Francisco Andrade, 14 de Janeiro de 2014

Aberto à mudança

texto Nuno Catarino

Jovem músico com sólida formação, Francisco Andrade é um saxofonista com uma invulgar intensidade expressiva. Além de pedagogo, tem desenvolvido alguma actividade musical em nome próprio, ao leme do muito interessante Clash Trio - na companhia de Javier Galiana (piano) e João Lencastre (bateria). Integra um dos mais curiosos grupos nacionais, Open Mind Ensemble, um grupo de improvisação semi-dirigida por Luís Bragança Gil - ao lado de Luís Vicente, Miguel Mira e Paulo Pimentel, entre outros. Faz parte do quinteto GRIP5, liderado pelo baixista Ricardo A. Freitas.

Entretanto, arrancou com um novo quarteto, que promete muito, reunindo Rodrigo Pinheiro (piano), João Lencastre e Albert Cirera (saxofone tenor). Participa ainda em vários outros grupos, atravessando géneros sem medo, do jazz em aformato “big band” à world music, do dixieland ao funk. O futuro está à sua espera, mas Francisco não tem pressa.

 

Como e quando é que te interessaste pelo jazz?

O meu interesse pelo jazz começou desde o momento em que entrei para o Conservatório. Comecei por tocar numa banda de Dixieland e na Orquestra de Sopros orientada pelo Prof. Aquilino Domingos Silva. Nesta orquestra tocávamos muito repertório ligeiro, com alguns solos escritos, de que eu gostava bastante pois eram desafiantes, quer tecnicamente, quer ao nível da leitura. Entretanto, deu-se início a um protocolo entre a escola do Hot Clube e o Conservatório da Madeira. Aos fins-de-semana, comecei a frequentar as aulas dadas pelos professores do Hot Clube (João Moreira, Pedro Moreira, Filipe Melo...). Depois, com a minha vinda para o Continente, tive de abandonar o estudo do jazz para me dedicar a 100% ao clássico. O bichinho do jazz ficou em estado de hibernação até uns anos mais tarde.

 

Porque escolheste o saxofone e como foram a tua aprendizagem, o teu percurso e a tua evolução?

Tudo começou por causa de uma canção dos Boney M, “Rasputin”. Pelo menos é esta a memória que tenho quando me tento lembrar como tudo isto começou. Meti na cabeça que gostaria de tocar aquele tema, tal como aqueles músicos que eu via tocar em cima de um coreto nas festas de Agosto da paróquia. Em Setembro comecei à procura de uma banda filarmónica para começar. E fui bater à porta da Banda Recreio Camponês, onde comecei as minhas lições de solfejo. Passado pouco tempo deram-me um trompete para as mãos. Mas eu não atinei. Penso que fui influenciado pelo meu irmão, que recebeu primeiro o instrumento. Passados uns dias cheguei à banda e disse que queria mudar para o saxofone tenor e desde esse dia que não o largo. Um ano depois, o meu mestre, o Sr. Quintal, levou-me, a mim e ao meu irmão, até ao Conservatório da Madeira, onde fizemos a nossa inscrição. Frequentei dois anos.

No segundo ano também se iniciou uma parceria entre o Hot Clube de Portugal e o Conservatório da Madeira. E consistia em alguns professores irem à Madeira dar aulas. Frequentei um ano esse curso de jazz. Nessa altura aventurei-me a participar numa “masterclass” em Santa Maria da Feira, que tinha como cabeça-de-cartaz um saxofonista francês de que eu gostava, e continuo a gostar, muito, Jean-Yves Fourmeau. Nesta “masterclass” conheci o Prof. Francisco Ferreira, que me desafiou a vir estudar com ele para a Escola Profissional de Música de Espinho.

Fiquei muito entusiasmado com a ideia e em Setembro de 2000 estava a chegar a Espinho com um instrumento emprestado e a minha bagagem. Neste período concentrei-me apenas no estudo do saxofone clássico. Passados três anos concluí o curso profissional. Tentei concorrer às escolas superiores e não consegui entrar. Voltei à Madeira e trabalhei um ano no Modelo, na secção de frutas e legumes, enquanto me preparava para voltar a candidatar-me no ano seguinte. Finalmente, entrei para uma licenciatura no Piaget de Almada, na classe do Prof. Mário Marques. Aqui voltei a ter contacto com o jazz, pois também tive como professores João Moreira e Pedro Moreira. Entretanto, vim viver para o Barreiro e conheci a Escola de Jazz do Barreiro, onde iniciei as aulas de combo com Mário Delgado.

