Uma forma de resistência
Numa realidade musical em que os cantores escasseiam, a voz de Manuel Linhares é uma lufada de ar fresco que contraria, com criatividade e ambição, a tendência paralisante que em Portugal tem afastado as vozes masculinas do jazz. Mas se está em cena (praticamente) sozinho, Linhares não se encontra, porém, isolado, tal como o tem comprovado o seu corpo de trabalho, que se sobrepõe em vários atos com o de vários protagonistas da música nacional e internacional. Como nos disse John Donne, “nenhum homem é uma ilha”, e as vias comunicantes de Manuel Linhares assumem várias formas e sentidos: é compositor, cantor e professor, atividades em que os talentos lhe são amplamente reconhecidos, principalmente (mas não só) no campo do jazz, no qual se move com experiência e naturalidade; e também é “estudante para a vida”, permeável a um perpétuo enriquecimento musical e artístico que lhe confere predicados apreciados em vários pontos do globo, com o Japão a ser um exemplo notável do alcance internacional da sua música.
Nascido na Horta e crescido no Porto, Manuel Linhares formou-se arquiteto enquanto estudava música – artes que se complementam, tal como o cantor reconhece e já o demonstrara Xenakis. Licenciou-se em jazz pela ESMAE, antes de seguir em direção a novos empreendimentos académicos Europa fora: primeiro, na Taller de Músics, em Barcelona; depois, no Jazz Institute of Berlin. Pelo caminho, tornou-se músico com valências de interpretação e composição que lhe têm permitido construir uma identidade musical própria, que tanto dialoga com os fundamentos de Billy Strayhorn e Billie Holiday como com os avanços de Meredith Monk e Bobby McFerrin.
Após ter lançado duas edições de autor – “Traces of Cities” (2013) e “Boundaries” (2019) –, a tríade discográfica de Manuel Linhares completou-se este ano com “Suspenso”, álbum cunhado com o selo do Carimbo Porta-Jazz que já vai na segunda edição, proeza rara na era do consumo contemporâneo – avulso e digital – desta arte que é a música. Trabalho de produção imaculada, “Suspenso” eleva a voz de Linhares a um novo e diferenciado patamar, que poderá ser brevemente testemunhado em palco, numa digressão que começará no final de outubro e na qual o cantor se apresentará com um septeto de músicos de referência que inclui o saxofonista norte-americano David Binney. A saber, Linhares apresentará “Suspenso” no Hot Clube de Portugal (26 de outubro), na Casa da Música (28 de outubro), no Teatro de Ponte de Lima (29 de outubro) e na Sala Clamores, em Madrid (6 de novembro).
Nesta entrevista, que abarca toda a sua carreira, a jazz.pt falou com o cantor sobre o seu percurso formativo e profissional; as suas motivações artísticas e influências criativas; e os processos e dinâmicas que conduziram à criação dos seus três álbuns. Houve ainda espaço para abordar outros projetos musicais fora da órbita do jazz, discutir questões de género e conferenciar sobre outras das suas atividades enquanto músico e pedagogo. O resultado é um prefácio da digressão que se avizinha, de leitura obrigatória para todos os interessados na música de Manuel Linhares.
Antes de nos debruçarmos sobre o teu trabalho enquanto músico e compositor, permite-me uma pequena incursão pelo início da tua formação enquanto músico. Formaste-te em arquitetura, mas a música acabou por dominar a tua carreira profissional. Como se deu esta transição?
Na realidade não foi bem uma transição. Acabou por ser um percurso natural já que o estudo da música e da arquitetura estavam a acontecer em paralelo. E lá no final do curso de arquitetura começou a ficar bem claro na minha cabeça que a música passaria a ter um papel mais importante. E então comecei a preparar-me para ingressar na ESMAE. Basicamente, terminei o curso de arquitetura e comecei imediatamente o da Escola Superior de Música. Digo que não é uma transição porque na realidade acho que foram cursos que se complementaram na minha formação. Acho que foi muito enriquecedor artisticamente ter estudado arquitetura, e isso também me define hoje como músico.
