Ligando mundos
Ao longo dos últimos anos, o baterista e compositor Pedro Melo Alves tem vindo a erguer um sólido e polifacetado corpo de trabalho, evidenciando quão largos são os seus horizontes enquanto criador sonoro. Cruzando elementos provenientes de diferentes tabuleiros musicais, que processa de forma particularmente desafiadora, e explorando diversas configurações instrumentais – solos, duos, trios e formações mais alargadas –, tem merecidamente atraído as atenções de um público melómano mais exigente e ávido de descobertas. Qualquer coisa como «querer tudo ao mesmo tempo», diz-nos o próprio.
Fixando-nos apenas neste ano de 2021, a lista de álbuns que ostentam o seu nome é assinalável: Omniae Large Ensemble (“Lumina”), The Rite of Trio (“Free Development of Delirium”), “Bad Company” (com o percussionista e maestro Pedro Carneiro) e Luís Vicente Trio, com o líder no trompete e o contrabaixista Gonçalo Almeida (“Chanting in The Name Of”) – todos na Clean Feed – “Mountains”, de Javier Subatin, guitarrista argentino radicado em Portugal, e, em dueto com o pianista Samuel Gapp, integrando o Composers and Improvisers Community Project Collaborative Recordings “Vol.1” – ambos na Habitable Records. Findo um capítulo que poderemos tomar como inicial da sua carreira («até aqui foi uma bela aventura caótica, inesperada a cada curva, que eu fui bebendo sem querer limitar», sublinha), divisa-se uma nova fase de explorações, que poderá ser o início de «algo finalmente mais maduro».
Pedro Melo Alves nasceu em 1991, no Porto. Inicia estudos musicais em 2000 e, no ano seguinte, ingressa na licenciatura em Bateria Jazz na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, que virá a abandonar em 2013 para estudar Piano Clássico e Jazz com Abe Rábade e Daniel Bernardes. Participa em diversos “workshops” em Portugal, Espanha e Itália que permitem o contacto com músicos como Danilo Pérez, John Escreet e Ralph Alessi. Em 2015, entra na licenciatura em Composição da Escola Superior de Música de Lisboa, onde estuda com Sérgio Azevedo, José Luís Ferreira e António Pinho Vargas.
Atualmente, a sua intensa atividade reparte-se por várias formações e projetos de jazz contemporâneo – como Omniae Ensemble (mais recentemente na sua versão Large), o vulcânico The Rite of Trio, In Igma (notável álbum de 2020) –, projetos de música eletroacústica – o solo “O”, CACO.MEAL com João Carlos Pinto (“techno jazz pós-humano não-binário”, como os próprios o definem), Symph (com o pianista José Diogo Martins e o contrabaixista Hugo Antunes) –, música improvisada de câmara – com os Preto Mate (de que também fazem parte os violoncelistas Ricardo Jacinto e Joana Guerra) –, em projetos vários com João Paulo Esteves da Silva, Luís Vicente, Théo Ceccaldi, Nuno Rebelo, Pedro Branco, entre outros – ou de rock instrumental – com os Catacombe. «Adoro desafiar os outros, fazê-los sair da zona de conforto», admite, com um brilho nos olhos.
Tem composto bandas sonoras para peças de teatro e espetáculos de dança (Peter Kleinert, Carlota Lagido e para o coletivo artístico Caos), dando passos de aproximação cada vez mais determinados rumo aos terrenos da composição erudita. O seu trabalho foi distinguido com vários galardões, destacando-se o Premio Internazionale Giorgio Gaslini (2019), o prémio de “Músico Nacional do Ano” pela revista jazz.pt (2017), o Prémio de Composição Bernardo Sassetti, promovido pela Casa Bernardo Sassetti em parceria com a Associação Sons da Lusofonia, na sua segunda edição (2016), e o 2.º lugar “ex-aequo” (sem 1.º lugar atribuído) na categoria de “Combo Jazz” no Prémio Jovens Músicos Antena 2 (2013). Paulatinamente, assegura uma presença cada vez mais assídua no panorama musical europeu, apresentando os seus projetos em eventos reputados como o 12 Points Festival de Dublin (2018), a European Jazz Conference, realizada em Lisboa (2018), Suoni Per Il Popolo em Montréal (2019), Südtirol Jazz Festival em Bolzano (2019) ou o festival Jazzahead de Bremen (2019).
Pedro Melo Alves conversou longamente com a jazz.pt em pleno processo de preparação do “ensemble” para os concertos de apresentação de “Lumina”: dia 15 de outubro na Culturgest, Lisboa; dia 20 no Festival Outono em Jazz – Casa da Música, Porto; e dia 21 no Festival Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra – Oficinas Municipais do Teatro (O Teatrão).
Os anos mais recentes foram, para ti, de uma intensa atividade, em múltiplas frentes. Que balanço geral fazes desta fase do teu percurso?
