Mil universos diferentes
Actualmente a residir em Amesterdão, o guitarrista português Pedro Branco tem vindo a afirmar-se rapidamente na cena jazz nacional. Branco tem vivido intensamente este ano de 2016: editou um disco em trio com Jorge Moniz e João Custódio (“Reencontro”), apresentou-se ao vivo com o seu quarteto no Hot Clube, tocou e gravou com o quarteto de rock Oh! Calcutta!, desenvolveu um duo com o baterista João Lencastre e lançou a editora Flea Boy Records.
Além de tudo isto, Pedro Branco acaba de apresentar um novo disco - “Dancing Our Way to Death” -, numa parceria com o contrabaixista João Hasselberg. Neste álbum original pululam melodias sentimentais que convocam histórias, arranjos sofisticados e interpretações instrumentais elegantíssimas. Sem medo da morte, Pedro Branco apresenta-se.
Antes de mais, como começaste a tocar? Porque escolheste a guitarra?
Os meus pais deram-me a minha primeira guitarra quando tinha 12 anos. Depois foi o processo natural de um miúdo dos subúrbios de Lisboa… Fui para uma escola de música local e tive aulas de guitarra clássica. Depois, aos 15/16 anos, comecei a ter as minhas primeiras bandas de rock e a interessar-me por outros tipos de música. Aos 18 comecei a estudar jazz, fui para a Universidade Lusíada, estive lá três anos e acabei a licenciatura. Depois fui para Amesterdão e acabei a minha segunda licenciatura.
Quais foram os discos de jazz que mais te marcaram no início?
Não tenho uma resposta politicamente correcta… Acho que conheci primeiro Mary Halvorson e só depois Miles Davis! Lembro-me que comecei a ouvir um quinteto da Mary Halvorson, o “Saturn Sings”, e esse tipo de sonoridade pegou-me automaticamente. Primeiro ouvi muitas bandas de pós-rock – Mogwai, Explosions In the Sky… - e foi por aí que comecei a descobrir coisas diferentes. Claro que a seguir vieram os grandes clássicos, como o “A Love Supreme”. Lembro-me bem da primeira vez que o ouvi e foi um estrondo. Mas é assim: antes de chegar a Lester Young ouvi primeiro Mary Halvorson e Steve Lehman. O que também faz parte da era em que vivemos.
Este ano editaste o disco “Reencontro”, num trio com Jorge Moniz e João Custódio. Como surgiu este grupo?
O Jorge foi uma pessoa importante no momento em que comecei a entrar na comunidade jazzística (seja lá isso o que for…). Ele era professor na Universidade Lusíada, ouviu-me a tocar e ficou interessado, pelo que combinámos umas sessões informais. A coisa resultava e eu gostava muito das composições dele. Ele tem uma escrita própria, uma escrita muito portuguesa. Entretanto, fui para Amesterdão e ele disse-me: «Porque é que não gravámos um disco?» Juntámos repertório, com temas meus e dele, e porque o Jorge sempre tocou muito com João Custódio, este foi uma escolha natural e resultou. Acho que está um disco muito honesto. E estou-lhe muito grato por me ter dado a oportunidade de explorar as minhas composições e de acreditar. Eu era um puto ao pé dele e foi porreiro ter tido a oportunidade de ir para estúdio… Vamos estar no Hot Clube em Dezembro. Não sei se é um projecto para continuar, mas deu-me muita satisfação e experiência e estou-lhe muito grato.
A coisa funcionou
Um dos teus projectos mais relevantes é o quarteto com Allison Philips, João Hasselberg e Luís Candeias. Para quando um disco?
Este projecto tem toda a importância do mundo para mim. Começou há três anos, quando Luís Candeias me desafiou. Desenvolvemos a ideia, comecei a escrever temas e tocámos algumas vezes. Depois, em Amesterdão, conheci a trompetista Allison Philips e a coisa funcionou. Já tocámos no Hot Clube, no OutJazz e no circuito de bares. E gravámos um EP, que deve sair ainda este ano… Com a edição do disco fecha-se um ciclo. Estou muito feliz com os resultados.
Também estás envolvido no grupo Oh! Calcutta!, um projecto diferente, com um registo mais ligado ao rock…
É um projecto de rock/noise. Gravámos um EP, temos tocado regularmente e já fizemos uma digressão em Itália... Dá-me muito prazer porque é um bocado fora, a malta está lá, aplaude, grita… Há uma grande empatia entre o público e a banda. Toco com pessoal como Tristan Renfrow, que é um tipo imprevisível… Tanto pode correr tudo bem como acabar preso! A definição de jazz é essa, não é? Sermos improvisadores na vida também…
Também tens um duo com João Lencastre.
