Michael Lauren, 23 de Maio de 2022

Um registo do momento

texto: Eray Aytimur / fotografia: Inês Sousa Vieira

O baterista nova-iorquino Michael Lauren tornou-se uma figura fundamental da cena jazz portuguesa, como músico e pedagogo, ao longo dos últimos vinte anos. Ao leme do seu grupo The Michael Lauren All Stars editou os discos “Once Upon a Time in Portugal” (2015) e “Old School / Fresh Jazz” (2018). Agora, Lauren lança um novo disco, gravado em trio, “Live at Mobydick Records” – resultado de um concerto em livestream. Neste trio, a acompanhar o baterista, estão o guitarrista Vasco Agostinho e o contrabaixista João Custódio, a tocar um jazz de alta intensidade. Eray Aytimur trocou impressões com o baterista sobre este novo trabalho; as fotografias, no Jardim da Estrela, em Lisboa, são de Inês Sousa Vieira.

 

Ao longo da sua longa carreira já gravou discos ao vivo, mas uma gravação de uma transmissão mundial em livestream é uma nova forma de produção. Já tinha planeado fazer algo assim ou foi resultado da pandemia?

Nem por isso! Não estava interessado em fazer este tipo de concerto, porque seria num clube vazio, sem público. Não me parece que seja uma forma natural nem divertida de tocar música. O único motivo porque concordei fazer este concerto em livestream foi porque se tratou de uma atuação num estúdio de gravação, onde sabia que nós os três estaríamos confortáveis. Adicionalmente, tinha a esperança que do livestream pudesse nascer um disco ao vivo e sabia que a música estava a ser gravada em multi-track. Assim, se decidisse editar o disco, tinha a possibilidade de fazer a remistura posterior, se fosse necessário.

 

A data de edição do disco teve de ser adiada? 

O calendário do lançamento foi determinado tendo em conta a data em que a mistura e a masterização estivessem concluídas. A editora, Mobydick Records, decidiu que o final de março seria a melhor altura para lançar o primeiro single, publicando o álbum um mês depois. Assim deu-nos tempo para preparar a campanha promocional.

 

Ligado à primeira questão, de que forma é que a pandemia afetou o seu trabalho, em termos de motivação artística, criatividade e eficiência?

A maior das pessoas foi afetada negativamente pela pandemia e eu não fui exceção. Mesmo antes da covid chegar a Portugal, aposentei-me da posição de professor adjunto de bateria na ESMAE. Isto aconteceu na primeira semana de fevereiro de 2020. A covid alterou completamente os meus planos de reforma e fiquei sem trabalho durante vários meses, quer nas aulas privadas quer nas atuações como músico. Felizmente tive uma agenda bem preenchida de concertos, desde o verão até ao outono. Então o pior aconteceu em dezembro de 2020, fui hospitalizado com covid. Felizmente recuperei e pude voltar a atuar na primavera de 2021. Durante os períodos sem trabalho, passei muito tempo a praticar, a tocar, mantendo a forma e trabalhando em novas ideias. Foi na primavera de 2021 que fui convidado para este concerto em livestream. Na preparação deste concerto estive a compor muitos temas novos, foi uma altura muito criativa para mim, motivada pelo concerto livestream em trio.

 

Falando sobre este disco, em geral: temas cativantes, uma abordagem harmónica da era jazz-rock, solos longos, tempo irrepreensível, ostinatos do contrabaixo, etc. Mas se formos música a música, há mais... Primeiro, “Biji” é um arranque inesperado para o disco, trocou o swing da versão original de Sonny Rollins com ritmos funk e rock. Qual é a sua ligação com esta música?