Ora bem... é um balanço que oscila entre o assoberbante e o tranquilizante, se for a pensar nisso. E nem vou falar do quão alienante sabe estar a fazer um balanço quando estamos a sair de uma pandemia que nos pôs o significado da existência em suspensão. Mas este é realmente um momento que tenho vindo a perceber que carrega em si uma consolidação das minhas procuras e ânsias de sempre. É interessante lembrar-me dos anos de estudo académico em que perseguia ingenuamente um ideal de artista total, de perfeição cristalizada, para aos poucos o contacto com a realidade me ter aberto para um mundo fraturado, de verdades muito relativas, onde as fontes de luz artística estavam longe de ser as politicamente corretas, ou expectáveis. Há vários momentos em que me apercebo que o percurso não vai ser nada que eu possa prever – ou que queira prever, sequer. E a resposta natural a isso foi adotar uma atitude extremamente pró-ativa, a descobrir pessoas e espaços em diferentes cidades, a fazer convites, a pedir aulas, a gerar oportunidades, a querer tudo ao mesmo tempo.
Os últimos anos, e o início de uma carreira, surgem de uma vontade muito pura e inquestionável de me arriscar e de desafiar aqueles de quem gosto para essa dimensão cheia de dúvidas sem fazer ideia onde possa desaguar – vindo do estudo do jazz e da música erudita, os primeiros projetos de música em meu nome, a descoberta da música livremente improvisada, perceber que há tantos circuitos artísticos onde os meus gostos têm finalmente lugar, o contacto com a música em contexto multidisciplinar, as primeiras experiências a solo e com música eletrónica, o contacto com a internacionalização e com tantas instituições que me começaram a abrir os braços, a receção das primeiras encomendas, a vontade de começar também a organizar eventos e a estimular o panorama cultural da minha cidade, enfim. E é assoberbante porque lhe reconheço a natureza caótica, densa, não-planeada e a alta velocidade com que tudo aconteceu em tão pouco tempo. Mas também tranquilizante porque, agora vendo, sabe apenas ao cumprimento orgânico do meu ser. Com isto quero dizer que é muito libertador ver que o que antes parecia ser uma grande dispersão inconciliável de sonhos e vontades agora se revela como a forma de atuar onde me sinto a potenciar quem eu sou e o que possa ter a dar ao mundo. Sem ressalvas. E se é um caos de ímpetos e direções, que o seja no seu máximo esplendor.
Sentes que, de algum modo, encerraste um capítulo inicial da tua carreira?
Sim, diria que sim. Ou que, mesmo não estando já encerrado, para lá transita. O que se tem vindo a tornar mais claro é o quanto até aqui eu estive ao sabor de várias correntes, aberto, sem rumo aparente, a todos os convites do cosmos para colaborar e crescer. Isto significou trabalhar com todo o tipo de naturezas de trabalho, do mais espontâneo ao mais planeado, conhecer imensos circuitos artísticos do mais “underground” ao mais bem estabelecido, ganhar uma imensa elasticidade quer para me adaptar a contextos tão díspares quer para conseguir conciliar tudo em simultâneo mas, mais importante, significou refazer várias vezes o contrato de amor com a arte, as pessoas e a vida. Ou seja, estive em contacto com diferentes perspetivas da paixão que liga tudo isto – desde os mais variados renascimentos interiores às transcendências micro e macro que ocorrem quando a magia da arte acontece. E se há súmula que possa descrever sobre esta fase inicial ávida e caótica é esta – passei a carregar nuclearmente comigo o porquê de me dedicar sem limites, de coração e braços abertos, a isto da criação e da apresentação artística.
Foi algo que aconteceu por estar disponível e com vontade de agarrar as experiências mais inesperadas, geralmente ideias insensatas, sem dormir, a viajar centenas de quilómetros sem receber dinheiro, num concerto marcado na véspera, numa substituição em que me ligaram no próprio dia, num festival europeu marcado numa conversa de corredor, numa residência de dança ou numa sessão numa cave com um qualquer músico com quem nunca diria que ia ter um momento de epifania.
Prenuncia-se então uma nova fase?
Pois, talvez. Por um lado tenho algum receio de me afastar deste “modus operandi” leve e livre que tanta mostra de autenticidade e energia me tem trazido. Mas por outro sim, porque cada vez mais sinto necessidade de conseguir concretizar em maior profundidade os meus processos criativos e as pesquisas técnicas que se lhe seguem. E esses exigem outro tipo de estabilidade, alinhamento e pensamento a longo prazo para o qual o caos que há pouco referi não ajuda. Há uma sensação subjacente a todo este período dos últimos anos que é de constante compromisso – parece que o potencial de tudo o que estive envolvido nunca foi bem atingido. E, consequentemente, que a minha proposta artística ainda não saiu do limiar da promessa. E a questão desbloqueante aqui é que eu julgo que, visceralmente, não quis assim tanto chegar ao cerne das questões todas que abordei quando isso estava na balança com as constantes descobertas e renovações pessoais inesperadas que estavam a acontecer.
Diria que são exemplos dos vários ciclos pendulares a que a existência está sujeita. E que, da mesma forma que agora me sinto atraído para uma fase de polimento e introspeção artística, outras fases de absorção e extroversão lhe seguirão. Mas a verdade é que agora preciso desse aprofundamento. É uma urgência interna conseguir canalizar toda a opinião estética que tenho vindo a maturar numa obra mais profunda. Porque esta opinião cada vez mais é complexa e multidimensional e com uma importância e uma pertinência interior que transborda, que tem de sair. Algo que tem a ver com estar vivo e artisticamente conectado com os fluxos do agora. E que não se compadece com vãs tentativas. No entanto, conheço-me. E sei que o apelo para abraçar todas as oportunidades e convites ao desconhecido é um animal selvagem que não vou saber domar tão cedo. E talvez isso seja melhor assim. Porque algures pelo meio hei-de conquistar um balanço saudável destes polos de ação onde a magia aconteça e eu continue a ser eu próprio.
