Bernardo Tinoco, 31 de Outubro de 2022

Construção melódica e pensamento harmónico

texto: Nuno Catarino

Oriundo de uma família de grande tradição musical, o saxofonista Bernardo Tinoco é um dos talentos mais visíveis da novíssima geração do jazz nacional. É um dos pilares do quarteto Garfo (com João Almeida, João Fragoso e João Sousa), que editou um notável disco de estreia pela Clean Feed. Como saxofonista, tem sido muito requisitado e integra os grupos Pedro Moreira Sax Ensemble, ApopheniaNazaré da Silva Quinteto. Agora, acaba de editar o disco “NoMad Nenúfar”, num duo com o pianista Tom Maciel (novamente edição Clean Feed). A dupla vai apresentar este trabalho ao vivo no auditório do Liceu Camões, em Lisboa, no dia 2 de novembro. Antecipando este concerto, estivemos à conversa com o saxofonista, que nos falou sobre o seu percurso e os seus projetos.

 

Como é que começaste a tocar? E como chegaste até ao saxofone? 

Vem tudo da influência musical da minha família. A minha bisavó era pianista, o meu avô é músico, o meu pai também é músico... Então foi muito natural para mim chegar até à música lá em casa. Por volta dos dez anos eu andava indeciso sobe qual o instrumento que queria tocar. Sabia que queria tocar alguma coisa, mas não estava satisfeito com aquilo que tinha experimentado. Fui às provas finais do Prémio Jovens Músicos e estava a tocar o Hélder Alves, saxofonista... Então resolvi estudar saxofone e quis estudar com ele. A chegada ao jazz veio mais tarde. Ao fim de dois anos saí do conservatório, onde estava a estudar com ele, e despertou-se o interesse pelo jazz através do contacto com o Pedro Moreira e com um curso de jazz que havia no CCB, o Lisbon Jazz Summer School.

Quem foram os professores que participaram nessa edição?

Lembro-me que estavam o Gonçalo Marques, o Claus Nymark, o Nélson Cascais, o Bruno Santos, o João Guimarães, a Ana Araújo... é capaz de estar a faltar alguém! Fiz esse curso e depois fiz um ano de aulas com o Pedro Moreira. Mas na altura ele era diretor da Escola Superior de Música de Lisboa, por isso tinha pouco tempo para as aulas... Ele aconselhou a ir para a escola do Hot, para ser acompanhado com mais regularidade. E aí estudei com o Capinha e com o Toscano. Ao mesmo tempo voltei para a clássica, estive a fazer ao mesmo tempo o curso do Hot e a Escola Profissional da Metropolitana. Era dose, estava naquele edifício o dia inteiro e a coisa era cansativa... Mas estava ali a fundo, entre o meio clássico e o meio mais jazzístico. Depois terminei o curso profissional e o Hot e fui parar à Escola Superior de Música de Lisboa. Fiz a licenciatura e agora estou a fazer o mestrado em ensino da música.

E nessa fase de aprendizagem, lembras-te quais foram os discos de jazz que tiveram mais impacto? Aqueles que te chamaram mais para o jazz...?

Com ligação direta com a Lisbon Jazz Summer School, lembro-me de dois: do “Kind of Blue” e do “Birth of the Cool” [ambos de Miles Davis], que nós tocámos nessa altura. Nessa altura não conhecia quase nada, só conhecia alguns discos que o meu pai ouvia lá em casa, que eram essencialmente trios de piano do Bill Evans, do Keith Jarrett, do Chick Corea... que é a vertente do jazz que mais mexe com ele. Por isso eu conhecia algumas coisas de trio de piano, mas não conhecia muita discografia... Incentivado pelo Pedro Moreira, comecei a descobrir outras coisas. Depois apareceu o Charlie Parker e interessei-me por aprender as melodias do Parker, que eram coisas mais complexas, solisticamente falando... E a dada altura a coisa tornou-se natural e tendo colegas no Hot, havia uma descoberta constante. Alguém descobria um disco e mostrava, eu mostrava um disco que conhecia... Toda a gente ia aprendendo músicas novas nas aulas de combo, ia buscar as músicas aos discos. A partir daí foi uma avalanche de discos... e até hoje continua. E por mais que eu queira estar a par das coisas que já foram feitas, ou das coisas que estão a ser feitas agora, há tanta música a sair que é complicado acompanhar tudo...


