Uma dimensão humana
Baterista e compositor oriundo do Porto, Pedro Melo Alves começou por se mostrar como instrumentista com o grupo The Rite of Trio. Afirmou-se como compositor notável ao leme do Omniae Ensemble, projecto que venceu o Prémio de Composição Bernardo Sassetti e acabou consagrado como um dos mais consensuais discos de 2017 pela crítica. Já este ano, apresentou-se a solo sob o nome “O”, um projecto a solo de bateria e electrónica. Tem desenvolvido música para artes performativas (dança e teatro) e tem ainda explorado vários projectos ligados à improvisação livre. É um dos mais jovens talentos do jazz português e por ele vai passar o futuro da música criativa portuguesa. Numa conversa longa e rica, fala sobre o seu percurso e expõe as suas ideias.
Como foram os teus primeiros passos?
Segundo contam os meus pais, desde miúdo andava sempre a percutir nos móveis lá em casa. Depois, aproveitando a circunstância de o meu irmão (cinco anos mais velho) ter aulas de guitarra, também eu comecei a estudar música. O meu irmão tinha uns 12 anos, já sabia o que queria, eu tinha só uns 8/9… Comecei por essa idade com aulas de bateria, na Escola de Música Valentim de Carvalho, no Porto. Foi bateria, mas poderia ter sido qualquer outro instrumento... Às vezes ponho-me a pensar: se me tivesse iniciado com outro instrumento, onde teria ido parar? Na altura tocava mais pop, rock, essas coisas que se ouvem quando se é mais novo. Mas também, por culpa da parceria cultural com o meu irmão, já começava a puxar para outros lados, já ouvia estilos mais progressivos, já ouvia música clássica, coisas que uma criança à partida não ouve.
Consegues lembrar-te de alguns dos discos que mais te marcaram nesse início?
Lembro-me que ouvia muito Queen, por causa dos meus pais. Depois, devido à colaboração de Freddie Mercury com Montserrat Caballé, comecei a ouvir canto lírico, associado à prática orquestral, sinfónica. Lembro-me que a primeira grande obra orquestral que me bateu foi a Nona Sinfonia de Dvořák. Mas estamos a falar de encontros aleatórios, não venho de um meio musical, isto são tudo descobertas autodidactas, minhas e do meu irmão. Lembro-me perfeitamente dos primeiros discos de jazz que ouvi, nessa altura, ainda aleatoriamente. Havia um jogo de computador, o “Grim Fandango”, que tinha uma banda-sonora de hard bop, de jazz de clube dos anos 1960 – a música era de um tipo chamado Peter McConnell. Aquilo deu-nos a conhecer o jazz: «O que é esta coisa? Isto é incrível!» Os primeiros discos que vieram parar a casa foram o “Blue Train” de John Coltrane e o “Blues and the Abstract Truth” de Oliver Nelson.
Como é que percebeste que querias mesmo seguir música?
A maior parte das vezes essa pergunta não tem uma resposta exacta, ou porque foi acontecendo ou porque a música já fazia parte, mas no meu caso houve, de facto, um clique: foi a sexta Festa do Jazz do São Luiz. Fui representar a minha escola, a Valentim de Carvalho, e estava a ter aulas com Marcos Cavaleiro. Mas não estudava jazz nem ouvia propriamente jazz. Na altura ouvia muito rock progressivo. Na minha primeira participação na Festa do Jazz (acabei por ir três vezes) não tinha ideia de nada, acho que nem swingava. Não estava particularmente entusiasmado, mas cheguei lá e estava rodeado de músicos, rodeado por tudo aquilo que se estava a fazer em Portugal, e sobretudo, para quem não estava a contar com nada, foi a descoberta de várias coisas que ainda hoje são das minhas favoritas, foi um deslumbre. Houve mesmo um clique! Ali contactei com a interacção. A improvisação na música traz essa dimensão mais viva, mais espontânea, do momento, das personalidades… Não é só uma banda a compor um disco, é um fenómeno vivo ali à minha frente. Aquilo foi mesmo um abanão. Estava na secundária na área científica, o meu irmão seguiu medicina e eu provavelmente acabaria por seguir outra profissão ligada às ciências. De repente, dá-se esse fim-de-semana da Festa do Jazz e a música passa a ganhar outra dimensão na minha vida. Até então não tinha considerado a hipótese de seguir a música como carreira. Deu-se essa mudança de direcção e aí já tinha a minha cama feita, já estava a ter aulas com Marcos Cavaleiro, tinha a ESMAE ali ao lado, tinha as “jam sessions” da ESMAE… A partir do momento em que essa luz do jazz se ligou, percebi que estava num sítio incrível para continuar a saber mais.