A tua atividade abrange um largo espetro sonoro, da música a outras artes performativas, do academismo a domínios mais experimentais, quer enquanto instrumentista, quer como compositor. Cada projeto novo contribui para demonstrar, se necessário fosse, a vastidão dos teus horizontes e interesses…
Bem, sim, acho que o ponto fulcral desse percurso é mesmo evitar ter demasiadas certezas, quer quanto ao que quero quer quanto ao que não quero. Quanto mais me tenho vindo a permitir conectar com a forma como outras cabeças pensam e sentem no mundo, mais tenho descoberto uma espécie de fundo comum que está por trás de todos os assuntos, interesses, disciplinas artísticas, circuitos, modos de operar – algo que liga nuclearmente todos esses domínios que mencionas. E mesmo sem essa consciência, realmente nunca me foi fácil evitar o fascínio por tantas áreas, com tantas pessoas estimulantes a mostrar-me que há sempre mais fontes infinitas de encanto que eu ainda nem comecei a explorar. Para te ser sincero, a sensação dominante que tenho em relação a isso é mesmo essa: o quanto estou enganado, ainda a não saber procurar a verdade elegante das coisas. Sempre que me apaixono por pessoas e matérias novas, há sempre abordagens e pequenas luzes que me desconstroem, que me seduzem, que me tiram o chão e fazem querer experimentar outras perspetivas da vida – e claro, consequentemente, aceitar convites profissionais. Seja a via da simplicidade, direta e genuína, seja a via da pesquisa cerebral, concreta, complexa, seja a via do calor espontâneo, livre, sem rede de segurança, seja a via da abstração, fria, relativa, seja a via da irreverência disruptiva, cáustica, seja a via da contemplação, neutra, estática.
Enfim, com esta pequena enumeração, vieram-me à cabeça inúmeras crises pessoais e as respetivas descobertas, pessoas lindas e experiências artísticas que estiveram por trás – desde os projetos de rock sem o menor teor académico às passagens pelo mundo da música erudita, ao trabalho literário do mundo teatral, aos encontros da música livremente improvisada. Tantos encontros bonitos que tive a sorte de ter!
Os papéis de baterista e de compositor são indissociáveis na tua abordagem ou tendes a preferir algum deles?
Acho que esse é um diálogo interno que hoje em dia convergiu para um só fluxo. Já foi todo um conflito que até me levou a alguma oscilação de cursos superiores, havendo alturas em que via a coisa dessa forma binária. Não me revia na função clássica do baterista. Não me revia nos limites de expressão da percussão. Queria muito ser um compositor, mas não tinha “background” académico suficiente. Mas por caminhos algo tumultuosos fui aceitando as minhas circunstâncias e fazendo delas cada vez melhor uso para tentar chegar a tudo o que quero. E hoje em dia valorizo muito mais ter uma visão criativa clara do que os meios que uso. Com isto não quero desconsiderar minimamente a necessidade de aprimorar a capacidade técnica dos meios – neste caso, a habilidade técnica como instrumentista ou como compositor. Mas é tão mais interessante quando a vontade de estudar surge para conseguir dar forma a um objeto artístico significante! E hoje em dia já tive a bateria em palco a gerar narrativas funcionais para peças de dança, como componho maioritariamente sem considerar a bateria, portanto julgo que nem são indissociáveis nem prefiro nenhum. Desde que acabe por criar sem constrangimentos.
Voltemos, por um instante, atrás no tempo. Começaste a estudar Bateria Jazz que depois deixaste para estudar Piano Clássico e Jazz e, mais tarde, seguir a licenciatura em Composição. Isto não terá sido sintomático do caminho que querias trilhar? Já estava na tua cabeça?
Foi mais acidental do que planeado. Comecei a estudar Bateria Jazz porque a bateria foi o meu primeiro instrumento. Mas a verdade é que nos anos anteriores a esse curso já estava a estudar Composição e, ao concorrer aos dois cursos em 2011, fui admitido nos dois. Optei por Bateria por sentir que a conquista de uma relação motora íntima com um instrumento deve acontecer o quanto antes na vida. Mas, como já referi, o que acaba por acontecer depois disso sou eu a aceitar as minhas circunstâncias e a tentar fazer delas bom uso mais do que a seguir um plano bem definido. Hoje em dia, a música que estou a produzir tem em si todas as paixões que me fizeram querer ser baterista, pianista ou compositor e, em paralelo, a desdenhar muito ser baterista, pianista ou compositor.