Para além de teres feito a licenciatura em jazz pela ESMAE, também estudaste na Taller de Músics, em Barcelona, e no Jazz Institute of Berlin. De que forma é que estas experiências no estrangeiro contribuíram para o músico que és no presente?
Acho que estas experiências internacionais são sempre muito ricas para alargarmos os nossos horizontes culturais e vermos as diferentes abordagens e referencias musicais de cada lugar. É tão interessante perceber que o ensino varia imenso e as referências são realmente distintas de país para país, e ainda mais em cidades tão fervilhantes como Barcelona ou Berlim.
Tenho de dizer que estas minhas duas experiências de ensino no estrangeiro foram muito distintas, principalmente pelo lugar onde me encontrava musicalmente. Barcelona aconteceu antes de entrar na ESMAE e deu-me a certeza que era esse o caminho que realmente queria seguir, enquanto em Berlim, onde fui para fazer o meu último ano da licenciatura, foi uma cidade que me motivou imenso a enveredar pelos caminhos da composição e da experimentação.
Tens estudado com grandes nomes do jazz e da improvisação, entre os quais se encontram, por exemplo, Theo Bleckmann, Judy Niemack, Gretchen Parlato, Bobby McFerrin e Meredith Monk. Quais as principais lições que retiraste de estudar com estas referências da música?
Não é uma pergunta fácil de responder de uma forma sucinta. Trago de cada um destes artistas muitos ensinamentos, por vezes, questões práticas e técnicas, mas também questões menos palpáveis como discussões de postura e intervenção artística ou formas de reinventarmos a nossa prática como cantores e compositores. Talvez o que estes nomes têm todos em comum é essa excecionalidade criativa que os tornou referências dentro do meio musical. Costumo dizer que um músico é um estudante para a vida e por isso, tenho sempre esta vontade de estudar com este ou aquele músico que me influencia. É uma postura de descoberta dos universos musicais de cada artista que me interessa muito. Vou ser muito sincero: acho que esta procura acabou por acontecer naturalmente porque depois de um ensino musical universitário, que tem uma certa formatação burocrática e pouco flexível, senti que em vez de investir num mestrado deveria investir em formações com estes músicos que me influenciam profundamente e não estou nada arrependido desse caminho.
Viajas regularmente para os Estados Unidos da América para participar em workshops e recentemente o teu papel nestes cursos subverteu-se: foste professor auxiliar num workshop de Bobby McFerrin e assistente num workshop de Meredith Monk. Como foi estar “do lado de lá” nestes momentos?
Sinto-me muito honrado por essas oportunidades. Foram situações que acabaram por acontecer naturalmente e que elevaram a minha responsabilidade perante estes artistas que me deram a mão e confiaram no meu trabalho. Estar do “lado de lá” e poder assistir bem de perto ao seu método e prática artística é uma experiência impagável e que me deu muitos ensinamentos para a minha própria prática.
Começaste a compor o teu primeiro disco - “Traces of Cities” (2013, edição de autor) - quando ainda vivias em Berlim, e, portanto, imagino que esta tenha sido uma das cidades que mais influenciou este trabalho. Ainda assim, há outras cidades cujos vestígios também tenham sido transportados para este disco? Quais eram, à data, as tuas grandes influências criativas?
Sim, é verdade. Berlim foi determinante para esse primeiro álbum, escrevi vários temas deste primeiro trabalho enquanto lá vivi, e como já referi, foi durante esse período que investi muito no estudo da composição. Talvez por ter tido a sorte de ter alguns professores que me marcaram profundamente, como Judy Niemack ou John Hollenbeck e que me abriram outras portas e confrontaram com novas abordagens. Para além destas duas figuras importantíssimas no meu percurso, talvez deva destacar alguns músicos que me lembro que na altura eram referências essenciais neste meu caminho da composição: o Bobby McFerrin, já na altura uma grande referência na sua procura pelo papel da voz na música; o saxofonista David Binney, cujas composições me entusiasmavam imenso, e ainda o cantor David Linx, com o seu dinamismo vocal e abordagem percussiva. Respondendo à parte das cidades, sim, várias cidades influenciaram este primeiro trabalho: Barcelona, que já foi aqui referida, o Porto, onde vivi grande parte da minha vida, e a cidade da Horta, onde nasci.
