cuidado necessário para não parecer tudo uma salganhada.

 

Falaste do Teatro do Silêncio. O que é?

O Teatro do Silêncio é, em primeiro lugar, Maria Gil, a força da Maria e a imparável vontade dela de criar e fazê-lo bem, com uma sensibilidade artística que admiro muito. Essa vontade da Maria estende-se a diferentes colaborações com outros artistas e criadores, uns que simplesmente passam pelo Teatro do Silêncio e outros que vão tendo um trabalho em continuidade, tal como o cenógrafo Pedro Silva e eu. Encontrei a Maria quando fiz um “workshop” do TS, o "Outras Escritas para Teatro". Nesse ano a Maria convidou-me a participar num espectáculo que era o "Cartas, Telegramas e Postais", que esteve em cena no Negócio da ZDB, e desde aí tenho trabalhado bastante com ela, ano após ano, passando por sítios como o Lavadouro de Carnide ou o Centro Cultural de Belém. 

O teatro com a Maria é bastante experimental. Usamos pouco o palco no seu sentido clássico. Na nossa mais recente criação, tínhamos connosco a bailarina Sara Anjo e esse espectáculo, que a Maria encenou e eu e a Sara interpretámos, representa perfeitamente o meu crescimento enquanto artista. Com a Maria tenho total liberdade naquilo que faço e isso tem-me permitido evoluir bastante. 

Isso agora…

Com João Baião 

És membro e um dos fundadores do Colectivo Jaime Augusto, um organismo de intervenção artística a nível comunitário. Quais são os seus objectivos (e quem é o “Jaime Augusto” do nome)?

O Colectivo Jaime Augusto nasceu da vontade de três membros dos Pás de Problème. Começámos por querer fazer um concerto mais “completo” que incluísse uma exposição e envolvesse artistas plásticos. Quando demos por nós, a situação já transcendia a banda e o concerto. Fizemos um Open Call e numa questão de dias chegaram-nos respostas de dezenas de artistas com trabalho muito bom e que queriam colaborar connosco. Foi incrível.

Estabeleceu-se uma rede enorme de pessoas em torno de duas ideias: a análise do estado das artes e dos artistas, numa perspectiva de destruição do formalismo artístico, e a vontade de reunir pessoas, entendendo a colaboração como ponto de partida para a criação. São ambas ideias difíceis de colocar em prática, mas tiveram um sucesso enorme nesta iniciativa a que demos o nome de Sycadelic What The: Fuck. A exposição teve um mês de duração, com uma festa de abertura e outra de encerramento por onde passaram mais de 600 pessoas. Em ambas as festas tivemos concertos, performances e “happenings”. A exposição propriamente dita foi multidisciplinar e contou com cerca de 20 artistas, do vídeo ao desenho.

Agora o Jaime Augusto está em casa, a planear a próxima comunhão. Esta não se ficará por um “evento”. O acontecimento será a própria criação colectiva. Ah! Quem é este Jaime Augusto? Isso agora…

 

Estás igualmente activo como programador / curador, à frente de um festival de improvisação, o ASDAFSKJ, que procura o envolvimento da comunidade de um bairro de Lisboa, o Intendente. Que trabalho é esse e qual o seu alcance, que me parece ir para além da música? 

O próprio facto de se fazer na Casa dos Amigos do Minho, em plena Rua do Benformoso, acabou por trazer essa dimensão ao festival. De qualquer modo, essa relação com a comunidade do Intendente não surgiu com o ASDAFSKJ, vem de trás, do meu envolvimento com a associação cultural SOU, que deixou os Anjos para se sediar no bairro. 

O ASDAFSKJ teve a sua primeira apresentação em Setembro deste ano e a minha ideia era fazer um festival onde as “outras formas de música improvisada” se reunissem, sem os vícios muito pouco musicais que tantas vezes essa música livre tem. O objectivo não era, à partida, ter uma relação directa com o Intendente e com o que ali se passa, mas isso acabou por acontecer. Tivemos até um grupo de raparigas ciganas de origem romena a assistir aos dois dias do festival. Uma delas tinha cerca de 10 anos. Com tanto falatório sobre a arte na comunidade, acho que nada há de mais puro do que um público tão distinto a ouvir noise ou improvisações de contornos estranhos.

 

Andas também a fazer crítica de música para cinema e de cinema. Ou seja, o teu interesse vai para além da música, do teatro e da dança...

Certo dia, não me lembro exactamente que idade é que tinha, lembrei-me de procurar na Net pela música dos desenhos animados do X-Men e qual não é a minha excitação quando descobri que era possível ouvir o genérico, um minuto de música instrumental, de uma forma independente da animação. Foi aí que tudo começou. Daí encontrei com facilidade John Williams, Hans Zimmer ou aquele que se veio tornar no compositor de bandas sonoras que mais mexe comigo, James Newton Howard. Percebi que havia um formato que, além de servir a narrativa cinematográfica, tinha um valor musical intrínseco.

Foi com alguma naturalidade que comecei a escrever sobre cinema. Passei por alguns “sites” e revistas de cinema que já nem existem. Como sempre tive gosto pela edição de áudio e já escrevia sobre cinema e sobre música num blogue, a coisa acabou por acontecer: surgiu o Main-Titles na rádio Stress.FM.

 

Para saber mais

http://cargocollective.com/gildionisio

Agenda

10 Junho

Imersão / Improvisação

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

O Vazio e o Octaedro

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Marta Hugon & Luís Figueiredo / Joana Amendoeira “Fado & Jazz”

Fama d'Alfama - Lisboa

10 Junho

Maria do Mar, Hernâni Faustino e João Morales “Três Vontades de Viver”

Feira do Livro de Lisboa - Lisboa

10 Junho

George Esteves e Kirill Bubyakin

Cascais Jazz Club - Cascais

10 Junho

Nuno Campos 4tet

Parque Central da Maia - Maia

10 Junho

Tim Kliphuis Quartet

Salão Brazil - Coimbra

10 Junho

Big Band do Município da Nazaré e Cristina Maria “Há Fado no Jazz”

Cine-teatro da Nazaré - Nazaré

10 Junho

Jorge Helder Quarteto

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

11 Junho

Débora King “Forget about Mars” / Mayan

Jardins da Quinta Real de Caxias - Oeiras

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