A tua música tem a peculiaridade de deixar quem a escuta numa sensação de limbo, de imprevisibilidade, de permanente descoberta…
Isto é uma observação que de novo me evoca o quanto eu não quero ter demasiadas certezas. Porque, agora pensando nisso, essa minha tendência inevitavelmente acaba por gerar narrativas com as opções bem abertas, a cruzar todas as referências que me fascinam, e a profunda relatividade das coisas. Não o faço por irreverência. Mas acredito que algures nesse sítio onde questiono os códigos culturais de cada género, circuito e prática se gera alguma matéria mais viva, descomprometida. E é interessante comentares essa permanente descoberta porque sinto que ainda não questiono o suficiente.
Só no ano de 2021 o teu nome surge nas fichas técnicas de pelo menos seis álbuns. O pilar central será certamente o monumental “Lumina”, onde apresentas uma versão alargada do Omniae Ensemble para operacionalizar uma encomenda do sempre ousado Guimarães Jazz, constituída por grandes instrumentistas sob a direção de Pedro Carneiro. Em que direção(ões) se moveu o som da formação (originalmente um septeto)?
Esta encomenda acho que acaba por resolver um problema pendente que vinha desde a génese do Omniae. É que aquele septeto estóico, com músicos a quem estarei eternamente grato, sempre gritou por uma concretização orquestral. Da mesma forma que aquele repertório na altura nos chegou quando ainda não havia uma maturidade que o soubesse desenvolver – e contra mim, sobretudo, falo. Portanto, as direções em que esta versão de 2020 se moveu são o aprofundamento do repto que vinha desde 2017 – e tão raras são as vezes em que a música tem esta oportunidade de redenção! O que se ouve ali é o crescimento artístico fenomenal de qualquer um dos solistas do septeto, o engrandecimento da profundidade tímbrica bem como uma fusão orgânica das várias explorações de improvisação livre, eletrónica experimental, música de câmara erudita e “performance” mais extrema que foram invadindo os meus últimos anos. É uma consolidação de várias fases e inquietações minhas passadas que aqui finalmente se conseguem organizar num só objeto luminoso, repleto do amor e da dedicação que aqueles 23 músicos deram à música num domingo de manhã em plena pandemia mundial. E também é um dos raros casos em que um objeto musical meu agrada verdadeiramente aos meus pais – que são bons exemplos de uma opinião neutra, não-especializada na arte de nicho –, o que só por si tem de ser um bom sinal – um sinal de círculo total, onde as explorações mais abstratas e exploratórias regressam a um local de música universal, emocionalmente estimulante, onde espero que não seja preciso fazer nenhum esforço para uma qualquer pessoa na sala de espetáculos se conectar.
Também The Rite of Trio, que partilhas com o guitarrista André Bastos Silva e o contrabaixista Filipe Louro, está de regresso. Como enquadras o novo “Free Development of Delirium” na esteira dos anteriores registos do grupo?
Este é um grupo muito especial (um dos outros raros casos que os meus pais também apreciam) que não sabe ser senão verdadeiro e fiel a si próprio. Um grupo de três velhos amigos que se conhece ao ponto de nenhum conseguir enganar o outro. Aqui não há falta de preparação possível. Porque esta música somos nós próprios. E, como tal, enquadro o novo disco como mais um registo de crua frontalidade e honestidade. Se em 2015 isso era um grito de irreverência por três estudantes de música cheios de ideias e vontades, agora é um grito multidimensional mais profundo que quer sentar o seu ouvinte e pô-lo a rir de si próprio sem se levar demasiado a sério. A existência é mesmo mais vasta de possibilidades do que lhe permitimos.
A vossa abordagem alterna entre momentos de incandescência com outros mais etéreos e intrigantes... Com este trio provam a elasticidade das fronteiras do formato do trio guitarra-contrabaixo-bateria...
Bem, mais uma vez, se a música deste álbum testa alguma elasticidade de possibilidades é mesmo porque o propósito artístico a que nos propusemos assim o foi ditando. Claro que para isso contribuiu, como neste trio tem havido sempre, um exigente trabalho de conceção conceptual e musical, onde a composição passa exaustivamente pelos três em diferentes fases até chegarmos à sala de ensaios. Mas mais importante do que encontrar novos caminhos para o que uma guitarra, um contrabaixo e uma bateria conseguem fazer foi explorar o que o André, o Filipe e o Pedro tinham dentro de si, virados do avesso, espremidos, sem qualquer poiso para repousar. E aí sim, coração cru em cima da mesa, acontecem sempre coisas inéditas que nenhum dos três podia prever. Sempre comentámos o quanto um novo disco de The Rite of Trio poderia ser apenas vocal, ao piano ou a tocar instrumentos de brincar. E se calhar essa é mesmo a melhor forma de começar mais um disco de guitarra, contrabaixo e bateria.
Descoberta cega
Detalhemos outros projetos em que estás envolvido. Tens trabalhado de forma profícua com o trompetista Luís Vicente. Na nova gravação fica mais uma vez patente uma complementaridade especial entre as vossas formas de pensar a música…
Sim, o Luís é uma alma livre com quem me sinto sempre muito livre para fazer música quente, descomplexada, exploratória, mas nada pedante. Já temos vindo a colaborar em diferentes formações e foi sempre notavelmente simples fazer a música acontecer com ele. Isto implica muitos alinhamentos na forma como se está na vida. Estes contextos de música composta em tempo real colocam-no muito a nu. E se em muitos outros contextos procuro outro tipo de desafios mentais e emocionais aos quais me quero adaptar e desconstruir, aqui estou sempre a contar com uma verdade instantânea, direta, calorosa que não se esgota. Gonçalo Almeida, que se junta a nós nesse disco, é um ser em chamas que em muito apimenta essa dança livre. Tem-me dado muito prazer sentir a intensidade emocional desta música em franca ascensão.