A respeito de “Traces of Cities” ser um álbum em que a tua identidade musical se encontra incipiente, nota-se já nele uma matriz musical singularizante que continua de certa forma a reemergir nos teus trabalhos posteriores. Volvidos praticamente 10 anos, como é para ti escutar este álbum? Reconheces nele alguma espinha dorsal que continue a cunhar a tua criação musical?
Já passaram muitos anos e, entretanto, já aprendi muito em termos de produção musical. Isto para dizer que, apesar de ter orgulho no trabalho, representa um pouco o lugar onde estava na altura. Em cada álbum que lancei aprendi imenso e acho que a principal coisa que concluo é que é preciso realmente investir tempo e dinheiro em cada um deles. Porque senão depois vamos ouvir e há sempre detalhes que nos incomodam ou que poderiam ter sido resolvidos de outra forma. Nesse primeiro álbum tinha alguma vontade de o lançar rapidamente enquanto as músicas eram frescas, não tinha disponibilidade financeira para estar semanas a fio no estúdio, mas, ainda assim, acho que é um bom trabalho. Acho que estas questões são mais do foro técnico e do trabalho de som. Em termos de conteúdo, acho que tenho feito um caminho próprio, que penso que tem tido alguma coerência, apesar de temáticas e formações ligeiramente diferentes em cada álbum. O facto de a grande maioria das composições serem minhas e de se tratar de álbuns de temas originais criam desde logo um universo musical bastante pessoal, o que acaba por ajudar a esta continuidade.
A “Traces of Cities”, seguiu-se “Boundaries” (2019, edição de autor), um disco sobre barreiras - físicas, mentais, espirituais -, cuja qualidade te tornou num nome incontornável do panorama jazz nacional. Com que novas ideias experimentaste neste disco?
Este álbum surge numa altura em que andava a explorar abordagens distintas tanto ao canto, como à composição. Neste sentido foram muito importantes os estudos com a Meredith Monk, com o Bobby McFerrin e talvez com a Gretchen Parlato. Se no primeiro álbum a voz aparecia de uma forma mais consensual, como lead (apesar de ter vocalizos e improvisação vocal), neste segundo álbum explorei muito mais harmonização de vozes não só na gravação, mas também no processo de criação dos arranjos. Aliás, todos os arranjos foram feitos através da minha voz e depois transpostos para os devidos instrumentos. Para além desta questão conceptual, acho que a grande diferença na produção deste álbum foi a necessidade de abordar a produção musical de uma forma mais consciente e planeada.
No início de 2022 lançaste o teu terceiro trabalho em nome próprio, intitulado “Suspenso”, com selo do Carimbo Porta-Jazz. O que é que exatamente se encontra em suspenso neste trabalho?
Este meu terceiro álbum costumo dizer que é um bebé não planeado. Tinha lançado o “Boundaries” em 2019 e pouco depois estávamos em pandemia. Vi-me forçado a ficar isolado num quarto 14 dias, bem no início desta crise sanitária, e com a companhia do meu piano compus imensos temas que fluíram naturalmente. Foi a forma que encontrei para ultrapassar as barreiras físicas que me isolavam entre aquelas quatro paredes. O resto de 2020 e 2021 foram passados a trabalhar sobre este repertório e produção deste disco. E é assim que este Suspenso reflete sobre este tempo sem tempo, esta pausa em que todos vivemos, onde os limites físicos e temporais foram totalmente postos em causa. Foram períodos muito intensos em que usei a composição como uma forma de resistência.
E como é que o público tem recebido “Suspenso”? Sei que, por exemplo, no Japão tens imensos ouvintes e que a receção do disco tem sido incrível.