Fenómeno vivo
Daí foste fazer a licenciatura na ESMAE. Como foi essa experiência académica, que professores te marcaram mais?
Daquilo que me apercebi, os cursos superiores de jazz em Portugal (em Lisboa e no Porto) são muito desiguais, são experiências de picos. Tive a sorte de ter Michael Lauren como professor, porque ele é um dos maiores exemplos daquilo que uma figura pedagógica deve ser. Porque tem o lado exigente que faz o aluno trabalhar, mas também tem o lado de “pai”, que estimula a confiança e que te vai ver tocar, mesmo fora do contexto escolar. Foi importante contactar com outras figuras, como Carlos Azevedo, que é muito inspirador e com quem espero vir a colaborar mais à frente. É uma pessoa com um leque de competências e de interesses mais abrangente, o que também me inspirou muito. E houve ainda um outro professor importante…
Não completei o curso na ESMAE, e por isso é que estou agora a fazer uma nova licenciatura. Apesar de o meu percurso até aí ter sido sempre através da bateria, nunca me senti um verdadeiro baterista, estava mais ligado aos outros recursos da música, nomeadamente a melodia, a harmonia, as texturas... A escrita e a exploração de todas as cores sempre me fascinaram mais do que a bateria como instrumento. Tornou-se claro que não queria passar oito horas por dia a estudar bateria: abandonei o curso para me dedicar ao estudo do piano. E isso leva-me à terceira figura da ESMAE que foi muito importante, que foi o pianista Abe Rabade. Comecei a ter aulas de piano clássico e de piano jazz. Como o Abe não tinha horário no Porto, comecei a ir a Santiago de Compostela para ter aulas com ele. Era um dia inteiro dedicado a ter duas horas de aulas com ele. Saía às oito da manhã do Porto, trocava de autocarro em Vigo, chegava lá e tinha as duas horas de aula, para só regressar às oito e meia da noite ao Porto. Era um dia inteiro para ter aquelas aulas, ia para lá a pensar em estruturar aquilo que tinha estudado, e voltava a estruturar tudo aquilo que ele me acabara de transmitir. Foi muito inspirador. Curiosamente, nessa altura, depois de ter parado de estudar bateria, foi quando estive mais activo a tocar bateria. Por me ter desligado de preocupações académicas, estava muito mais solto a tocar.
Além destes professores, que outras pessoas foram determinantes no teu percurso?
Foi também muito importante o meu encontro com Inês Garrido em 2012, uma actriz especial com quem mantenho uma relação de admiração e inspiração, além de partilhar a vida com ela. Foi graças a esse encontro que descobri em profundidade o mundo do teatro, da dança, da performance, da multidisciplinaridade e, sobretudo, da criação conceptual que hoje definem a minha visão de criação artística. Foi também com ela que solidifiquei muitos dos meus princípios e dos valores humanos que hoje mais valorizo na arte - crescimento conjunto pelo qual estou muito grato. Desta empatia nasceu o Caos, o colectivo artístico no qual desenvolvo um trabalho mais pleno além-música.
Como surgiu o The Rite of Trio?
Filipe Louro e André Silva eram dois colegas de curso e de turma; entrámos todos no mesmo ano. Para nós, o ponto de viragem foi quando fomos ver os World Service Project no festival 12 Points, na Casa da Música. Esse concerto ajudou a despertar a nossa linguagem: havia a influência do rock. Havia o curso, a história do jazz, mas nós estamos no século XXI: «Peguem nas ferramentas, aproveitem que são jovens cheios de ideias e façam música autêntica.» O início do The Rite of Trio coincidiu com o fim da minha ligação com o curso de jazz. Nessa altura, eu estava a ter aulas de piano… Parava de estudar piano e ia para os meus ensaios como baterista do The Rite of Trio. Nesse período também tocava com os Catacombe, uma banda de pós-rock em que fui substituir o baterista. Isso durou até final de 2014, altura em que me mudei para Lisboa e comecei a ter aulas com Daniel Bernardes, para continuar o trabalho. Como queria continuar a estudar, concorri a dois cursos, o de composição e o de piano jazz. Fiz as duas provas, fiquei em primeiro em composição e último em piano (por culpa de défices técnicos). Percebi que o curso de composição faria todo o sentido para a minha personalidade musical, porque não impedia que continuasse activo a tocar. O meu percurso académico tem sido esta coisa de cursos inacabados: agora estou no terceiro ano, mas a meio gás, porque tenho estado muito ocupado profissionalmente.