Foi assim que comecei a perceber que o jazz era a forma de expressão com a qual me identificava mais, e isto também se deveu ao facto de já estar saturado da música clássica. Decidi procurar um professor de saxofone jazz. Por recomendação de Mário Delgado conheci José Menezes na Academia dos Amadores de Música, onde estive a estudar durante um ano. Com a abertura das licenciaturas em jazz decidi concorrer, acabando por ficar colocado na Universidade de Évora, onde obtive esse grau académico no ano lectivo 2011/2012.

É este, resumidamente, o meu percurso. Hoje relembro o dia em que consegui tocar aquela música que deu início a tudo isto. Foi uma alegria muito grande, porque finalmente eu era um daqueles músicos que estava em cima do coreto a tocar a música de que tanto gostava.  

Inspirações de vida

 

Quais foram os discos de jazz que mais te marcaram?

O primeiro disco que me marcou profundamente foi o “Naked City” de John Zorn. Nunca mais esquecerei aquela entrada do Zorn logo no primeiro tema. Outros discos importantes: “Interstellar Space” e “A Love Supreme” de John Coltrane; “Go” de Dexter Gordon; “Lush Life”, “In 'n Out” e “Page One” de Joe Henderson; “Momentum Space” de Dewey Redman; “Space is the Place” de  Sun Ra; “Ghosts” de Albert Ayler; “Speak No Evil” de Wayne Shorter; “Basie Straight Ahead” de Count Basie; “Saxophone Colossus” de Sonny Rolins; “Brilliant Corners” de Thelonious Monk; ”Blues Up and Down” de Eddie “Lockjaw” Davies e Johnny Griffin.

 

Quem são os saxofonistas que te continuam a inspirar?

Os saxofonistas que me inspiram são muitos. Desde a clássica, músicos como Jean-Yves Fourmeau, Claude Delangle, Mario Marzi, Marcel Mule, Arno Bornkamp, Frederick Hemk, Ryo Noda e Sigurd Racher... Passando ao jazz, Sonny Rollins, Archie Sheep, Steve Grossman, Charlie Parker, Wayne Shorter, John Zorn, Pharoah Sanders, Dewey Redman, John Coltrane, Albert Ayler, Ben Webster, Jerry Bergonzi, Joe Lovano, Joe McPhee, Hank Mobley, David Murray, Ike Quebec, Ornette Coleman, Ellery Eskelin, Charlie Rouse, Chris Speed, John Tchicai, John Butcher...

 

Segundo percebi, nasceste na Venezuela, vieste para Portugal e estudaste na Madeira, em Almada, Espinho, Barreiro e Évora. Conseguiste adaptar-te facilmente a todas estas mudanças? Essa facilidade com a mudança reflecte-se na tua música?

A minha primeira grande mudança deu-se aos 16 anos, quando decidi vir estudar para Espinho. Essa mudança foi um bocadinho dura, porque vim para um sítio que não conhecia, apenas com um instrumento às costas e uma mala. A única coisa que sabia é que na estação de comboios de Espinho estaria um rapaz à minha espera e que iria ser o meu colega de casa. A partir desse momento deu-se o princípio de uma longa aventura, com muitas mudanças loucas, mudanças doces, mudanças agridoces, mudanças tristes. Creio que até à presente data já provei o sabor de muitas mudanças. Espero continuar assim, é sinal que há vida em mim. Claro que tudo isto se reflecte na minha música, porque durante todo este percurso fui encontrando música e músicos de diferentes áreas que me mostraram e ensinaram coisas incríveis a este nível. Esta é uma experiência que não tem preço. Aquilo que sou hoje é um pouco de tudo o que já passei, com certeza.

 

A primeira vez que te vi tocar foi na Festa do Jazz do São Luiz, integrado no combo da Escola de Jazz do Barreiro, em 2006. Essa participação foi importante para ti?

Foi muito importante, porque foi aí que decidi dedicar-me ao jazz a 100%.

 

Dás aulas na Escola de Jazz do Barreiro, certo? Em que medida é que esta actividade se concilia com a tua produção musical?