Outra vertente particularmente interessante do teu trabalho são os duos com outros percussionistas, como Pedro Carneiro, nome fundamental no panorama da música erudita, e João Pais Filipe, também artesão de pratos e gongos. Como encaras estes diálogos com músicos de vincada personalidade num quadro improvisacional?
Encaro-os por um lado como uma expansão do trabalho de investigação que já estava a acontecer na minha linguagem como percussionista e, por outro, como uma série de paixões platónicas que, eventualmente, se teriam de concretizar. E que é dessa paixão e admiração mútua que surge a naturalidade destes encaixes vindos de contextos estéticos tão específicos. E nestes dois casos, especificidade até bastante contrastante comigo. No caso do João Pais tratou-se de vários anos a visitar-lhe o ateliê de artesão de pratos e gongos e de perceber que partilhávamos muitas visões na música. Vimo-nos um ao outro a atuar em diversos concertos e a sugestão para colaborarmos foi repetida várias vezes ao longo dos anos, mas foi preciso aquele mês de janeiro de 2020 para finalmente nos juntarmos para uma semana de exploração e gravação pela primeira vez. O João é um explorador muito impactante da percussão na sua vertente tribal mais “mântrica”, cruzando referências étnicas do mundo inteiro com os seus próprios conceitos rigorosos de métricas e orquestrações. Já percorreu muitos caminhos que eu adoro, desde abordagens mais industriais à improvisação textural mais aberta. Mas hoje em dia está a aprofundar uma linguagem muito própria, muito precisa, com quadros estéticos muito definidos. E isso faz dele um ótimo complemento ao meu discurso, que costuma ter uma natureza mais abstrata e indefinida. Os nossos concertos são exemplos felizes de como a improvisação livre é posta ao serviço de um fluxo intuitivamente organizado de ideias, com matrizes invisíveis que potenciam as nossas personalidades e criam um espetáculo funcional, sem abafar qualquer espontaneidade.
Por outro lado, o contacto com Pedro Carneiro, figura incontornável da música erudita nacional, é mais recente. Embora eu já acompanhasse o seu trabalho há vários anos, surge apenas no ano passado, após o convite para ser o maestro do meu Omniae Large Ensemble e por percebermos que também gostaríamos de nos encontrar num contexto de música livremente improvisada. Confesso que, vindo do meu percurso académico pouco ortodoxo, este foi um encontro que me causou alguma apreensão. Porque o poderio técnico de alto nível de Pedro Carneiro como percussionista poderia facilmente chocar com a minha abordagem menos “instrumentística” da bateria. Mas a verdade é que também não poderia ter sido mais orgânica, tendo sido imediato dedicar-nos logo no primeiro encontro à composição de vários quadros que resultavam diretamente do cruzamento das nossas linguagens e técnicas estendidas pessoais. Os concertos deste duo, ao contrário dos do duo com o João Pais, acabam por respeitar os quadros tímbricos e conceptuais que foram definidos em disco, havendo depois dentro deles total liberdade para a exploração. Mas em ambos os casos sinto que são encontros estruturais para firmar o caminho pessoal na bateria e percussão que os últimos anos me trouxeram.
Um dos aspetos que considero mais relevantes na tua abordagem é a profunda originalidade que se intui radicar numa capacidade idiossincrática de processar múltiplas referências. És um ouvinte ávido? O que te interessa ouvir hoje?
Definitivamente, sim. E é capaz de ser um dos assuntos que mais tento reforçar em contexto pedagógico: a cultura artística resultante do consumo de arte ao vivo e em diferido é o alimento central para a criação. Sobretudo quando esse consumo é aberto ao desconhecido, descomplexado, predisposto à descoberta cega. Só quando te permites receber aquilo com que não estavas a contar é que se dão possíveis expansões de imaginário. E aqui deixo uma menção à importância da curadoria, da crítica e do jornalismo especializado para que este fenómeno aconteça – sem esses canais de divulgação a fazer-nos chegar propostas inesperadas fica mais complicado sairmos da nossa bolha de procuras.
Queres concretizar?
Hoje em dia estou muito interessado no consumo de propostas arrojadas que, sem se aperceberem, estão mais conectadas com a essência do que é “arte contemporânea” do que a arte que expressamente se dirige a esse rótulo. Com isso refiro-me a expressões que estão num sítio despretensioso, a beber de tudo o que é estar vivo em 2021. E isso faz-me ir a circuitos de pop alternativo, como o “hyperpop” de PC Music, SOPHIE, Arca e o nosso Conan Osíris, tanto como a projetos de música eletrónica de cunho mais popular como The Books, Deantoni Parks, Clipping ou WaqWaq Kingdom. E, como julgo que todos os apreciadores de jazz contemporâneo, também estou muito atento a estes circuitos novos em torno de Berlim (Otis Sandsjö, Petter Eldh, Christian Lillinger, Christopher Dell, Kaja Draksler, etc.) e Los Angeles (Sam Gendel, Flying Lotus, Louis Cole, Thundercat, etc.). Depois, nos campos de música mais específica tenho adorado conhecer cada vez melhor os trabalhos eletroacústicos de improvisadores como Lukas König, Arthur Hnatek, Streifenjunko ou Craig Taborn e, por exemplo, a composição multimédia de Alexander Schubert, bem como revisitar artistas de música textural como Dans Les Arbres, música eletrónica como Ryoji Ikeda e Icarus, ou música erudita como Simon Steen-Andersen ou Alex Mincek. E pelo meio limpar os ouvidos com missas de Gesualdo.