Voltando ao The Rite of Trio: vão tocar no festival Jazz em Agosto, numa edição organizada à volta da figura do John Zorn… Sentem essa ligação à sua música?
Talvez faça mais sentido para quem ouve e para quem está de fora; imagino que o director artístico do festival, Rui Neves, tenha visto esta ligação da nossa música com o Zorn. Desde que começámos a tocar muitas pessoas assumem que é uma das nossas grandes influências, mas curiosamente não é. Claro que conhecemos e ouvimos, mas não é algo que os três ouçamos de forma aprofundada. Outras associações que nos faziam também eram com King Crimson e Frank Zappa, mas não faziam muito sentido. Claro que há outras que fazem todo o sentido, como John Hollenbeck. O que é que a música do The Rite of Trio tem de particular? É a questão da escrita, aquilo que distingue este grupo é que é quase um grupo de música de câmara. Temos momentos de improvisação (que valorizamos), mas a música tem muita componente composicional: primeiro está a matéria escrita. A música do primeiro disco teve aqueles contornos (foi gravada em 2014), mas a música do próximo álbum será outra. Para as pessoas que nos ouviram seremos uma banda de jazz-rock progressivo-música contemporânea, mas sobretudo somos pessoas abertas ao risco e a muita música diferente. Talvez eu puxe mais para a música contemporânea orquestral, o André estará mais próximo do jazz e o Filipe tem um lado de produção muito presente… Aquilo que nos diferencia é esta fusão de ideias e a ausência de restrições. Por isso é que esta é a minha colaboração mais longa e é aquela que prevejo que seja a mais duradoura, porque não se vai esgotar.
Deixar fluir o que é real
Como receberam o convite para tocar no Jazz em Agosto?
O convite para tocar no festival Jazz em Agosto foi muito interessante, porque gostamos muito do festival. Costuma ter uma programação inacreditável, do melhor que se faz no mundo. Por um lado, sentimo-nos lisonjeados, por outro percebemos que fazia sentido, pois fazemos parte do movimento que quer levar as coisas para a frente, o que nos dá incentivo para tocarmos melhor do que nunca, para contribuir para esse espírito de música viva. Esse cunho do “jazz” pode ser tanta coisa, mas nem todos os festivais de jazz mostram uma coisa viva. Às vezes são festivais de um jazz que já não é música viva. Neste festival, e nesta edição, vê-se que há um esforço para mostrar que é um fenómeno vivo, do agora. Mas também nos sentimos surpreendidos, porque o álbum foi gravado em 2014, foi editado no final de 2015 e o ano em que mais tocámos foi 2016. Em 2018 ainda estão a pegar em nós, com um disco que já tem três anos. O que mostra que as pessoas querem ver o que se está a passar. E a verdade é que, sendo uma música muito escrita, de concerto para concerto estamos sempre a reinventar aquela música. Cada concerto é um evento novo. E este vai ser um evento novo, vamos mesmo apresentar material novo.
Um outro projecto que promoveste foi o Omniae Ensemble, que venceu o Prémio de Composição Bernardo Sassetti, editou o primeiro disco no ano passado e foi muito bem recebido pela crítica. Como nasceu este projecto?