Certo. E para além da Escola de Jazz do Barreiro dou também aulas na New Music School (antiga Valentim de Carvalho de Lisboa) e aulas particulares. Isto de dar aulas foi para mim uma revelação, na verdade. Enquanto estudante sempre pensei que não iria ter jeito para ensinar uma criança a aprender saxofone. Achava que não iria conseguir expressar-me de forma clara. Isto porque há coisas no nosso percurso que não foram ensinadas, apareceram do nada, o tal “click” de que muito se fala quando estamos a aprender. É uma coisa que não se ensina, aparece sem estarmos à espera, simplesmente.

Entretanto, quando acabei a licenciatura e comecei a dar aulas, há cerca de três anos, percebi que consigo ensinar. Lembro-me que nas primeiras aulas que dei fui buscar coisas do meu professor da Escola Profissional de Espinho, Francisco Ferreira, e outras do meu Mestre Sr. Quintal, coisas de base que me foram ensinadas de forma clara e simples. É muito desafiante para mim ensinar, pois trato todos os meus alunos de forma diferente e tento passar a informação consoante a personalidade e a necessidade de cada um. Isto leva-me a desenvolver a capacidade de explicar uma coisa de diversas maneiras.

É esta experiência que considero que não tem preço. Ao ensinar, estou a consolidar e a amadurecer toda a informação que me foi dada na universidade e também a informação que vou apanhando no meu dia-a-dia. Tem sido uma experiência muito gratificante e enriquecedora para mim, mas sei que ainda tenho muito para aprender no que toca ao ensino da música, nomeadamente no jazz. Creio que daqui a uns 10 anos estarei um bocadinho melhor.

 

Um dos projectos em que estás envolvido é o quinteto Grip5, liderado pelo baixista Ricardo A. Freitas. O que tens ganho a trabalhar neste grupo?

Com Ricardo Freitas tenho ganho muita coisa. Tocar a música dele não é muito fácil à primeira. É necessário perceber o sentido das coisas que ele escreve, saber dar a interpretação certa e ter alguma destreza técnica. É preciso algum tempo para que ela se entranhe no nosso discurso. São todas estas coisas que eu ganho ao trabalhar com o Ricardo ou com outro grupo que tenha originais. Gosto de saber a história das músicas, ou a história que aconteceu para aquele tema ser escrito, pois assim entro mais facilmente naquele imaginário e a interpretação acaba por ser mais genuína. Espero que em breve saia uma gravação que fizemos no Verão. Seria uma pena que música tão fresca e interessante como a de Ricardo Freitas ficasse esquecida. 

Sentidos despertos

 

Um projecto que está a despertar algum burburinho é o Open Mind Ensemble. Este é um projecto de improvisação semi-dirigida e sei que está prevista a edição de uma gravação. O que podemos esperar deste grupo?

Estou nos Open Mind relativamente há pouco tempo. Fui lá parar através de João Lencastre e foi “amor à primeira vista”. Logo na primeira sessão senti que estava ali um grupo de pessoas com uma vontade incrível de fazer música à sua maneira, com as suas regras. Gosto muito desta forma de estar perante a música. Para mim foi relativamente fácil integrar-me, porque compreendi logo os sinais de Luís Bragança Gil (direcção), bem como o objectivo e a sinergia do grupo. Com isto percebido, só me restava “desbundar” e divertir-me com todos.

O que podem esperar deste grupo? É uma questão difícil de responder. Creio que vai depender muito de pessoa para pessoa e da forma como cada um interpretar a música dos OME. Posso adiantar que já mostrámos o disco a algumas pessoas e tivemos “feedbacks” muito distintos... A música é assim mesmo. Posso dizer-te que, quando oiço os Open Mind, aquilo que me cativa muito é sentir a forma honesta com que cada um dos membros contribui para a música que está a ser criada em tempo real, a forma como os sentidos de cada um estão despertos, a paixão que cada um põe enquanto toca, as convicções, as próprias limitações, a amizade e a cumplicidade. Creio que a melhor forma de saber o que são os Open Mind é assistir a um concerto e no final cada um tirar as suas ilações de acordo com as suas sensibilidades. 

 

Tens tocado também com outros grupos, com a Reunion Big Band (orquestra de jazz) e os Yemanjazz (world music). O que te leva a abordar géneros tão distintos?