Essas referências díspares integram a tua música sem que jamais se vislumbre o fantasma da emulação…
Bem, não sei. E até é estranho pensar em emular. Isso diria que está dependente de processos muito pessoais, de como as pessoas ouvem e abordam aquilo que as fascina. Eu acho que sempre me interessei em focar mais nas matrizes conceptuais, quase até “energéticas”, que estão por trás das minhas grandes inspirações, do que nas suas concretizações concretas. Ou seja, é quase como se às vezes, quando gosto mesmo de algo, conseguisse contactar com aquilo que excitou o criador, naquele seu dado contexto, e conseguisse partilhar essa visão e função pré-composicional. O que por sua vez me faz querer criar algo que é meu e de agora, nascido das minhas circunstâncias presentes. Se um criador for minimamente sensível ao facto de estar a criar hoje para as pessoas de hoje e consciente de si e das suas urgências é quase inevitável que crie música pertinente e autêntica, mesmo que a originalidade não seja de todo uma prioridade. Acho que o importante nessa questão é, mais uma vez, uma visão criativa clara acima de qualquer linguagem ou recurso em particular.
E interessam-te idiomas, linguagens, nem que seja para os interpelar e subverter criativamente?
Claro, apesar do que acabei de dizer, idiomas, linguagens, timbres, recursos específicos são materiais com os quais adoro ser obstinado a explorar. Nada do que referi como dar primazia à visão criativa implica ignorar os materiais concretos da criação ou a tradição. Pelo contrário, interessa-me muito conhecê-los exaustivamente, dominar-lhes o desenvolvimento e as variações, comparar-lhes as utilizações antigas e modernas, as funções sociais, os contextos estéticos. Para depois, claro, as utilizar livremente, sem estar a querer cumprir com nenhum cânone prévio. Mas, de qualquer forma, é indispensável primeiro ter uma relação pessoal profunda com os materiais em causa e respetivas origens, porque, naturalmente, nunca nada é novo.
Falso baterista
De que modo entendes a relevância da “tradição” do jazz – e também da música erudita – para o que fazes, enquanto, eventualmente, matéria-prima para explorações?
Sobretudo o jazz, diria que será sempre, consciente ou inconscientemente, o meu ponto de partida. Quando digo isto refiro-me à matriz do jazz mais do que à sua expressão tradicional – na qual, diga-se, nunca fui muito profundo. Ou seja, o jazz enquanto uma conceção de interação rítmica e harmónica da música – o elemento do diálogo em tempo real, e a forma como este se baseia numa secção rítmica, onde o ritmo, talvez até mais do que a harmonia, ocupa mesmo uma função central. E digo isto ao mesmo tempo que me considerei a vida toda um falso baterista, na medida em que as componentes texturais da música sempre me cativaram mais do que o ritmo. No entanto, depois constato que toda a música que componho tem essa base rítmica claramente expressa – e ainda mais a música que estou a compor agora para os meus próximos projetos.
A música erudita, por outro lado, foi onde em paralelo fui encontrando respostas para as minhas procuras de diversidade tímbrica e textural. Ao contrário do jazz, que parte tipicamente de formações com sonoridades muito análogas, a música erudita e as suas formações díspares, desde a música de câmara às orquestras densas, potenciam logo de forma mais imediata a criatividade na expressão e uma sensação de potencial infinito do timbre. Sensação que também fui descobrir mais tardiamente nos circuitos da improvisação livre – para onde, curiosamente, confluem músicos quer de formação jazzística quer de formação clássica.
Buscas alguma espécie de equilíbrio – se tal existir – entre as estruturas patentes no material composto com a espontaneidade da improvisação?
Sem dúvida. Não que o faça sempre de forma explícita, porque às vezes esse tipo de expectativas abafa possibilidades. Mas internamente acredito nesses dois polos de criação com a mesma profundidade, portanto procuro emparelhá-los nos pontos em que se tocam e enriquecê-los nos pontos em que divergem, reconhecendo-lhes as diferenças estruturais. E perturba-me particularmente quando não vejo esse respeito noutras criações, mas a verdade é que existirá sempre muita superficialidade na forma como os compositores lidam com a improvisação e como os improvisadores lidam com a composição. Da mesma forma que na forma como se lida com material tradicional e material moderno... Diria que é preciso muito cuidado na forma como se aborda a composição quando se pretende que ela saiba a um fluxo livre, da mesma forma que é preciso cuidado quando se aborda a improvisação para que seja estruturada, complexa e funcional. Porque, em qualquer um dos casos, estamos a entrar em conflito com as suas naturezas originais e corre-se o risco de lhes aniquilar a luz própria que tenham.