O primeiro estímulo foi a minha ligação com a música do Bernardo Sassetti. Concorri à segunda edição do prémio e foi numa altura em que tudo se alinhou, tinha disponibilidade e foco. Quis aproveitar para reflectir a minha ligação com a música, vinha da música improvisada-jazz, queria contactar em pleno com a música contemporânea e pretendia ligar esses dois mundos, ser eu próprio musicalmente como nunca antes tinha sido. Esta foi a primeira vez que comecei a escrever a música que me é mesmo significante, que pega em tudo aquilo que sou hoje em termos de cultura e crenças musicais. Claro que depois temos de lidar com o compromisso: há janelas temporais, aquilo a que consigo aceder (se tivesse todo o tempo do mundo provavelmente ainda estava a escrever esse álbum), fazer experiências com os músicos, arranjar novas fórmulas. Mas não tive muito tempo para pensar. Desde que decidi abraçar o projecto tive muito pouco tempo, o que acabou por aguçar a produtividade. Há alturas em que o melhor é não pensar e deixar aquilo que é real fluir. Acreditar nisso é interessante, especialmente para uma pessoa que acredita no controlo.
Há também a dimensão humana. Se eu componho música que pressupõe determinado tipo de interacção sensível entre músicos, mesmo que não esteja a pensar em pessoas, estou a pensar em caracteres humanos específicos. É por isso que isto tudo se liga, porque gosto tanto da música do Sassetti, porque há ali um “statement” humano numa dimensão que ainda não compreendo na totalidade. Abraçar a escrita musical desta forma mais a sério é, para mim, abraçar essa dimensão humana. E quero ir mais longe nisso, conseguir que aquilo que me inspira nas pessoas possa fluir em música. A música que resulta é um compromisso, é aquilo que foi possível. Submeti os originais, o júri escolheu as minhas composições no final do ano e em Janeiro começámos a pensar como iríamos fazer o disco. Originalmente, os músicos que iriam interpretar a música vencedora seriam seleccionados num outro concurso à parte. Perceberam que as candidaturas que receberam não estavam em conformidade com o tipo de perfil da música e chegou-se à conclusão que era melhor escolhermos os músicos. Fui procurar os músicos - segundo o regulamento deviam ter menos de 30 anos - e procurei músicos que tivessem um caminho no jazz e na improvisação e também os recursos e a linguagem da música contemporânea, o que é um perfil muito específico e difícil de encontrar. Também quis evitar o “lobby dos amigos”, quis evitar escolher amigos, queria que fossem as escolhas musicais certas. Contra todas as expectativas, acabei por encontrar em muito pouco tempo a banda ideal.
Como foi a gravação do disco?
O processo foi caótico, foi uma altura louca de dedicação, que culminou em estarmos em estúdio sem sabermos bem como. O disco saiu e fomos tocar à Festa do Jazz. Foram muito importantes o apoio e a aposta que a Sons da Lusofonia e a editora Nischo depositaram em mim. E estou muito grato a Carlos Martins, à Sandra, à Alaíde e à Inês pela importância que têm hoje no meu percurso, sem os quais hoje a minha música passaria mais despercebida. Tenho muito respeito pelo trabalho que a Sons da Lusofonia tem feito pela comunidade musical do nosso país.
O que representou esse primeiro disco do Omniae Ensemble?
Foi uma experiência incrível ter tocado com aqueles músicos e pôr aquela música a acontecer. Para mim foi a ignição daquilo que quero continuar a fazer, bem mais além. Quero ir mais longe, naquilo que são as minhas referências na música improvisada e na música escrita.
Já estás a pensar num próximo disco?
Sim, e desta vez posso trabalhar sem a pressão do tempo. Como já sabia o tipo de coisas que queria abordar nesta nova música, os projectos em que estou envolvido agora estão, de certa forma, a servir esse grande objectivo principal.
Mais epifanias
Que projectos são esses?
Tenho um projecto a solo, chamado “O”. O solo acontece porque quero aprender a domar os recursos da electrónica em tempo real, porque já sei que é algo que quero usar no segundo capítulo do Omniae Ensemble. O nome “O” é uma redução de “Omniae”, é o compositor a ser o “performer” e a explorar uma nova dimensão que depois vai fazer parte do grande projecto. Outro projecto mais lateral é o trio que tenho com Hugo Antunes e José Diogo Martins, que surgiu por convite de João Esteves da Silva para o primeiro ciclo Jovens Improvisadores, no O’culto da Ajuda. O trio tem o nome de Symph e trabalha música electroacústica. Também tenho estado envolvido na escrita de música para teatro, e estreei em Março uma coreografia de Carlota Lagido, chamada “Jungle Red”. Foi mais um projecto que serviu esta minha nova fase de exploração.