E durante esse processo, na adolescência, ouvias outras músicas, além do jazz?

Não! Na verdade tenho muitos amigos que dizem que eu não tive infância, porque têm a sensação de que desde que nasci só ouvi jazz ou clássica, orquestral, música de câmara... Não ouvi rock, não ouvi hip-hop... A dada altura conheci uma banda de reggae, através de amigos dos meus pais foi-me impingido o Sting, de quem vim a gostar bastante... Ouvia muta música brasileira, através do meu pai. Mas não ouvia muita da música que hoje são clássicos da infância de colegas meus, passou-me tudo ao lado.

Começaste a tocar e tens tocado em algumas jam sessions, Em setembro lideraste algumas jams no Hot Clube. Achas que essa participação em jams será importante para o desenvolvimento de um músico?

Na verdade não o faço muitas vezes. Liderei três jams no Hot, e tentei convidar músicos diferentes, e criar repertórios diferentes para cada semana. E tentei usar essa oportunidade de tocar no clube para aprender música que não conhecia. Houve uma altura em que frequentei mais as jam sessions, particularmente no Café Tati, quando era no Cais do Sodré. Era liderada pelo Gonçalo Marques (que é um pedagogo inacreditável!) e ele tinha a preocupação constante de que os alunos tocassem na jam. Mesmo que fossem músicas de que os músicos mais velhos não gostassem, se fosse a única que soubesse tocar com maios detalhe, era essa que íamos tocar. Houve muita coisa que aprendi naquela jam, ao lado do Gonçalo.

E entre esses professores e músicos mais velhos, quem foram aqueles que mais te marcaram no teu percurso?

O João Pedro Silva é um saxofonista muito versátil e tive contacto com ele na Escola Profissional da Metropolitana, ele foi meu professor durante três anos. Sempre tive muita sorte com os meus professores, mas em especial, o João Pedro Silva, sabendo que eu tinha um foco diferente para aquilo que queria fazer mais tarde, foi uma pessoa que adaptou o trabalho de forma que fosse mais benéfica para mim a médio prazo. E durante três anos ele adaptou o programa curricular de forma a que aquelas aulas fosse produtivas para mim e é certo que foram! Naquele curso aprendi muito sobre o instrumento, sobre a técnica, sobre como tocar... E houve música que toquei, que não esperava alguma vez vir a tocar (como as “Suítes para Violoncelo” de Bach) e que hoje vejo que foram muito úteis na minha construção melódica e pensamento harmónico. Ele foi sem dúvida um guia e orientador que me marcou totalmente.

Lembras-te de mais alguém?

Estudar com o João Capinha foi inacreditável, foi muito rápido para me fazer soar a qualquer coisa parecida com jazz. Com o Toscano eu tinha muita informação diariamente e ele tocava muito comigo nas aulas, que eram super dinâmicas. Mas tanto um como outro estiveram comigo menos tempo... O Pedro Moreira, quando cheguei à Escola Superior de Música [de Lisboa], teve um trabalho super metódico de tratar dos problemas que ainda existem, matá-los pela raíz... Acabei por estar um ano com o Desidério Lázaro, que foi muito fixe, no sentido em que temos visões da música completamente diferentes, temos estéticas totalmente opostas, e usámos isso de uma forma que nos permitisse fazer o balanço das coisas... Falámos muito mais do que tocámos, o porquê de eu ir numa determinada direção na música, e o que eu poderia ter a ganhar estudando outras coisas... Acho que esse ano foi importante para o ciclo que aí vem, em que vou estudar sem ter alguém a acompanhar-me.

Agora tens tocado em muitos projetos. Um deles é o Pedro Moreira Sax Ensemble, que gravou o disco “Two Maybe More” e com quem tocaste recentemente no festival Angrajazz. Como surgiu o convite para tocares nesse grupo?