A composição, quando ambiciosa e rica, tende a ser mais rígida, e a improvisação, quando crua e aberta ao calor do desconhecido, com espaço para a auto e a hetero-transcendência, também tende a ser mais desestruturada. Por outro lado, quando se encontra esse balanço frágil da dose certa, é um sítio de potência sem limites. E quer em The Rite of Trio, In Igma ou em Omniae Large Ensemble, que são os meus projetos mais compostos, já senti esse potencial a brilhar. Mas é uma pesquisa em curso. E tenho exemplos sólidos como o trio de Christian Lillinger com Christopher Dell e Jonas Westergaard como improvisadores, que foram muito rigorosos a basear-se em material da música erudita para estruturar uma linguagem improvisadora de trio, ou o Wet Ink Ensemble, como compositores-instrumentistas que incluem com muita profundidade a improvisação na escrita contemporânea.
Qual a tua “visão” enquanto improvisador? Consideras que a improvisação nunca é totalmente livre, visto que as referências estão sempre lá, ainda que subliminarmente?
Eu diria que a liberdade que a ideia de improvisação livre tem que me interessa não é aquela que está sujeita a esse escrutínio. Porque, uma vez mais, para mim não tem a ver com os recursos em jogo. Até porque esses, claro, partem sempre de algum enquadramento cultural e estético. E a própria improvisação livre tem criado vários quadros estéticos ao longo das décadas com expectativas bem rígidas quanto ao que é suposto ser tocado – várias escolas e movimentos. Portanto, não é que o cerne da questão da improvisação livre seja mesmo a total liberdade estética, porque isso é em si uma bela utopia. No entanto, já encontrei na prática da improvisação livre vários momentos em que, mesmo que a “performance” pudesse ser integrada à posteriori num enquadramento estético concreto, ela partiu de um ponto zero de expectativas. E isso, sim, para mim é o busílis desta questão. Sentir que, naquele instante em que se quebra o silêncio pela primeira vez, tudo é possível de acontecer. É um sítio de ouro, no qual quero continuar a acreditar. Por muito que depois nem sempre seja assim, que alguns músicos não tenham nada a dizer ou que nalguns dias não estejamos com energia suficiente para evitar a passividade criativa. Mas só mantendo essa utopia viva é que, de quando a quando, temos momentos quentes de algum tipo de liberdade.
Enquanto estratego sonoro, tanto exploras a intimidade dos formatos reduzidos (solo, duo, trio) como a riqueza tímbrica de formações mais alargadas. Pretendes, daqui para a frente, explorar preferencialmente algum destes caminhos?
Para ser honesto acho que, artisticamente, continuo com vontade de mergulhar em qualquer um desses caminhos porque eles são espelhos uns dos outros. Mas logisticamente acho que a energia para me dedicar aos formatos mais alargados vai funcionar por ciclos. Estes [anos] 2020 e 2021 em torno do Omniae Large Ensemble, com uma ajuda preciosa de produção de António Fernandes, deixaram-me agora com vontade de dedicar a formações mais práticas e móveis. Grandes formações exigem um investimento de energia incomensurável – têm sido meses de trabalho diário em todas as frentes, desde os arranjos musicais, o estudo, os ensaios à produção, à procura de apoios, aos orçamentos e à promoção do nosso disco. E pronto, digo isto mas depois a minha memória é muito seletiva. E apesar de agora ter muito presente a pressão que um projeto destas dimensões implica, eu seria o compositor mais entusiasmado e dedicado se entretanto recebesse uma encomenda para um segundo álbum do Omniae Large Ensemble. De qualquer forma, em meu nome é mais expectável neste próximo ano voltar a debruçar-me sobre o meu solo, um ciclo de duetos inéditos que vai ser anunciado em breve, bem como o meu novo grupo em quarteto onde estas aprendizagens da escrita para grande “ensemble” terão outra expressão.
És um compositor prolífico ou o processo de destilação musical de que falámos leva o seu tempo?
Considero-me um compositor bem lento. Pelo menos em comparação com todos os meus colegas de composição durante a licenciatura na [Escola] Superior de Música [de Lisboa]. Sei que, para a mesma tarefa, eu preciso de mais tempo do que seria normal se tivesse vindo de um percurso típico de Conservatório. No entanto, também sei que acabo por compensar com a dedicação. Tenho facilidade em ter vários dias, semanas, meses seguidos de trabalho ininterrupto, fechado em estúdio. É fácil esquecer-me das refeições quando estou nessa zona.
O teu trabalho está a ser crescentemente alvo de reconhecimento internacional (Alemanha, Irlanda, Itália,…). O que tens em carteira neste plano?