Este ano está a ser muito ocupado, com muitos projectos, mas estão todos interligados, a caminhar para o mesmo. Há pouco tempo fui convidado a tocar com a banda Splatter, de Noel Taylor, um músico inglês que está a viver em Portugal, e por causa disso fui tocar ao festival MIA, na Atouguia da Baleia, e fiquei em contacto com novos músicos. O que é interessante nesta fase é que parece que tudo tem servido aquilo que eu já queria fazer. Tenho conhecido novos circuitos da música improvisada em Portugal, que infelizmente não se tocam com o circuito do academismo jazzístico. São circuitos diferentes que vão de encontro ao tipo de música que quero escrever, à inquietação que estou a sentir. Ter colaborações diferentes com músicos diferentes tem levado a mais epifanias. É fascinante perceber que num país tão pequeno há tanta coisa por descobrir. E estou a falar de obras-primas, de coisas muito profundas. Estes projectos estão a abrir-me os horizontes e estou a ter muitos estímulos para coisas que já sabia que queria fazer. Agora percebo que há pessoas a desenvolver coisas nas diferentes áreas há mais tempo e posso aprender com elas. Para o segundo capítulo do Omniae Ensemble posso escolher todos os músicos, posso incluir outros recursos tímbricos, e com aquilo que tenho vindo a aprender tem sido interessante reformular quem vão ser os participantes no novo capítulo. Cada vez conheço mais pessoas especiais que estão de acordo com aquilo que quero fazer. Vou pôr músicos de diferentes áreas reunidos no mesmo projecto, todos ao encontro de uma ideia. Pretendo gravar para o ano e acho que vai ser altamente entusiasmante.
Além destes grupos e projectos, tens outras colaborações?
Tem havido outras colaborações, algumas com perspectiva de continuarem. Estou também com um novo espectáculo de teatro, “A Boa Alma de Setsuan”, de Brecht, onde vou ser director musical e também músico em palco. Vai estrear em Outubro no Teatro de Almada. Também toquei com a banda de Julius Gabriel, Cosmic Messengers. Há o trio com Luís Vicente e Hugo Antunes: demos um concerto e pressuponho que vamos continuar a tocar. Tenho alguns projectos em mente, com músicos com quem nunca toquei. Tenho também uma colaboração com a Videolotion, uma produtora de vídeo da nova geração que tem feito um trabalho cada vez mais relevante para as artes audiovisuais em Portugal. Colaborei com eles logo em 2015, à minha chegada a Lisboa, como músico figurante numa longa-metragem de Marta Cardoso e estou agora envolvido na banda-sonora de uma curta-metragem de Joana Peralta. Gosto de estar em pleno nos projectos, para conseguir ter espaço de exploração em cada um. Estou numa fase em que tenho vindo a cancelar convites (o que me custa muito, porque tenho a tendência inversa) e também decidi assumir a suspensão do curso de composição. Estou a mudar-me para o Porto para ter um espaço de trabalho mais focado. Um outro grande projecto é o Caos. Sempre tive interesse pela criação conceptual; foi uma coisa que sempre admirei nos artistas ligados ao teatro. Eles trabalham conceitos, aprofundam conceitos e há sempre uma construção. O colectivo Caos é uma parceria com Inês Garrido e agora vamos ter espaço para criar. A primeira criação colectiva vai surgir em 2019, e então já não serei apens músico, serei um criador.
Mais a longo prazo, tens planos que gostarias de ver desenvolvidos?
Sei que a médio / longo prazo vou querer dedicar-me a aprender. Vou querer concluir o curso e sempre tive a ideia de fazer um mestrado, não necessariamente na área da música: poderá ser numa área mais abrangente das humanísticas, ou de história da arte ou de filosofia ou de estética, e muito provavelmente fora de Portugal. Destes projectos de que falei, aquele que vejo a fazer sentido a mais longo prazo é o Caos. Lateralmente, prevejo que Omnia e Rite se mantenham. Depois isto vai abrir novos horizontes, se calhar na área da investigação. Admiro muito António Pinho Vargas, porque é um exemplo disso: tem o percurso do piano clássico, estudou composição, teve o contacto com a improvisação e o jazz, é doutorado em ciências humanísticas, é investigador na Universidade de Coimbra e é professor na Escola Superior de Música de Lisboa. É um percurso de pensador que me interessa muito. Mas há fases para tudo e isso não será agora.