Sim, troquei o swing original por uma abordagem diferente. Onde o tema original tem um swing leve, eu apliquei uma abordagem mais agressiva. A secção B do arranjo de Rollins tem um ligeiro ritmo funky; na minha versão tem mais um swing latino. No meu arranjo também meti os momentos para os solos em oito compassos (“trading eights”) imediatamente a seguir à melodia. Sempre adorei tocar temas de Sonny Rollins por causa das melodias rítmicas e das formas harmónicas lógicas. Por isso, quando o Vasco Agostinho levou a “Biji” para um ensaio, acrescentámo-la imediatamente ao repertório do grupo! Para mim, é um tema feliz e enérgico. É muito divertido de tocar e o tema perfeito para abrir o álbum e os concertos.

 

 

“Ritual do Cabrito” e “Sempre em Frente” são uma espécie de tribute à era do rock'n'roll. Além disso, estes dois temas sublinham virtuosismo técnico e “know-how” teórico, baseado em cromatismo. Como descreveria as bases destes temas?

Como o “Ritual do Cabrito” foi composta pelo Vasco Agostinho, senti que lhe devia perguntar. Ele disse-me que o tema vem da linha de baixo e que a secção A da melodia é baseada na escala de blues. Contudo, para tornar a melodia mais abstrata ele removeu as notas mais óbvias. O Vasco também me disse que compôs a secção B para contrastar com a secção A, e pensou na melodia B como âncora que liga a harmonia da secção B. Ele visualizou a progressão de acordes como uma curva, que afasta a harmonia da harmonia da secção A. É no fim da curva que reconecta a harmonia da seção B com a harmonia da seção A. O uso do cromatismo do Vasco pode-se ouvir no seu solo de guitarra. Para apoiar a secção A, eu toquei na tarola um groove funk-rock, e depois contrastei na seção B com um estilo rock/soul 60’s.

O meu tema “Sempre em Frente”, que teve input harmónico do Vasco, é um AABA assente no conceito tribal africano de chamada e resposta, nos As. A secção B tem uma melodia em oito compassos, que é apoiada por todos os acordes de sétima dominante. A progressão da secção B é assim: V, IV, V, I, IV, V, IV, V. Compus este tema enquanto tocava um groove na bateria e ia cantando diferentes melodias de chamada e resposta para um gravador. Depois fui ouvir e escolhi as melhores melodias. O groove A foi baseado numa batida clássica rock/soul, com uma secção B contrastante, com ritmos de tarola mais ativos. Em última análise, esta música tem tudo a ver com groove profundo.

 

“Bonfim Blues” soa familiar e acaba por ser um bom indicador do som global deste trio, liderado por um baterista. Como nasceu e evoluiu este tema?

Compus o “Bonfim Blues” para o primeiro disco do meu grupo The Michael Lauren All Stars, “Once Upon a Time In Portugal”, com temas como “Freddie Freeloader” e “Things Ain’t What They Use To Be” como inspiração. Queria um blues em tempo médio com uma melodia que não fosse complicada. Então, escrevi esse tema. Como temos tocado este tema nos concertos com o trio, resolvi incluir na setlist do concerto em livestream, com um novo arranjo em tempo mais lento. Para o novo arranjo, decidi que a melodia, quando fosse tocada pela primeira vez, deveria ser tocada como pergunta e respostas entre contrabaixo e guitarra nos primeiros oito compassos, e depois nos últimos quatro compassos seria tocada em uníssono. A segunda vez, a melodia deveria ser tocada em uníssono ou só pela guitarra. Depois dos solos a melodia deveria ser tocada apenas pela guitarra. Neste arranjo decidi também tocar um solo de bateria, logo a abrir. O solo começa free e vai evoluindo para uma forma, até que entra a melodia. Mais à frente no tema há “trading fours” (solos de quatro compassos), que também não existiam na versão original. Também toco com mais intensidade e um swing mais pesado do que no original.

 

Vamos agora para “Looking Back at Life”, uma balada com um solo de contrabaixo avassalador. Qual terá sido esse momento, olhando para trás na sua vida, que levou a alcançar este ambiente desta música?

