Um “talkaholic” sabe o que é a voz
Hamid Drake fala de Alice Coltrane, dos Rolling Stones, e de como é que se faz um músico. Aproveitámos o Guimarães Jazz para falar com Hamid Drake sobre Alice Coltrane e a sua carreira musical. E de como é que se transforma um Hank num Hamid.
Olá Hamid, proponho que comecemos por falar de Alice Coltrane para depois chegarmos a ti e à tua música. Quando vi a ideia para este concerto fiquei mesmo contente por alguém – finalmente – a homenagear. Porque ela é tão importante para a história da música e do jazz, mas tão pouco falada e reconhecida...
Concordo...
Mesmo agora no festival de Chicago em que tocaste com o William Parker homenagearam Louis Armstrong e o Von Freeman, mas ela continua tão pouco reconhecida...
Concordo. Ela foi apagada...
Talvez por ser mulher, talvez por ter sido casada com John Coltrane... tu és o primeiro a homenageá-la, porquê é que achas que foi tão ignorada até hoje?
É uma boa pergunta... de algum modo é um mistério.
Acredito que há várias razões, mas em primeiro lugar porque é mulher. Também porque durante tantos anos – especialmente depois de John Coltrane morrer - ela foi sempre avaliada à luz do marido. Acho que só no final da carreira dela é que lhe foi dada a justa atenção por si, e não por ter sido casada com. É que mesmo as obras lançadas depois da morte da morte de John Coltrane, foram ouvidos como discos em que ele estava presente, ou que eram influenciados por ele. Quando as pessoas pensavam na Alice Coltrane, ligavam-na automaticamente a John Coltrane, apesar dela estar a fazer a sua própria música.
Nem reconheciam sequer que ela já tinha uma carreira antes de conhecer o John...
Quando lemos sobre a vida do casal, percebemos que se apoiavam mutuamente e que quando ele a conheceu foi como se confirmasse o caminho que estava a seguir; e que também ele foi uma ratificação para ela e para a música que estava a desenvolver.
Por isso esta é uma daquelas situações em que ela é um nome importante; mas como foi casada como um grande ser humano, que deixou uma marca tão forte no jazz e particularmente no saxofone, foi difícil para o público não pensar automaticamente nele, quando a ouvem. Mas ela sempre fez música notável. E depois dele morrer ela continuou a fazer música brilhante. Também temos que perceber que a situação do jazz naquela altura era muito patriarcal. Havia algumas mulheres que estavam envolvidas com o jazz – sempre houve – mas o meio sempre foi muito masculino.
Demorou algum tempo... mas acho que também nesta questão, Alice Coltrane contribuiu para desbravar caminho.
Foi por estas razões que eu e a Ludmilla [a agente italiana de Hamid Drake] montámos este projeto juntos. Selecionamos os músicos para o grupo... senti que era tempo de o fazer. Já tinha tocado em grupos onde se tocavam algumas das suas músicas... e os músicos com quem eu estava a tocar nesses grupos também gostavam da música dela.... e o público para quem tocávamos também gostava.
E por fim porque achei que era tempo de regressar às minhas raízes: a Alice influenciou-me muito quando ainda era muito novo; e deu-me confiança para prosseguir a direção musical que eu queria.
Corrige-me se eu estiver errado, mas eu acho que este é o teu primeiro projeto como líder. Já tinhas estado em grupos em que a liderança era partilhada, mas um projeto encabeçado por ti, tanto quanto me lembro, é o primeiro.
Sim, como líder é verdade, tens razão. Há vários grupos em que participei em que há uma co-liderança, mas sim, este é o primeiro grupo que dirijo.
Porque é que demoraste tanto tempo?
... [risos]...
Tu és muito respeitado no meio musical; mesmo em Portugal és admirado. Por isso quando me apercebi que este era o teu primeiro grupo pareceu-me tão estranho, porque já te ouvi tocar tanto ao vivo e em discos que me perguntei: como é que isto é possível?
Isto acontece... particularmente com bateristas [risos]. Porque estamos sempre em support mode de várias maneiras... sabes aquele cliché que diz que “um bom baterista consegue fazer com que um grupo mau soe bem; um mau baterista consegue que um bom grupo soe horrível”.
... há tantas piadas com bateristas....
... [risos]... Pois há.