Comecei a tocar com o Lencastre numa sessão em que acho que também estava André Rosinha… Com ele houve logo um clique, encontrámo-nos automaticamente. Podemos passar quatro meses sem tocarmos juntos e, sem dizermos nada, a primeira nota está lá! São raras as vezes em que isso me acontece. Experimentámos algumas formações. Eu tinha um dia livre num estúdio, liguei ao Lencastre, ele aceitou e gravámos várias horas de música completamente improvisada! Saíram mil universos diferentes… Agora essa gravação foi misturada e masterizada e em princípio vai sair para o ano.
Além destes, com quem mais tens tocado?
Tenho outros projectos que estão a arrancar, um deles com Michele Tino, um saxofonista italiano. Estamos a pensar gravar um disco. Tenho tocado muito com João Sousa, um baterista que está a viver em Haia. Temos um quarteto. E também trabalho como “freelancer”…
Estás também ligado à fundação de uma nova editora, a Flea Boy Records. Como é que isso aconteceu?
Juntamente com outros colegas músicos de Amesterdão, resolvemos fundar uma editora/colectivo. Ainda é uma coisa recente, estamos a prever editar cinco EPs até Março… Já editámos um disco, o trio de Allison Philips, e em Novembro vamos editar o grupo da pianista Liya Grigoryan. A editora surgiu pela necessidade que nós sentimos de não depender de ninguém para divulgar a nossa música, e para conseguir marcar mais concertos, sem intermediários. A verdade é que, hoje em dia, é fácil mostrar a nossa música às pessoas. Sentimos essa necessidade de criar uma espécie de “comunidade”. Já temos noites programadas, temos acordos com gráficas e estamos a reunir contactos para festivais. A coisa está a arrancar. Espero que a médio/longo prazo dê frutos.
Acaba agora de ser editado o disco “Dancing Our Way to Death”, assinado a meias com João Hasselberg. Como surgiu esta parceria?
O “Hassel” já tocava no meu quarteto, ficámos amigos de imediato. Para mim é muito importante, quando tocamos em bandas, a malta dar-se bem. Lembro-me de uma “masterclass” em que um músico famoso dizia que a coisa mais importante para ele, quando andava em “tour”, não era se os músicos tocavam bem, era se os músicos eram limpos! Limpos mesmo no sentido de tomarem banho, de andarem bem vestidos… Se vais tocar duas semanas com um gajo, se ele não toma banho pode ser o maior génio mas não vais querer voltar a tocar com ele! Isso é cada vez mais importante para mim. E felizmente o “Hassel” toma banho! [risos]
A relação pessoal é quase tão importante como a musical e as duas coisas interligam-se. Com o “Hassel” houve logo química desde o início. Começámos por tocar no meu quarteto, depois íamos combinando sessões. Numa altura ele disse-me que estava a gostar da minha música e que andava a experimentar coisas diferentes. Começámos a falar muito (email, mensagens, Facebook) e a aproximar-nos. Em Junho passado ele mandou-me uma mensagem simples: «Tenho o auditório do Seixal. Gravamos um disco?» Eu respondi logo: «Sim, claro.» E ele: «Mas é já para daqui a um mês!» Foi uma coisa muito impulsiva. Se não tivesse sido tão impulsiva não teria resultado assim. Eu quis escrever música completamente nova, tivemos um mês para compor temas e pensar no conceito… «O que queremos dizer?» Pensámos no tipo de som, de texturas, de imagens que queríamos. Percebemos que tínhamos muitas influências. Quisemos meter tudo num caldeirão e tornar a coisa o mais honesta e real possível.
Saiu aquilo
O disco conta com vários convidados: Afonso Pais, João Paulo Esteves da Silva, Afonso Cabral (You Can’t Win Charlie Brown), Elina Silova e João Lencastre. Porque escolheram trabalhar com estes músicos?
Os convidados também fazem parte do processo criativo e de composição. Em alguns temas eu compus para os convidados. Pensei neste disco como uma oportunidade para tocar com alguns dos meus heróis. Sabia que este projecto me dava a oportunidade de explorar outras coisas que não poderia fazer se fosse um projecto apenas meu. Automaticamente, vieram alguns nomes à cabeça. Afonso Pais foi o primeiro: para mim é um génio. Cada vez viajo mais e cada vez mais me convenço que ele é um génio, é um mestre do instrumento, um mestre do bom gosto, da criação de melodias, do “cantar” com a guitarra. Além disso, é um amor de pessoa.