Aquilo que me leva a tocar coisas distintas é a minha necessidade de perceber cada estilo, ou forma de interpretar a música. Creio que nos dias de hoje temos de estar cada vez mais aptos a tocar qualquer coisa. Eu pelo menos vejo isso assim. Não me interessa tocar só uma forma musical, não sou purista. Gosto de aprender com o que cada linguagem musical tem para me ensinar, a nível de vocabulário e técnica. No final serão estes e outros aspectos que nos tornam mais ricos musicalmente. Acima de tudo, espero um dia conseguir seguir uma direcção, que será a minha, independentemente de todas as outras coisas que vou fazendo.

 

Lideras o Clash Trio, com Javier Galiana e João Lencastre. Neste grupo são tocadas composições tuas. Já tocaram ao vivo? Para quando uma gravação?

Com o Clash Trio já tocamos ao vivo umas três vezes e foram sempre muito intensas e divertidas. Estou a tentar arranjar mais alguns concertos para rodar os temas e, possivelmente, gravar depois. Espero continuar a escrever música para este trio, que me tem dado imenso prazer, não só pela música, mas também pela cumplicidade e pela partilha que existe com o Javier e o João. Dou imenso valor a estes aspectos: a partilha e a cumplicidade. Creio que são os ingredientes essenciais para se criar alguma coisa que se identifique connosco. É bom ver a nossa música nascer, crescer e amadurecer.

 

Sei que tocaste entretanto com um novo projecto, um quarteto com Rodrigo Pinheiro, João Lencastre e Albert Cirera. Há planos para este grupo?

Tenho alguns planos, sim. Para já espero fazer alguns concertos e dar-nos a conhecer. Foi muito boa a primeira sessão que fizemos, com muita energia, e deu sobretudo para nos conhecermos musical e pessoalmente. Já tinha ouvido Rodrigo Pinheiro, mas nunca tocara antes com ele e gostei muito da sua música e da pessoa. Albert Cirera é a minha alma gémea do saxofone. Desde o primeiro momento que o ouvi quis logo fazer alguma coisa com ele e tem sido incrível a nossa cumplicidade musical. Entretanto, irá integrar este quarteto o meu amigo Afonso Castanheira, no contrabaixo, para completar o ramalhete. Espero poder escrever algumas coisas para esse quinteto, pois nem tudo será música improvisada. Também gosto de definir estruturas.

      

Além destes, em que outros projectos estás actualmente envolvido?

Para além dos que já referiste, neste momento dirijo a Big Band da Escola de Jazz do Barreiro. Faço parte integrante dos grupos OnDixie (dixieland), What Tha Funk (funk) e Tumbala (animação de rua). E de um duo com Paulo Pimentel, de música improvisada (saxofone e piano).

 

Como vês o actual panorama do jazz português, tu que fazes parte da sua nova geração?

Neste momento vejo o panorama musical português de forma positiva. Creio que estamos a assistir a uma explosão de talento e inspiração em Portugal. Começam a aparecer muitos músicos, com coisas de enorme qualidade e criativas. Creio que há uns anos a música em Portugal resumia-se a uma meia dúzia de músicos. Hoje há muita gente a tocar bem e com talento de Norte a Sul do País. Num futuro próximo muito destas pessoas vão dar “cartas” em qualquer parte do mundo. Gosto da forma como as coisas se estão a direccionar. É importante descentralizar, é muito bom que aconteça e cada vez se vê mais isso, com as novas editoras que vão surgindo e as “novas capelinhas” que se vão manifestando. Isto é positivo, pois é a necessidade que todos temos de nos afirmar enquanto artistas. Há que continuar a lutar pelas nossas convicções. Acredito que há lugar para todos, pois a música faz parte de um universo infinito. 

 

Quais são os teus planos para o futuro?

Em primeiro lugar, espero poder continuar a fazer aquilo de que mais gosto, que é tocar. E espero continuar a partilhar conhecimentos com os meus alunos e vê-los crescer. Possivelmente, gostaria de fazer um mestrado fora de Portugal, mas não tenho pressa. Quero continuar a adquirir conhecimento com as pessoas com quem me identifico. Principalmente, quero gravar a minha música e sentir que evoluí, quer a nível pessoal, quer a nível musical.

 

Para saber mais

http://figueiraandrade.wix.com/saxofone

www.escolajazzbarreiro.com.pt/#!francisco-andrade/c22ag

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