Interação orgânica
Nasceu na California, mas fez de Nova Iorque a sua casa. Steven Bernstein é um dos músicos mais originais músicos da cena jazz atual, desde logo pela escolha do instrumento, o “slide trumpet” - instrumento que combina o som do trompete com a agilidade do trombone. Integrou os lendários Lounge Lizards de John Lurie e tem distribuído o seu talento em inúmeros projetos e colaborações, com destaque para Millennial Territory Orchestra, Diaspora Soul, Universal Melody Brass Band, Spanish Fly, Blue Campfire e Butler-Bernstein Hot 9. Um dos seus projetos mais interessantes é o quarteto Sexmob, que reinventa criativamente canções pop, onde Bernstein tem a companhia de Briggan Krauss (saxofones), Tony Scherr (baixo) e Kenny Wollesen (bateria). Antecipando a atuação de Sexmob na Casa da Música, no dia 23 de outubro, um concerto integrado no ciclo Outono em Jazz, trocámos palavras com o trompetista.
Antes de mais, o que o levou a tocar um instrumento tão raro, o “slide trumpet”?
Comprei o meu primeiro “slide trumpet” em 1977 por 25 dólares, em Woodstock (NY), quando estudava no Creative Music Studio (com Wadada Leo Smith, Carla Bley, Eddie Blackwell, entre outros). Guardei-o e comecei a tocar mais com ele no meu trio Spanish Fly (com David Tronzo e Marcus Rojas). Ao início só conseguia tocar de forma muito rudimentar.... Mas aquilo sempre chegou ao público… eu sentia as reações das pessoas. Uma noite, depois de um concerto na Alemanha (talvez em 1990?), o Dave Douglas perguntou-me: «porque não praticar mais com essa coisa?». A partir daí, comecei a praticar mais a sério e criei originalmente o grupo Sexmob como uma forma de explorar as possibilidades do instrumento.
Ao longo do seu percurso tem colaborado com músicos muito diferentes, como Roswell Rudd, Sam Rivers, Don Byron, Aretha Franklin, Lou Reed, Digable Planets, Sting... O que tem aprendido com todas estas colaborações?
E essas são apenas as colaborações mais antigas! Acrescentem U2, Sun Ra Arkestra, Levon Helm, Mavis Staples, Radiohead, Laurie Anderson, Little Feat, Hot Tuna, etc. Aquilo que aprendi com tudo isto é que se deve tocar qualquer canção com toda a intencionalidade. Ser fiel à música, a toda a música. Basta ouvir e tocar a canção com toda a sua própria verdade.
Ter sido director musical dos lendários Lounge Lizards de John Lurie foi importante para a evolução do seu percurso artístico?
Foi mesmo, de tantas formas! O John deu-me a oportunidade de fazer arranjos para filmes e televisão... aprendi a organizar grupos grandes, a dirigir uma sessão de gravação... Ele ensinou-me a importância de confiar nos teus instintos musicais, sem ter dúvidas ou pensar demasiado nas ideias musicais. Como bandleader, ele ensinou-me como comunicar com o público e dirigir a energia da música para as pessoas, a importância de transformar a audiência através de vibrações e energia.
No grupo Sexmob, que vai tocar no Porto, toca com Briggan Krauss, Tony Scherr e Kenny Wollesen. Porque escolheu trabalhar com estes músicos?
Porque eles são os melhores e os mais criativos naquilo que fazem! Cada um destes músicos é um virtuoso no sentido verdadeiro... eles têm estilos completamente únicos nos seus instrumentos. Têm ouvidos abertos e estão dispostos a entrar no desconhecido... quer seja uma melodia, um groove ou um som puro... abordam-no com a maior das intenções. Têm também confiança na música, e esta é a qualidade mais importante.
Com Sexmob toca composições muito diferentes, temas de Nirvana ("About a girl"), Rolling Stones ("Ruby Tuesday"), Jerry Garcia ("Ripple") ou Duke Ellington, entre muitos outros. Qual é o crítério para escolher as composições que vocês trabalham?
A música de cada canção tem de ter uma melodia que seja “sexmobável”. Ou seja, a melodia tem de ser tão forte que poderemos ir a qualquer lado com a música... e a canção continua lá. Não importa até onde vamos... a melodia levar-nos-á de volta a casa.
Além de Sexmob, outro projeto importante é a Millennial Territory Orchestra. Quais são as ideias para este grupo?
A Millennial Territory Orchestra começou como uma forma de explorar a música das bandas do “Territory” (Midwest) do final dos anos 20/princípios dos 30... Era uma época em que a música ainda não estava codificada. Encontravam-se elementos de blues, marchas, ragtime, New Orleans, tango, música de dança europeia, etc. Isto é pré big-band, pré Tin Pan Alley, pré “Era do Swing”. Encontrei uma forma muito própria de trabalhar com esta orquestração em particular (trompete, trombone, violino, clarinete, dois saxofones, guitarra, baixo, percussão). Comecei a acrescentar arranjos de canções da minha geração e mais tarde juntei as minhas próprias composições. Os quatro volumes da série “Community Music” foram todos lançados este ano
Outro projeto também muito relevante, e com uma longa histórica, é o trio Spanish Fly...
Foi o meu primeiro projeto como líder (na verdade, co-líder). Foi a primeira vez que atuei na Europa, como protagonista e não como sideman. Nós exploramos a ideia de que cada instrumento tem papéis iguais. Fomos inspirados por bandas como os Air (de Henry Threadgill, Fred Hopkins e Steve McCall) e o trio de Butch Morris, Wayne Horvitz e Bobby Previtte. Onde cada forma e função estão constantemente a ser exploradas e reinventadas. Nós também éramos uma banda que podia tocar groove pesado e canções populares (Nirvana, Hendrix, Ellington), mas tocávamos à nossa maneira. Também, como acontece com Sexmob, seguimos a abordagem de colagem de Don Cherry, não tocávamos exposição do tema – solo – regresso ao tema, mas éramos mais Fellini ou James Joyce: deixar que o concerto conte a história.
Quais são os seus planos para os próximos tempos?
Temos um novo disco com Sexmob, “The Hard Way”. Teve produção de Scott Harding e vai ser lançado no início de 2023 na magnífica editora Corbett Vs Dempsey. É um álbum colaborativo… começou com loops, beats, mesmo com peças eletrónicas de“música concreta do Scott. Depois, eu escrevi composições para cada uma das peças. Nós gravámos ao vivo, com o Kenny em bateria eletrónica, depois com bateria em overdub. O Scott demorou alguns anos a trabalhar a edição e mistura. É algo completamente único! Agora, também depois de editar os quatro volumes Millennial Territory Orchestra (e de começar um novo projeto à volta da música de James Brown, com a Millennial Territory Orchestra, Vernon Reid. John Medeski e três vozes) espero conseguir apresentar ao vivo em festivais este projeto com trezes músicos, com música completamente diferente. E quero gravar o projeto de James Brown, bem como “Sexmob plays Mickey Katz” e Sexmob com Fay Victor a interpretar Bessie Smith.
O que poderemos esperar desta atuação de Sexmob na Casa da Música?
Temos estado a tocar música nova do disco “The Hard Way”, que será editado em breve, bem como alguns temas de alguns dos nossos músicos favoritos. O Kenny vai tocar bateria eletrónica (será a primeira vez na Europa!) e esperamos que haja muita interação orgânica! E talvez toquemos alguns dos nossos temas favoritos mais antigos. Nós fazemos aquilo que fazemos... e mais ninguém o faz como Sexmob... e já o fazemos há 25 anos!