Afonso Cabral aparece no tema “Eyes from Above”, que escrevi no próprio dia em que o “Hassel” me disse que íamos gravar o disco - tinha o dia livre, peguei na guitarra e saiu aquilo. Levou-me para aquele universo do Hasselberg, ele tem poucos discos mas já criou uma identidade forte. Eu queria fazer uma ligação entre esse universo dele e o meu universo e esse tema saiu muito naturalmente. Pensei num cantor: sou fã do Afonso, dos You Can’t Win Charlie Brown, do timbre dele - eu não o conhecia pessoalmente, pelo que se ele não aceitasse seria uma chatice! Mas ele só pediu para ouvir a música, aceitou e foi um amor. João Lencastre foi a escolha certa para a bateria, pois ele pensa um passo à frente e temos as mesmas referências. O João Paulo [Esteves da Silva] foi uma escolha óbvia. É o melhor… É aquele músico que me diz mais como improvisador, como pianista, em Portugal. Elina Silova [cantora] foi uma sugestão do “Hassel”, que achou que era uma boa aquisição para o disco. Ela canta no tema “Far Far Away”, no qual não toco (e está óptimo assim, eu só ia estragar). Curiosamente, é a minha faixa favorita do disco!
A música do disco cruza múltiplos ambientes: jazz, folk americana, clássica… Como chegaram a essa música?
Esse ponto de encontro é um bocado o espelho da nossa origem. Eu e o Hasselberg falámos muito sobre os aspectos técnicos da música. Uma coisa que me dá muito prazer na relação com o “Hassel” é conversarmos muito sobre aquilo que queremos transmitir. Aquilo que me atrai no jazz é o imprevisto, é poder expressar os demónios que temos cá dentro. Eu não sou um purista, para mim o jazz é um idioma. Interessa-me a parte da improvisação. Talvez tenha a ver com a minha personalidade. Sou um gajo que combina um café e acaba no Bairro Alto às seis da manhã… Tudo isso faz parte.
Não se pode ser um improvisador e passar a vida fechado em casa a estudar aquilo que se fazia há 70 anos! Não faço a mínima ideia do que é o jazz. Essa procura é o caminho de muitos músicos com quem me identifico… João Lencastre, Gonçalo Marques, Demian Cabaud são músicos com mentes abertas e quero continuar a tocar com eles. O que fazem é retirar os rótulos à partida e depois o que sair, sai. É esse híbrido que me atrai. É a mistura entre o “mainstream”, as estruturas, a riqueza da harmonia e o improviso… Quando toco, o meu objectivo é criar emoções nas pessoas. Acho que é essa a função da arte no geral, pôr as pessoas a pensar, a questionarem-se. É tão bom ouvir a malta dizer que se sente triste ou melancólico ao ouvir a nossa música! A pior coisa que me pode acontecer num concerto é ver que as pessoas estão desligadas. Se estiverem imersas numa tristeza profunda, é óptimo! Se aceitares isso, tudo o que vier a seguir é fixe. E acho que a nossa música reflecte isso.
Porquê o título “Dancing Our Way to Death”?
Esse título foi roubado a uma música de Angel Olsen. Andei colado numa canção em que ela canta “If only we could dance our way to death”. Essa frase bateu-me. Fiquei colado a essa frase, por todo o seu simbolismo. A morte é uma coisa inevitável. “Dancing Our Way to Death” é uma mensagem muito positiva: vamos tentar levar isto da melhor forma possível! Há um caminho, vamos tentar fazer uma coisa boa ao longo desse caminho.
A capa do disco também é curiosa…
João Pombeiro fez uma capa inacreditável. Ele começou por uma outra proposta, que estava porreira, mas não era bem aquilo. Eu e o “Hassel” tínhamos problemas com as letras… Logo a seguir ele mandou-nos esta imagem, esta colagem digital, e eu fiquei boquiaberto! Criou um universo visual para a coisa! Fiquei mesmo muito contente por termos concretizado este objecto.
Este projecto com João Hasselberg vai ter continuação?
Lembro-me que nos primeiros ensaios já tínhamos muito material – e desde já fica aqui um agradecimento especial à mãe da Camila, que nos aturou nesses primeiros ensaios! Em dois dias gravámos cerca de 20 temas. Pensámos então em dividir o material por dois discos. Neste que saiu são mais canções curtas; o segundo disco puxa mais para a cena improvisada, mais aberta. Entretanto, surgiu o interesse de uma editora para o lançamento de um segundo disco, mas ainda estamos em negociações… Se esse segundo disco sair, esperamos que tenha a mesma linha estética.
Quais são os teus projectos para os próximos tempos? Estás a pensar voltar a Portugal?
Para já, este foi o meu ano mais activo: editei discos e fiz três “tours”! Sou um tipo novo. Ainda há três anos nem sabia se alguma vez poderia tocar no Hot, mas de repente estou a liderar bandas e malta que admiro anda a chamar-me! Foi um ano tão preenchido… Daqui a uma década vou pensar: fiz tanta merda no início que agora não tenho nada! Quanto a projectos, neste momento quero tocar com o Hasselberg em todo o lado. Estou a tentar marcar concertos com o Lencastre, dado que temos o disco quase a sair… Com Oh! Calcutta! temos uma digressão em Abril. E estou agora a escrever música para octeto: ando colado à cena Steve Lehman, Steve Coleman. Neste momento faz-me bem estar fora do País. Talvez daqui a uns anos sinta necessidade de voltar.