Tenho a sensação que o Pedro [Moreira] quis fazer uma espécie de casting em que cada pessoa tivesse uma forma de tocar que fosse minimamente semelhante ao seu colega do lado. E acho que ele acertou em cheio! Não há mesmo ninguém aqui que tenha em algum momento alguma semelhança co. outra pessoa. E ele achou que eu poderia fazer parte disto e dar o meu contributo, a dar o meu contributo mais honesto, que é tocar da forma que eu realmente toco. Acho que foi isso que aconteceu para eu estar aqui... 

Tens participado também noutros projetos... Em que outros projetos começaste a tocar de forma mais reguçar?

Comecei a tocar com o Ricardo Pinto, em 2017... Nessa altura o [Ricardo] Toscano estava cheio de trabalho e comecei a substituí-lo, entretanto o Ricardo alargou a formação para um sexteto e agora inclui um saxofone alto e um tenor.
 

Garfo


Um dos projetos que lideras é o quarteto Garfo, com João Almeida, João Fragoso e João Sousa. Vocês têm idades próximas, são da mesma geração… Como surgiu a ideia de criar este grupo? Vocês eram colegas?

Fui colega do João Almeida na escola do Hot e nós aproximámo-nos bastante por causa da nossa junção tímbrica. Nós percebemos que era fácil tocarmos um com o outro e decidimos estudar juntos muita coisa, aprender repertório, estudar ténica, som, uma data de coisas... E a dada altura descobrimos alguns grupos sem instrumento harmónico: o trio do Steve Lehman, o trio e quarteto do Mark Turner, depois os Broken Shadows, tudo formações que tinham dois sopros, além de contrabaixo e bateria. A dada altura eu e o João sentimos a necessidade de fazer um grupo com uma formação idêntica. Fizemos vários concertos em que nós estávamos os dois  e fomos rodando algumas secções rítmicas. Depois surgiu a oportunidade de fazer uma data em Santarém e outra no Café Dias, em Lisboa. Ensaiámos na quarta-feira, tocámos na quinta e sexta, já com o João Fragoso e o João Sousa. E de quarta até sexta ficámos cada vez mais felizes. Decidimos marcar mais concertos e a dada altura começámos a pensar gravar um disco.

O disco foi editado pela Clean Feed. Como chegaram até lá?

Tentámos atirar o barro à parede! O João Almeida já conhecia o Pedro Costa, ligou-lhe, perguntou se queria ouvir a gravação. Ele ouviu-nos e chamou-nos lá à casa dele. Estivemos três horas a ouvir discos e não falámos sobre nada. E no fim ele disse: «então pronto, junho do próximo ano isto sai?» E pronto, foi assim simples, ele tinha gostado da música, demo-nos bem, tínhamos muita música em comum que nos movia aos três e tivemos o privilégio de editar o nosso primeiro disco no catálogo da Clean Feed, que tem muitos outros músicos que admirámos…

E agora estás a editar outro disco diferente também pela Clean Feed, agora um projeto com o Tom Maciel, “NoMad Nenúfar”. Como chegaram a esta música? 

Acho que esta música tem um aspeto composicional mais forte do que os Garfo. Nós decidimos escrever a música em conjunto, toda a música foi escrita pelos dois ao mesmo tempo. Na altura da pandemia vivíamos ambos nas casas dos nossos pais, que eram bastante próximas. Eu ia para casa dele, onde ele tinha o piano, e tocávamos… A dada altura houve a hipótese de fazermos um concerto na SMUP [na Parede], o Rui Eduardo Paes convidou o Tom para um dia com “carta branca”, para fazer dois concertos com músicos diferentes. Resolvemos escrever música original para um destes concertos e assim foi. Uma coisa que nos interessava bastante era usar as valências do multi-instrumentalismo, eu toco quatro instrumentos de sopro (dois saxofones, flauta transversal e duduk, um instrumento arménio com um som lindo) e o Tom toca piano, sintetizadores e drum machine. Ainda que sejamos um duo de saxofone e piano, a ideia era tentar afastar-nos um pouco do som acústico e usar outras coisas que nos interessam. Para gravar decidimos chamar o João Pereira, para tocar em três músicas. E foi o melhor que fizemos, porque o contributo dele em qualquer contexto musical é super valioso e ajudou bastante para acrescentar alguma coisa que pudesse faltar na música. Ele foi escolhido estrategicamente para tocar naquelas músicas em que poderia faltar algo. E não lhe demos muita informação, dissemos «olha, gostávamos de ouvir isto contigo a tocar, toca o que quiseres», fizemos dois takes para cada uma e escolhemos um. E foi isto que aconteceu. O disco está a sair agora e vamso fazer o concerto de apresentação no auditório do Liceu Camões [em Lisboa], no dia 2 de novembro.