Tens vivido e trabalhado entre o Porto e Lisboa, estás ligado ao jazz, à composição e à academia, tens atravessado diferentes círculos musicais, és um espectador privilegiado. Como vês o actual momento da cena musical em Portugal?
Quem acha que há pouca coisa a acontecer, ou que as coisas estão estagnadas, é porque está demasiado fechado num só circuito, seja estilístico, social ou humano. Acabo por cruzar diferentes círculos musicais, sociais e artísticos diferentes, e o que sinto é que há coisas que nem conheço, o que é uma sensação incrível, sobretudo quando se pensa que é um meio pequeno e que já se viu tudo aquilo que havia para ver. É interessante levar uma chapada de luva branca e perceber que não, que a coisa está viva, que se está a multiplicar, a regenerar, e julgo que estamos numa fase de mudança de paradigma. Tem a ver com a presença do ensino profissional nas áreas artísticas: no jazz começa a fazer toda a diferença, porque os alunos chegam ao ensino superior com três anos de ensino sério da música que pretendem fazer. E isso, parecendo que não, quer se queira quer não, muda de facto o paradigma. Há mais “input” fresco, de pessoas que estão atentas a todas as actividades, e tanto vão ao O’culto da Ajuda ouvir música electroacústica do século XXI como vão à Gulbenkian ouvir música renascentista, como vão a qualquer outro lado ver coisas diferentes… E estamos na era da informação, na era da Internet: as pessoas nem sequer precisam de se cingir aos espaços físicos. A real cultura de um estudante de artes hoje em dia já se define por tudo o que pode ver “online”, pelos documentários, pelos espectáculos, pelos “live streamings”…
Acho mesmo que estamos numa mudança de paradigma, em que uma postura fechada a um estilo, ou fechada na forma de ver a música ou as artes em geral, já não vai ter espaço. Esta atitude fresca vai atingir a geração de quem ensina nos círculos do ensino superior. Se hoje em dia ainda há corpos pedagógicos que perpetuam uma visão obsoleta, fechada e conservadora, aos poucos vão perder o lugar. Acho que estamos a chegar a uma altura em que se sente em Portugal esse cruzamento artístico vivo, cada vez mais. As novas figuras que vão aparecendo já não se definem por uma única forma de fazer as coisas. Encaro a questão com olhos muito optimistas, acho que estamos numa altura muito boa. Mesmo na questão da descentralização e das diferenças entre Porto e Lisboa: o Porto passou a ter uma actividade cultural que está ainda a crescer e as coisas já não se definem só por Porto e Lisboa. Ainda que a maior quantidade de músicos continue a estar aqui [em Lisboa], cada vez mais as novas coisas que surgem no Porto vêm tocar a Lisboa e as pessoas de Lisboa conhecem-nas, e vice-versa. Cidades como Coimbra e Viseu estão no circuito, todas as terras têm um festival de jazz com programação tanto nacional como internacional e tanto com músicos consagrados como com novos valores…
Acho que isto está a atravessar todas as áreas. Nos últimos anos temos estado a assistir a esta novo paradigma com muito mais fluxo. E cada vez vejo mais mais colaborações com músicos de fora, músicos portugueses que vão tocar para fora e trazem músicos de renome internacional. As coisas estabelecem-se. Ao criar um projecto, já não penso em fazer promoção e “booking” que só inclua o panorama português. Posso dar nomes de pessoas que estão a ser impulsionadoras disto: no Porto ocorre-me Luís Baptista com os Solilóquios, que traz uma programação inacreditável, José Miguel Pereira no Jazz ao Centro Clube, aqui em Lisboa há muitos programadores, como Miguel Azguime, Carlos Martins… Quando fui tocar a Nova Iorque com The Rite of Trio, deveu-se isso ao esforço de Pedro Moura Alves com o Jazz’Aqui, que está a fazer um trabalho incrível a pôr o jazz português em todo o lado. Não consigo ser pessimista e ver a coisa estagnada. Ainda há muita coisa a fazer, mas estamos no bom caminho. Sinto-me muito feliz por fazer parte do movimento e quero ajudar coisa a andar para a frente.