Bem, a pandemia foi um grande travão nesse campo. Sinto que em 2019 estava a ter um redireccionamento da minha atividade cada vez mais para fora de Portugal, que me fez considerar ir viver para o centro da Europa. No entanto, os confinamentos e a programação dirigida para os músicos nacionais acabou por me fazer reconsiderar estes planos por agora. Continuo atento e em comunicação com muitas das cenas artísticas europeias, sobretudo na Alemanha, na Holanda, na Bélgica e em Itália, mas com perspetivas de continuar por cá mais uns tempos. Ainda assim, tenho umas “tours” planeadas para novembro com o trio de Luís Vicente na Holanda e na Bélgica e outra em trio com Andrea Grossi e Simone Quatrana em Milão. Além disso, estou em planeamento com o baterista Vasco Trilla para organizar uns concertos e gravações com a lenda da bateria Bob Moses, num trio de percussão livre. E de resto, além de estar em contacto com alguns músicos como Lukas König ou Ignaz Schick para eventuais colaborações, também vou regressar à estrada internacional com The Rite of Trio e com o meu novo quarteto, mas tudo datas a anunciar em 2022.
Tens também trabalhado na interface com outras áreas da criação artística, como o teatro ou a dança. O que mais te atrai nestas polinizações cruzadas?
Atrai-me retirar a música do seu contexto e da sua função estética abstrata. Atrai-me olhar para a criação como um todo pluridisciplinar e servir causas conceptuais e emocionais maiores. Porque a música pela música, embora dotada de um poderio expressivo sem limites, às vezes também não parece suficiente para dar resposta a todo o turbilhão de urgências artísticas. Já estive mais ativo nesta área, mas continuo muitíssimo interessado em expandir as colaborações com as outras artes, desde a “performance” em palco a instalações multimédia ou música para cinema.
Pedindo-te um difícil exercício de distanciamento, como analisas o atual momento do jazz e das músicas improvisadas em Portugal?
Acho que é consensual que temos um panorama musical prodigiosamente rico, quando o colocamos em contexto com a dimensão e a saúde financeira do nosso país. Agregando as várias estrelas que temos distribuídas também por todos os cantos do mundo com as novas fornadas de alunos talentosos vindos dos ensinos profissionais e dos ensinos superiores de jazz e música clássica, acho fascinante o potencial que se tem vindo a agregar. E sinto um panorama cada vez mais fresco e informado, com cruzamento de gerações e de circuitos.
Peguemos nesta tua última afirmação. Temos assistido ao surgimento, nos últimos anos, de vários projetos interessantes que juntam músicos provenientes de diferentes famílias estéticas, muitas vezes separadas de forma artificial. És um notável exemplo da simbiose entre “cenas” musicais, estabelecendo pontes e colaborando com músicos de várias regiões do país, algo que não era muito habitual há uns anos....
É verdade, isto é algo que acho que sempre tive em mim. Por um lado vindo do cruzamento de circuitos estéticos de que já falámos, mas por outro já vem desde a fase de estudante, em que fui pedindo aulas a músicos de regiões muito diferentes, do norte ao sul do país e do facto de já ter vivido tanto no Porto como em Lisboa. Sempre gostei de retribuir aquilo que os vários artistas com quem cresci me deram. E isso foi naturalmente tomando a forma de convites sem fronteiras. Sempre que algum músico me fascina começo logo a imaginar que potencial está ali para ser aproveitado. E visto que costumo estar à frente de projetos em meu nome dá-me particular prazer dar oportunidades, desafiar e colocar seres artísticos fora dos seus contextos, para os ver desabrochar noutros sentidos. Foi, por exemplo, isso que me levou a criar a programação do meu ciclo Entropia no Porto, que estabeleço no Ermo do Caos – espaço cultural que partilho com André B. Silva e Inês Garrido. Então, na formação de projetos, nunca penso só na cena musical de uma cidade, vêm-me à cabeça sempre músicos que estão distribuídos por várias regiões e vindos de diferentes circuitos artísticos. O meu Omniae Large Ensemble, também pela dimensão, é um bom exemplo disso com músicos distribuídos entre Guimarães, Porto, Aveiro, Lisboa, Corunha, Barcelona, Amesterdão, Copenhaga e Hamburgo e provenientes dos circuitos do jazz, da música erudita, da música improvisada e experimental. Também, convenhamos, vivemos numa altura de globalização e fácil mobilização que facilita este tipo de pensamento. Portanto, hoje em dia é mais fácil levar avante este tipo de iniciativas. De louvar são aqueles que sempre o fizeram, décadas e séculos atrás.
Anthony Braxton disse em certa ocasião: «Estou interessado no estudo da música e na disciplina e experiência da música como um mecanismo esotérico para prosseguir as minhas reais intenções.» O que procuras, afinal, com a tua música?
Isto é uma bela pergunta de fecho. Com a música acho que procuro tanto algo que está relacionado com a forma de estar na vida como com a obra que fica. Mas cada vez mais a balança entre estes dois objetivos tende para a primeira. Ou seja, quero sobretudo que tudo aquilo em que acredito – a relatividade e o macro-caos das coisas, o viver no presente sem expectativas, a disponibilidade para a magia de tudo – seja verdade no processo global da música, desde a forma como acordo todos os dias e encaro com ânimo a existência, à fase de pré-conceção e absorção de estímulos do mundo até ao momento em que estou em palco a ter experiências revigorantes com pessoas que me reconstroem diariamente. E que, com isso, se conquiste uma horizontalidade admirável da realidade, onde existe tanta profundidade e consequência filosófica na escolha sensível de um timbre de um prato como em contribuir para a resolução das problemáticas sociais que nos afastam da plenitude.