Sim, tenho tido uma ótima aceitação a este trabalho, tanto da critica especializada, como dos ouvintes. Aliás, acabámos de lançar a segunda edição deste disco, já que esgotámos a primeira edição, algo que na era do streaming não pensávamos que seria possível! O Japão foi uma surpresa, vendi uma quantidade enorme de cds para o Japão e, entretanto, fui contactado por uma distribuidora japonesa que me fez uma compra grande e está a distribuí-los por lá. É muito gratificante ver que a nossa música é apreciada tão longe da nossa cultura. Vamos lá ver se conseguimos tocar em terras nipónicas em breve.
Além do trio nuclear que te tem acompanhado nas tuas produções discográficas – formado por Paulo Barros (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e João Cunha (bateria) -, tocam em Suspenso um numeroso elenco de músicos nacionais e internacionais, que trabalharam parcialmente a distância, procurando desafiar os limites físicos impostos por esta pandemia. Quem são estes músicos e de que forma é que o trabalho a distância impactou a música resultante?
Quando comecei a produzir este trabalho foi claro para mim que este teria uma premissa, que seria empregar o maior número de músicos e conseguir pagá-los (o que nem sempre acontece quando gravamos com músicos amigos). Mas no meio de uma pandemia, em que os músicos ficaram sem grande parte dos seus rendimentos, essa foi uma parte fundamental na construção deste trabalho. Claro que isso só se tornou possível pelo apoio financeiro que obtive através de uma bolsa de criação da DGArtes. Ao mesmo tempo também andava com uma vontade de experimentar partilhar a parte da produção musical com um produtor e assim apareceu o António Loureiro, multi-instrumentista, compositor e produtor de São Paulo. Um músico que admiro muito e cuja carreira já vinha a seguir há bastante tempo. Outro músico fundamental neste processo foi o Guillermo Klein que, para além de arranjador de um tema, apadrinhou este projeto e aconselhou-me em inúmeras situações. Tanto o António como o Guillermo eram pessoas que não conhecia pessoalmente na altura, mas que nos fomos aproximando pela música e por amigos em comum. Começamos a idealizar um álbum que tinha a participação de um grande ensemble e aí aparece o Coreto Porta-Jazz, um projeto musical que admiro muito e com quem tenho uma grande proximidade aqui no seio musical da cidade do Porto. Depois à medida que fomos arranjando os temas fomos percebendo que alguns seriam perfeitos para determinados músicos, assim apareceu o David Binney, de quem sou um fervoroso fã há muitos anos, o baixista Frederico Heliodoro, o flautista Alexandre Andrés e ainda o trompetista Rubinho Antunes.
Claro que a pandemia obrigou a trabalhar muito à distância pelas interdições de viagens. Desde logo, eu e o António Loureiro trabalhámos via zoom e email durante todo o processo de conceção. Na gravação acabamos por gravar com a minha banda base e o Coreto presencialmente, estando o António a partilhar a sessão de gravação do estúdio cá em Portugal para o estúdio dele no Brasil. Os restantes convidados acabaram por ter de gravar à distância, o que exigiu maior planeamento e coordenação de todo o processo, mas acho que em termos musicais conseguimos obter um resultado muito próximo do que seria ter todos juntos no mesmo espaço. E essa era a nossa motivação.
Costumas escrever toda a parte lírica dos teus trabalhos, e Suspenso não quebrou com esta tendência (exceção feita à letra dos temas “Dança Macabra”, autoria de Capicua, e “Oxigénio”, autoria de António Loureiro). Cantar uma letra é adicionar à voz uma dimensão extra, que tanto pode ser poética, narrativa, ou ambas em concomitância. Como descreves a relação que a tua música tem com a palavra?
Sim, a palavra muda totalmente o sentido da composição, e talvez por isso nem sempre sinto necessidade de incluir palavra. Nesse sentido, em qualquer um dos meus trabalhos há temas sem letra porque sinto que esse caracter abstrato e da utilização da voz como instrumento é o mais apropriado para determinado tema.