Bem, em primeiro lugar eu tinha que estar suficientemente confiante para achar que tinha alguma coisa para dizer; repara, o meu primeiro solo acabou de sair em CD. Já há muito tempo que alguns editores me pediam para fazer um disco a solo mas sempre senti que ainda não era a altura certa. Mas devo dizer que devo muito à Ludmilla. Ela encorajou-me a fazer isto. Deu-me confiança e o “the time is now”. E como a Alice foi uma pessoa que teve um impacto tão bom em mim, acho que é uma boa maneira de me estrear.
Mas sabes: eu nunca pensei muito nisto. E ganhar confiança para o fazer levou tempo. Há muitos grupos liderados por bateristas. Mas muito menos que os que são liderados por pianistas ou saxofonistas.
Aconteceu agora porque inesperadamente era o tempo certo, as circunstâncias certas, o projeto certo.
Voltando à Alice: eu não sabia que tinhas tido uma conversa com ela em novo, quando ainda te chamavas Hank. Já como Hamid visitaste-a alguma vez no seu santuário na Califórnia?
Acabei por nunca ir ao Ashram dela na California. Sempre quis ir, fui adiando e acabei por nunca o fazer. Mas correspondíamo-nos.
Eu estive numa religião chamada The Baháʼí Faith e a primeira vez que a conheci dei-lhe alguns livros Bahá’i. E reparei que quando saiu o “Universal Consciousness” ela tinha uma citação no LP de um dos livros que eu lhe tinha dado. Mantivemo-nos em contacto, escrevendo cartas, mas nunca consegui ir ao Ashram...
Eu não sei se queres falar disto, mas aqui vai: quando te vemos tocar há uma espécie de verdade. Sentimos que o estás a fazer com alma e coração e que isso resulta num modo de tocar único. Contudo, agora há uma corrente que usa a designação de música espiritual, apropriando-se destas ideias criadas por Alice Coltrane (e não só), lavando-as, branqueando-as e vendendo-as como um produto. Por isso, quando pensamos em jazz espiritual ou em jazz como força curativa, o que é que tu achas que está no coração desta ideia? qual é a estrutura deste “movimento” digamos, assim?
Boa pergunta....é verdade, agora há uma label, uma empresa, chamada “spiritual jazz”, para editar uma coisa que sempre existiu. Eu acho que o jazz – ou a música criativa – sempre foi espiritual, se olharmos para a música da perspetiva do coração, ou seja dos corações a serem influenciados e elevados. A maior parte da música é espiritual. Se recuarmos no tempo, a maior parte da música clássica ocidental elevava as pessoas: é a mesma coisa.
Então temos hoje uma etiqueta – “jazz espiritual” – para uma coisa mas sempre existiu. É um prescritivo de venda.... temos que compreender [risos]. A música foi sempre espiritual, edificou pessoas, comunidades e os próprios músicos. Os nossos grandes mentores sempre tocaram do coração e a única maneira de permanecer nesta arte é ter muito coração... porque não é fácil....
Certamente que não é...
O William Parker fala do mundo dos tons; é um mundo onde se pode ir – toda a gente pode ir – e trazer coisas para as colocar onde lhe fizer falta. Vais ao reino da criatividade, da tua imaginação e trazes coisas que depois dispões no que estiveres envolvido; a música é só uma dessas coisas. Na música tocas na tua imaginação criativa e dás forma - nunca sabendo que efeito é que vai produzir nas pessoas – esperando que as toque e inspire... pode até mudar-lhes a vida de algum modo...
Como aconteceu contigo...
[Bruno Barreto, da organização do Guimarães Jazz, entrou na sala.]
Bruno Barreto: Que concerto; foi tão bom que eu senti vontade de te abraçar depois do concerto.
[Risos] Sabes que o engenheiro de som veio ter comigo depois do espetáculo e disse-me que me queria dar um abraço! E sou um tipo que gosta de dar abraços...
De vez em quando os elementos certos juntam-se e o sortilégio acontece; quando se tem a plateia certa e os músicos certos, acontece alguma coisa mágica. Cria-se uma comunicação entre o que se chama de “artistas” e o que se chama de “público” e partilhamos todos uma energia.
Para que os elementos se organizem da maneira certa, precisas dos músicos certos e que se liguem da forma certa.
De facto têm que ser as pessoas certas para que percebam sobre o que é que esta música é. Porque nós não estamos a tocar nada de muito complicado..., logo assenta grandemente na capacidade dos músicos de fazerem com que uma coisa simples....
... brilhe...
Brilhe! Isso mesmo.