Durante a pandemia tive muito tempo para pensar sobre a minha vida, onde estive, tudo aquilo que já fiz e aquilo que ainda queria fazer. Então, decidi escrever uma balada que levasse o ouvinte para dentro. Queria uma melodia que fosse introspetiva e triste, por causa do estado do mundo e das oportunidades perdidas, mas também que fosse bela, porque a minha vida tem sido cheia de conquistas, grandes momentos e belas memórias de todas as pessoas maravilhosas que passaram pela minha vida. Queria ligar o final de “Sempre em Frente” com o início de “Looking Back at Life”. E também queria o João Custódio em destaque nessa música. 

 

 

“Fresco” é atmosférica, groovy, espécie de fusão dos 2020’s. Sente distância da harmonia bebop?

Eu nunca me canso de harmonia bebop. Para mim, uma das funções mais importantes que tenho ao tocar é apoiar a música que estou a tocar no momento em que a estou a tocar. Há sempre maneiras novas de abordar os temas não temos de usar a mesma linguagem rítmica do bebop ao tocarmos temas do bebop. Devemos escutar os outros membros da secção rítmica e os solistas e tentar compreender aquilo que é possível. Tocar é sobretudo fazer escolhas. O desfio é fazer as escolhas certas e fazer música com que a música soe fresca, entusiasmante e comprometida. Tal como os criadores do bebop fizeram.

 

Se estivesse a desenhar a “Jazz Tree” de 2022, onde colocaria ou categorizaria este álbum? 

Eu colocaria este disco no ramo do “jazz contemporâneo”. Nós estamos num período da história do jazz em que se os artistas chamam a música de jazz, então é jazz. Este álbum é jazz contemporâneo, ou aquilo que eu chamo de “jazz & beyond” [jazz e mais além], por causa da diversidade de influências estilísticas e do repertório eclético. Acredito que este é um registo do momento.

 

E agora, para além deste disco: continua a trabalhar na educação e com a International Drum Academy. Qual a sua opinião e expectativas sobre a nova geração de bateristas? Vêm aí novas lendas?

Acredito que este é um período fértil para a bateria em Portugal. Existem atualmente excelentes bateristas e muito conhecedores, alguns dos quais eu tive o prazer de ensinar como professor de bateria da ESMAE durante 18 anos. Esta nova geração de músicos sabe ler música, têm técnica excelente e, mais importante, desenvolveram o seu próprio som e abordagem. Muitos são também compositores e lideram os seus grupos, e isto é um desenvolvimento muito saudável. Honestamente, não sei se se tornarão lendas, só o tempo poderá dizer. Só espero que a nova geração não esqueça de ser melódica, de ser solidária, de lembrar que o espaço na música é tão importante como o som, de tocar com toda a dinâmica, estar sempre comprometido emocionalmente com a música, não com o ego. A música vai sempre dizer o que tens de tocar, se estiveres a escutar com atenção.

 

Para saber mais:

www.michael-lauren.com


Agenda

01 Junho

André Santos e Alexandre Frazão

Café Dias - Lisboa

01 Junho

Beatriz Nunes, André Silva e André Rosinha

Brown’s Avenue Hotel - Lisboa

01 Junho

Ernesto Rodrigues, José Lencastre, Jonathan Aardestrup e João Sousa

Cossoul - Lisboa

01 Junho

Tracapangã

Miradouro de Baixo - Carpintarias de São Lázaro - Lisboa

01 Junho

Jam session

Sala 6 - Barreiro

01 Junho

Jam Session com Manuel Oliveira, Alexandre Frazão, Rodrigo Correia e Luís Cunha

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

01 Junho

Mano a Mano

Távola Bar - Lisboa

02 Junho

Rafael Alves Quartet

Nisa’s Lounge - Algés

02 Junho

João Mortágua Axes

Teatro Municipal da Covilhã - Covilhã

02 Junho

Júlio Resende

Fábrica Braço de Prata - Lisboa

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