Mas gosto de colocar palavras nas composições quando a música o pede, de ver a música evoluir nesse sentido, transformando-se, moldando-se à palavra ao ponto de conseguir transmitir uma história, um pensamento. Normalmente, no meu processo as letras surgem posteriormente à composição, gosto desse resultado. Mas também já aconteceu surgirem ao mesmo tempo, ou em forma de poema que depois é musicado. A ordem como esta inclusão da letra é feita transforma totalmente os temas. Sinto que quando começo pela letra as composições tornam-se mais canções, talvez por isso prefira começar pelo caminho da composição e mais tarde confrontá-la com as palavras.
Paralelamente ao teu trabalho na área do jazz, tens também um interessante projeto com o cantor brasileiro Pedro Iaco, com quem formas um duo que é uma delícia de se ouvir. Qual é a génese deste projeto? Há planos para lançarem música nova no futuro?
Sim, esse projeto surgiu de uma forma muito natural quando eu e Pedro Iaco nos conhecemos em Nova Iorque, enquanto estávamos a estudar no curso Circlesongs do Bobby McFerrin. Ele no seu universo MPB e eu no meu mais ligado ao jazz, mas ambos com um gosto particular na improvisação vocal. Este interesse acabou por nos juntar e apesar de nunca termos conseguido assentar o suficiente para gravar um álbum, já percorremos muitos palcos, pelo Brasil, Portugal, Europa e Estados Unidos da América. Mas se gravar um álbum está nos nossos planos também sentimos que precisamos de mais tempo no mesmo lugar para o fazer. O Pedro vive em São Paulo e entre nós não conseguimos trabalhar muito bem à distância, mas estou certo de que iremos encontrar esse momento.
O ensino é também um importante vértice da tua atividade musical. Enquanto professor de canto e de improvisação vocal, como avalias o estado presente do ensino do canto em Portugal?
O ensino do canto e da música nunca esteve tão bem estruturado como está hoje. Quando comecei a estudar música não havia esta oferta que existe hoje em termos de géneros musicais ou métodos de ensino. Mas se essas ofertas se foram diversificando também acho que foram de certa forma afuniladas. Digo isto porque sinto claramente que a formação musical ao nível escolar e as oportunidades musicais dentro do seio escolar obrigatório perderam muito vigor. E isso tem uma repercussão direta no interesse cultural e artístico dos jovens de hoje em dia. Ao mesmo tempo, e apesar do ensino profissional e dos conservatórios gratuitos, o estudo da música continua a ser um privilégio de poucos, normalmente com maior capacidade financeira e acesso à cultura. Isto é talvez das questões mais gritantes no ensino musical e artístico português. Há que alterar esta perpetuação de um ensino privilegiado e com pouca heterogeneidade cultural e racial.
O que falta fazer para fomentar o interesse de mais jovens cantores pelo jazz? O que é que faz com que os homens estejam tão sub-representados nesta área da música, quando não o são, por exemplo, no rock ou no hip-hop, géneros em que o uso da voz se encontra muito mais disseminado?
Não sei se não há interesse dos jovens pelo jazz. Obviamente que a cultura pop que nos rodeia acaba por ter naturalmente mais preponderância (e quando digo pop refiro-me à própria origem da palavra derivado de ser popular, que hoje em dia talvez represente mais o R&B como estilo de música mais ouvido, mas que outrora, por exemplo nos Estados Unidos da América, foi o jazz) mas continua a haver muito interesse no canto jazz, bem como no canto lírico. O que sinto é que muitos cantores escolhem o jazz como processo de estudo para desenvolver capacidades, mas que depois acabam por seguir caminhos distintos, e sejamos francos, ter uma carreira no canto jazz em Portugal é bastante limitativo. Há poucos palcos, especialmente de pequena e média dimensão e a música ao vivo já teve maior fulgor do que tem hoje. Inevitavelmente, os cantores que se formam nas universidades acabam por encontrar mais rapidamente lugar no ensino.
Quanto à questão dos homens no canto. Penso que existe ainda um preconceito grande (apesar de ter vindo a melhorar) nas questões de género na música. Continuamos a perpetuar uma imagem da mulher cantora e do homem instrumentista, e quer queiramos ou não repetimos estes padrões. Acho que isso influencia muito a decisão de um homem se dedicar ao estudo do canto e também da mulher estudar instrumentos tendencialmente tocados por homens, tais como o contrabaixo ou a bateria.