Porque essa é parte da magia desta música. As frases são simples, são bonitas, curtas. E depois tu, o Jamie Saft ou o Pasquale Mirra no vibrafone agarram naqueles elementos e fazem com que fiquem especiais. E isso é espantoso, porque é mais do que um truque de magia: estamos a ver o mágico, conhecemos o truque, sabemos como é que se faz e mesmo assim ficamos surpreendidos com a intensidade e a espiritualidade.
E sabes que é interessante que quando o grupo começou, fazíamos muito mais composições. Mas depois eu achei que devíamos equilibrar melhor a pauta com as improvisações. E fundir o escrito com o improvisado.
Deixa-me aproveitar para perguntar uma coisa, dado que tens estudado o trabalho da Alice Coltrane: tenho a sensação que a espiritualidade permitiu que os Coltrane seguissem um caminho de rutura com alguns cânones; porque não estavam tanto a responder a regras da música mas sim a um mundo divino, com quem a improvisação dialogava.
Exatamente! E mais: eu acho que a Alice Coltrane o influenciou imenso a acreditar nesta direção. Sinto mesmo que ela o fez. E que o afetou muito espiritualmente também. E isso era muito importante para ele, porque respondia a uma necessidade que tinha, e a uma procura que estava a fazer; repara: ele dominava por completo tudo o resto...
Dou-te mais um exemplo: eu tocava muito com o Yusef Lateef e com o Archie Sheep; ainda o Mulgrew Miller estava vivo. Dei um concerto na Alemanha com o Sheep, o Reggie Workman no contrabaixo, o Miller no piano, eu na bateria e o Yusef Lateef no sax. No início estávamos a trabalhar as composições do Archie que, apesar de ter sido enfiado na gaveta do free, é muito straight ahead.
E um bluesman incrível...
Sim e um bluesman incrível. Absolutamente. Ele é espantoso a tocar blues. O Lateef estava sentado num lado do palco, com o saxofone de lado. Levantou-se, foi até ao Archie e disse-lhe: “brother Sheep: eu já não toco changes (a grelha harmónica do tema). Fi-lo durante 65 anos e já não faço”. O Archie – que é um tipo muito cool - respondeu-lhe: “OK, brother Yusef. Quando tocarmos as minhas composições fazemos a vamp [progressão de acordes repetida que conduz para dentro ou para fora de uma melodia ou composição], top [o ponto de partida de um refrão], tu solas o tempo que quiseres. Quando acabares nós pegamos no resto o tema. E foi isso que fizemos e resultou. Um concerto lindíssimo.
A partir desse momento começámos a trabalhar mais naquilo que o Yusef propunha. Ele tinha um disco com uns sons gerados por computador e queria que nós tocássemos com aquilo, que improvisássemos com aqueles sons. A única pessoa que teve algumas dificuldades foi o Mulgrew Miller porque aqueles sons não tinham absolutamente nada de funk para trabalhar. Então o Yusef foi ter com ele e disse-lhe: “Brother Mulgrew, imagina o som das nuvens a passar ou o som de uma folha a cair de uma árvore no chão”. Então o Mulgrew olhou para ele e disse-lhe: “quer dizer que posso tocar o que me apetece...?” [risos]. O Lateef disse: “sim!” [mais risos]. E no final do concerto o Yusef toca um blues espantoso – ele não queria fazer as peças do Archie com os acordes, mas no final, o último tema que nós tocámos, foi o Yusef Lateef a tocar um blues lindíssimo.
Estes mestres conseguem trabalhar uns com os outros assim, a serem honestos e encontrar espaço para todos. E aprendi com estes exemplos.
Não é essa uma das coisas mais admiráveis no jazz? A liberdade individual e ao mesmo tempo a necessidade absoluta do coletivo e nesse contexto de acreditarem uns nos outros. Mesmo que seja estranho é preciso acreditar incondicionalmente no outro.
Imagina alguém como o Yusef Lateef a dizer que já não toca changes! Quando ele é um mestre das changes [risos]! Para mim foi extraordinário observar este diálogo. Eu disse para mim mesmo: isto é que é a verdadeira criatividade, honestidade e beleza.
Como é que organizaste esta peça? Escreveste alguma coisa?