 NoMad Nenúfar


Tens tocado ainda com a grupo da Nazaré da Silva, com os Apophenia do João Gato… Em que outros grupos estás envolvido?

Estou a montar um projeto que me parece que vai ser muito fixe. Surgiu de uma iniciativa do Instituto Italiano de Cultura, em que uma região de Itália seleciona um músico para estar trinta dias em residência num país diferente do seu, para tocar com músicos locais. No âmbito deste projeto, um contrabaixista italiano chamado Pietro Paris, de Perugia, que está em Lisboa desde final de setembro, e estamos a organizar alguma música dele em trio (eu, ele e o João Sousa) e vamos gravar e fazer um concerto com convidados. Este grupo parece-me que vai ter pernas para andar. A música está a soar bem e é fácil trabalhar com o Pietro, ele é super metódico.

Além destes, tens previsto mais algum projeto? 

Estou em fase de edição e mistura, de um trio com o André Carvalho [contrabaixo] e o Diogo Alexandre [bateria]. Fizemos uma residência artística, no Musibéria em Serpa, em que nos baseámos num livro que é o “Cancioneiro de Serpa”. É um apanhado de cantigas populares, lenga-lengas, mitos... Decidimos fazer o nosso trabalho a partir daí, captámos uma data de sons, pessoas a cantar nos restaurantes, gravamos uma senhora a contar a sua infância num monte alentejano... Estamos agora a editar tudo isso e a juntar a coisa toda.

E a médio prazo, que projetos gostavas de fazer?

Eu sinto que estou a precisar de fazer alguma coisa em nome próprio, só com música minha, dirigida por mim, pensada por mim. Há-de acontecer alguma coisa em nome próprio em breve, mas estou ainda a tentar perceber o que será isso...

Para terminar, que planos tens para o futuro? 

Eu gosto muito de Portugal, vejo muita malta amiga a ir embora, mas eu vou ficar. Idealmente no Alentejo. Daqui a dez/vinte anos gostava de estar estabelecido no Alentejo. Gostava de sair mais para tocar, tocar lá fora mais vezes, conhecer as pessoas, conhecer as cidades, conhecer os espaços... Quero ficar por cá e quero tocar mais lá fora, quero ter mais contacto com as pessoas lá de fora.

Agenda

29 Setembro

Bruno Pernadas (solo)

SMUP - Parede

29 Setembro

Elisa Rodrigues “Até ao Sol”

Planetário de Marinha - Lisboa

29 Setembro

Jam Session com Fernando Brox

Porta-Jazz - Porto

29 Setembro

Marcos Ariel & Alê Damasceno

Cascais Jazz Club - Cascais

29 Setembro

Mr Monaco

Nisa’s Lounge - Algés

29 Setembro

Orquestra de Jazz de Espinho com Melissa Aldana

Auditório de Espinho - Espinho

29 Setembro

Rui Fernandes Quinteto

Jardim do Mercado - São Luís – Odemira

29 Setembro

The Selva

gnration - Braga

29 Setembro

Mário Barreiros Quarteto

Jardim do Mercado - São Luís – Odemira

30 Setembro

Clara Lacerda “Residencial Porta-Jazz”

Porta-Jazz - Porto

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