Por outro lado, acho que existe de certa forma um legado machista. Acho que a postura dos crooners mostra bem qual é a visão mais consensual de um homem no canto jazz, que não deixa de ser uma abordagem do passado e que se escuda de lugares mais sentimentais pela sua força, capacidades e presença vocal. Olhando para outros géneros musicais como o R&B ou o rock, sinto exatamente esta mesma fuga à demonstração de vulnerabilidade e do sentimento. Mas penso que as novas gerações são cada vez mais abertas quanto a estas questões e muito tem mudado nos últimos anos.
Conduzes, desde 2017, um laboratório de improvisação e criatividade vocal – “O Círculo da Voz” -, que tem tido sessões por todo o território nacional. Quais os objetivos deste workshop? A participação está aberta a toda a comunidade ou é apenas direcionada para cantores?
Sim, este laboratório é um espaço aberto a todos os que gostem de cantar, sejam cantores profissionais, amadores ou de chuveiro. É um espaço de experimentação onde tento incluir abordagens distintas ao canto, baseadas na improvisação vocal. Abordagens essas que desenvolvi através de técnicas que fui aprofundando com os meus estudos com o Bobby McFerrin, a Rhiannon ou a Meredith Monk.
O Círculo da Voz nasceu então com a premissa de criar maior dinamismo na comunidade de cantores e, ao mesmo tempo, estender este convite à participação de bailarinos, atores ou performers, criando uma maior relação entre estes mundos artísticos, potenciando-os e ultrapassando algumas barreiras pré-concebidas e perpetuadas nos estudos artísticos, muito focados na sua própria prática.
Além disso, desde 2019, tens desenvolvido em parceria com os cantores Sofia Ribeiro e Rizumik um retiro bianual de improvisação vocal em Portugal, o “Vocal Being Retreat”. Em que consiste este retiro?
Este retiro de improvisação vocal é um trabalho intensivo e imersivo de práticas de improvisação. No fundo é uma continuidade deste trabalho que faço com O Círculo da Voz, aqui partilhando liderança com a cantora Sofia Ribeiro e com o beatboxer Rizumik durante vários dias, num centro de retiros, trabalhando com um grupo de cantores que junta portugueses e estrangeiros neste encontro de improvisação vocal.
Encontras-te em vésperas de te fazeres à estrada para apresentares “Suspenso” ao vivo em várias salas do país (Lisboa, Porto, Ponte de Lima), numa tour que terminará em Madrid e que contará (além do trio Barros-Barbosa-Cunha) com a participação do norte-americano David Binney (saxofone) e dos portugueses Gonçalo Marques (trompete) e Paulo Perfeito (trombone). Como se encontra a preparação destes concertos? Expectativas para esta digressão?
Para esta tour criamos um espetáculo novo, com adaptação e criação de arranjos para uma formação em septeto, com desenvolvimento de cenografia e desenho de luz para tentar trazer o espectador ao interior destas composições musicais.
Vamos ter o enorme prazer de ter o David Binney a tocar connosco, ele que como falado anteriormente já tinha gravado neste meu último álbum, e que gostou imenso do trabalho, mostrando muito entusiamo em tocar esta música connosco. Para mim é uma honra enorme! O David Binney é dos músicos que mais me influenciaram e por isso não tenho dúvidas que será um marco no meu percurso musical. Para além disso, e a juntar à minha extraordinária banda e que me acompanha há vários anos, vamos ter ainda o Paulo Perfeito e o Gonçalo Marques, referências importantíssimas do jazz atual português.
Tem sido bastante trabalhoso montar esta produção já que é uma formação grande e que precisa de muita preparação e apoio logístico, mas acho que teremos uma boas salas e espero que as pessoas venham assistir e que apreciem! Estendo desde já o convite a todos: dia 26 no Hot Clube de Portugal, dia 28 na Casa da Música, dia 29 no Teatro de Ponte de Lima e dia 6 de novembro na Sala Clamores em Madrid.