Não. Tocamos composições da Alice Coltrane e o resto é improvisação. Tocámos o “Ptah, the El Daoud” logo a seguir à improvisação de abertura. Depois uma das poucas peças que foi assinada pela Alice enquanto estava a tocar com o John, “The Sun”, em que o Jamie fez a introdução. É de um disco chamado “Cosmic Music”. Depois “Sivaya”, de um dos discos de cânticos; seguido de “Journey in Satchidananda”. E para o encore, uma peça do Don Cherry chamada “Desireless” (que na verdade é do Carlos Ward) que aparece em “Relativity Suite”, com a Carla Bley e o Ed Blackwell. Estas são as únicas composições que estão relacionadas com a Alice. E fazemos o “Desireless” porque para mim também é uma maneira de homenagear o Don Cherry, com quem andei em tournée durante muito tempo.
A primeira gravação que fiz na vida foi num disco chamado “Mandingo Griot Society” em que tínhamos um coro e tocávamos música mandingo. E o Don Cherry era o convidado especial nesse disco. Estávamos em 1978... Vivi umas semanas com a família do Don na Suécia em 78 e depois fiz tournées com ele, de vez em quando, de 1980 até ele morrer em 1995. E fiz uma das suas últimas tours com Carlos Ward e Mark Helias num grupo chamado “New Now”. O Bob Stewart era a tuba desse grupo. Toquei noutro grupo com o Don e o Jim Pepper.
Por isso, tocar este tema é também uma maneira de mostrar a admiração que tenho por ele.
Para este grupo juntaste as pessoas que achaste que funcionavam bem a trabalharem em conjunto, pensaste nas composições que iam tocar, fizeste mais algum tipo de planeamento? Como é que a cantora/dançarina aparece nesta equação?
Ah! Isso é porque eu queria uma figura que fosse como uma testemunha. Ela é como a Alice Coltrane, uma testemunha a olhar para tudo o que fazemos. E queria ter spoken word e movimento. gostava que o grupo incluísse diferentes formas artísticas... e como já trabalho com dança há imenso tempo...apareceu a Ndoho (Ndoho Ange, dança e declamação), que escreveu alguns textos sobre a Alice Coltrane e aquilo que ela representa. Queria muitos elementos diferentes, mas também não sobrelotar; assim, senti que a dança e a “spoken word” seriam os elementos certos.
Tendo em consideração o que me contaste, o meu percurso com a Alice Coltrane foi invulgar. Porque as pessoas que me orientavam a audição do jazz, disseram-me logo que a Alice Coltrane não era só “a mulher do John Coltrane”; era uma música excecional com um som e uma abordagem muito particulares. No meu mundo ela sempre foi importante pela sua música.
Mas sabes que comigo foi parecido.... eu comecei a ouvir mais o John Coltrane depois de a ouvir....
... [risos] isso é espantoso...
... a sério! E eu tentei encontrar tudo o que ela fazia. Tentei encontrar uma gravação que ela fez com o Carlos Santana, por exemplo, chamada “Illumniations".
Eu não conheço nada anterior ao “Monastic Trio”. Não conheço nada da Alice McLeod...
Este foi posterior ao “Journey in Satchidananda”e o Bill Laswell fez uma reedição excelente. Fez um disco com um grupo que eu ouvia muito quando estava a crescer, os The Rascals, numa formação tardia. E eles tinham ficado populares com canções como “Good Loovin’” e “Groovin’” e esse tipo de coisas... e fez outro, lindíssimo, com o Joe Henderson. Ela tocou com imensa gente diferente.
Ela fez algumas gravações antes de conhecer o John Coltrane mas essas já não são fáceis de encontrar. Fez uma tour na Europa e gravou com muita gente da cidade dela, Detroit. Encontrei alguns músicos mais velhos que a conheceram e se lembram dela - antes de casar com o John - e disseram que ela era profunda. A maior parte das pessoas está como tu, não conhece nada antes do casamento – e eu também não conhecia – até começar a fazer investigação para este projeto.
Há um livro muito bom sobre ela, uma espécie de biografia; só quando li o livro é que me apercebi da profundidade do trabalho dela antes de conhecer o John Coltrane.
No piano ou na harpa?
No piano... Tu não sabes a história da harpa?
Então: pouco antes do John morrer, comprou uma harpa e levou-a para a casa. Mas ela nunca a tocou. Até que, depois do seu falecimento, num dia de vento, com as janelas da casa abertas, o vento começou a fazer as cordas ressoar. E ela achou que era o John a falar com ela e dedicou-se à harpa.
Não sabia. Sabia que ela teve um processo muito difícil para ultrapassar o luto da morte do John e que foi o líder religioso indiano Swami Satchidananda que a ajudou a transformar a dor em força criativa, através do hinduísmo...
... ele ajudou-a imenso! e ela fez uma peregrinação à India com ele. Foi muito difícil para ela. O casal tinha feito tanta coisa juntos: música, filhos, eram o casal perfeito.
Vamos passar para a tua música, porque tens aquela característica tão pretendida no jazz que é um som inconfundível no instrumento. A “voz”....
... [risos]... é bom saber!
A ligação entre Oriente e Oeste parece muito importante para a Alice. E no teu som a presença do Oriente e Africa também parecem muito presentes.
Isso é interessante porque eu também estudei ritmos afro cubanos com Congas e também estudei tablas; tive um ótimo professor, conheci-o quando tinha 17 ou 18 anos e estudei com ele durante bastantes anos – cheguei até a viver com a sua família durante um tempo... e depois também há bateristas que me deram flashes de algumas coisas, como por exemplo o Milford Graves. Antes de ele morrer nós eramos muito próximos: ele ficava zangado comigo quando eu ia a Nova Iorque e não lhe ligava... Ele ligava ao (William) Parker e dizia-lhe: “William, diz ao Hamid para me ligar!” [risos]. Em vez de me ligar diretamente; e eu recebia uma chamada do Parker a dizer: “Hamid, o Milford ligou-me a pedir para te pedir para tu lhe ligares”. [risos]
... talvez não fosse necessária toda a verdade...
... e outro baterista que me abriu os horizontes para TODA a bateria - e um dos meus favoritos de quem fiquei muito amigo – é o Paul Lovens.
... isso é surpreendente...
Oh yeah! Somos bons amigos. Eu encontrei-o várias vezes em festivais, quando tocava com o Peter Brötzmann; a coisa começou quando fui ter com ele e disse-lhe: meu tu tens um grande swing. E ele respondeu: swing, eu? Não.... E eu disse-lhe: tu a mim não me enganas... e ele confessou....Então eu disse-lhe: adorava ouvir-te tocar reggae também. Eu estava a picá-lo, claro. E um dia estava a tocar num festival em França, estava com o Assif Tsahar e o Peter Kowald e o Hugh Ragin (tínhamos um grupo chamado “Open Systems”); e o Paul estava no mesmo festival a tocar com o Eugene Chadbourne e fomos todos ver o concerto deles. Eu achei que ele estava a fazer coisas mesmo estranhas na bateria. No final do concerto ele veio ter comigo e disse-me: “Hamid, viste: estava a tocar reggae!” [risos]
... eu não consigo mesmo imaginar o que será um reggae do Paul Lovens...
Ele vive muito perto do restaurante que eu vou, sempre que vamos tocar a Nickelsdorf; depois vou até à sua casa e ficamos a ver vídeos de percussão. Sabes que ele foi a primeira pessoa que eu vi abafar a tarola com um pano. Eu gostei imenso da ideia e resolvi cobrir a bateria inteira com um cobertor... Outro baterista que é uma grande inspiração para mim, e de quem também sou muito amigo é o Han Bennink.
E eu a falar de drumming africano... e tu de Paul Lovens, Han Bennink...
Bem, não estás assim tão longe. O Han Bennink toca com os etíopes...
... o Getatchew Mekurya...
E o Paul é um groover muito poderoso. Só que normalmente ouvimo-lo em contextos muito abstratos. Mas ele estudou toda a tradição; a última vez que estivemos juntos, o ano passado, em casa dele – estivemos a ouvir a gravação que o Lee Konitz fez com o Elvin Jones. E estávamos deliciados com o trabalho das escovas do Elvin. Depois vimos um vídeo que ele tem de percussionistas no Mali a tocar djambé. Por isso ele está em todos estes sítios e ele enfia ou esconde estas coisas no contexto da improvisação.
Não sei se tu sabes mas o Paul já não consegue tocar. Aconteceu-lhge uma coisa qualquer às mãos e já não consegue segurar as baquetas. Artrite ou reumatismo... nem sei bem, mas ele já não consegue tocar. Por isso é que ele parou.
Podia ensinar... Tu ensinas?
De vez em quando dou aulas. Sempre tive vergonha de ensinar. De vez em quando ensino “hand drums”. Mas eu não quero ensinar como tocar o instrumento. Eu gostava de educar sobre o lado conceptual e filosófico da música. Falar com estudantes sobre como encontrar a sua própria voz.
Quando começas a tocar, o que tens a fazer é continuar a tocar. Mas o desenvolvimento de ideias é uma coisa completamente diferente. Encontrar o teu caminho, também é outra coisa completamente diferente. Podes ter uma técnica espantosa e não saber qual é o teu caminho; não saberes como dizer qualquer coisa...
... e isso acontece com frequência, especialmente quanto investes tanto na técnica...
... acontece imenso. Por isso é que eu gostava de ensinar; mas prefiro musicologia, conceitos e formas de encontrar a tua voz. Como é que desenvolves a tua confiança para poderes desenvolver a tua voz? Quando um aluno está a estudar história da arte, ele não está a pintar. Eu gostava de levar os alunos pela cronologia da música improvisada e falar de como começou, como mudou e como é que muda.
Assumo que se estás numa escola de música, já sabes ler e tocar bem. Qual é o passo seguinte? Como é que te expressas?
O que acontece com muitos músicos – eu e o William Parker falamos muito disto – é que saem do ensino musical, subitamente pára tudo. Podem nem sequer saber bem o que estão a fazer. E nessa altura têm que encontrar músicos, andar com eles e tocar. Tocar, tocar, tocar tudo, para que possam desenvolver as competências de audição e a sua própria expressão... a capacidade para ter coragem para experimentar coisas que não és suposto tentar.
Uma das formas dos músicos se desenvolverem é tocar em ou com grupos com longevidade – olha para o quarteto do Coltrane. Eles eram tão espantosos, em parte – creio eu – porque passaram e tocaram tanto tempo juntos. O grupo do Art Blakey é outro exemplo. Mesmo no mundo do rock: os Beatles, os Rolling Stones. Os grandes grupos de R’n’B eram mesmo grupos. Passavam tempo juntos, falavam e criavam música. Acho que isso é mesmo importante.
E na verdade não se consegue ensinar ninguém a ser um escritor.... podes ensinar-lhe a escrever, a técnica da escrita, gramática, a história da escrita, mas depois têm que ser culturais e ter histórias para contar. Eu ensino design gráfico e muitas vezes dou este exemplo: imagina que estás a estudar para ser um chef de cozinha. Eu ensino-te a técnica toda, mas tu comes todos os dias no McDonalds... não vai acontecer. O teu paladar não tem cultura de sabores. Por isso tens que ser cultural – em relação à comida neste exemplo – e então, com a técnica, talvez possas vir a ser um chef.
É isso, e com a música é o mesmo. E é bom teres pessoas em quem confias e com quem podes tocar e experimentar. Com quem desenvolves não só o teu craft mas também as tuas skills de pensamento. Os Rolling Stones ainda estão juntos! É espantoso! O Charlie Watts era um grande baterista. Grande!
E o Ringo Starr, o que é que achas dele?
Eu acho que o Ringo também era muito bom. Era o baterista perfeito para os Beatles. Tem um sentido de tempo espantoso...
... o Ringo para mim é altamente original e criativo. Ele nunca faz aquilo que estarias à espera que o baterista fizesse. Há este mito que o Ringo é um metrónomo; mas se ouvires o que ele está as fazer no "Sgt. Peppers...", por exemplo, aquilo é tudo espantoso. Ele nunca faz o que seria lógico esperar de um baterista naquele tempo e contexto.
E o facto de ele ser canhoto e montar a bateria à destro também lhe dá aquele charme no atraso dos breaks. E o Charlie Watts é perfeito para os Stones. Ele é um grande amante de jazz – já ouvi várias histórias que ele passava muto tempo no Ronnie Scott’s [clube famosíssimo em Londres] – a ouvir jazz, mas ele sabia exatamente o que era preciso fazer nos Rolling Stones.
O Fred Anderson tinha um club em Chicago – o Velvet Lounge – que foi o local mais importante da cidade para o desenvolvimento dos músicos, porque os músicos mais novos apareciam, tocavam e desenvolviam-se como músicos.
O Velvet Lounge agora está fechado....
Sim, mas o Michael Reed – que agora está no board do festival de Chicago - tem um local parecido, chamado “Constelation” para onde o pessoal vai agora. Chicago ainda salta. É um dos melhores locais para os jovens músicos encontrarem alguém mais experiente para tocar.
Obrigado, Hamid. Na minha próxima visita a Chicago já sei onde ir.
Obrigado pela conversa, vemo-nos lá.