Lidar com o desconhecido
Christian Lillinger (n. 1984) é uma das mais relevantes figuras da música improvisada contemporânea – expressão com que não simpatiza particularmente. O seu trabalho é absolutamente revolucionário no que diz respeito às possibilidades técnicas da bateria, da métrica rítmica e da criação de estruturas complexas em tempo real. Integrando o trio DLW, com o vibrafonista Christopher Dell e o contrabaixista dinamarquês Jonas Westergaard, o músico está de regresso a Portugal para uma minidigressão de quatro concertos – em Coimbra (Salão Brazil, 14 de dezembro, 22h), Porto (Espaço Porta-Jazz, 16 de dezembro; masterclass às 17h e concerto às 21h30) e Lisboa (Penha sco, a 15 de dezembro; masterclass às 17h e concerto às 19h30; Festa do Jazz, Picadeiro do antigo Museu dos Coches, 17 de dezembro, 19h).
Há neste trio – onde todos são compositores, intérpretes e solistas – um fascinante mistério na forma orgânica e espontânea como os três músicos desenvolvem estruturas com um pensamento composicional na esteira do serialismo integral. A sua música é caracterizada por altos níveis energéticos e uma grande fisicalidade; a revista Downbeat referiu-se à música que fazem como sendo «marcadamente física e sempre em fluxo, um pouco como uma obra de arquitetura brutalista traduzida para o campo musical.» Um meticuloso trabalho laboratorial que envolve um compromisso coletivo raro de encontrar em qualquer das frentes da vanguarda deste género de música. Numa lógica colaborativa, o trio DLW tem vindo a ser expandido através da participações de outros músicos, como os pianistas Bob Degen (em “Supermodern Vol. I”) e Tamara Stefanovich (“SDLW”) ou o violinista Mat Maneri (“Monuments”).
Para além dos DLW, o seu trabalho envolve muitos outros projetos e formações, como Open Form For Society ou Punkt.Vrt.Trio (com a pianista Kaja Draksler e o contrabaixista Petter Eldh). Em 2018, fundou a sua própria editora, PLAIST Music, através da qual editou álbuns como “Klavierstück VI“ de Karlheinz Stockhausen, “Über die Linie” de Wolfgang Rihm e outros das formações que integra (como “Boulez Materialism“ pelos DBLW, ou os registos de Open Form For Society).
Nascido em Lübben, perto de Brandemburgo, Christian Lillinger começou a tocar bateria aos 13 anos. Apenas três anos depois foi admitido na Hochschule für Musik Carl Maria von Weber, onde estudou até 2004 com Günter Baby Sommer, Sven Helbig e Michael Griener, de entre outros. Em 2000, venceu em Leipzig o Prémio Internacional de Improvisação e entre 2001 e 2003 foi membro da BuJazzO, orquestra jovem de jazz oficial da Alemanha. Desde 2003 vive e trabalha em Berlim. Ao longo da sua preenchidíssima trajetória, tem vindo a integrar diversas outras formações como AMOK AMOR, com o trompetista Peter Evans, o saxofonista Wanja Slavin e o mesmo Eldh. Lillinger assume fortes ligações a Portugal: parte do seu trabalho (com os Grund, Grünen, Lisbon Berlin Trio/Quartet) está documentado na editora Clean Feed. A sua fascinante discografia, em constante evolução, faz-se de bem mais de uma centena de títulos, incluindo mais de duas dezenas em seu próprio nome. Está por esta altura a lançar “Penumbra”, a estreia de um duo com o pianista Elias Stemeseder.
Já correu mundo em nome do Goethe-Institut. A lista de colaborações impressiona: Craig Taborn, Joachim Kühn, Cory Smythe, Wadada Leo Smith, Barre Phillips, Miroslav Vitous, John Tchicai, David Liebmann, Mat Maneri, Tim Lefebvre, Peter Evans, Richie Beirach Ralph Alessi, Urs Leimgruber, Bob Degen, Alexander von Schlippenbach, Louis Sclavis, Evan Parker, William Parker, Joe Lovano. E continua...
Para abordar tudo isto, e mais, a jazz.pt esteve à conversa com o músico alemão.
O que poderemos esperar dos teus concertos em Portugal com o trio DLW?
A música de DLW destaca-se pela intensidade energética, fisicalidade e complexidade arquitetónica. Quebrando todas as barreiras de género, a música tem uma grande profundidade de zoom e plasticidade. Através de um processo altamente imersivo, a música é simultaneamente examinada e criada, destacando e criando um mundo fascinante de riqueza tonal e estrutural vívida. São desenvolvidos procedimentos e conceções composicionais inovadoras.
O trio foi fundado em 2011. Consegues recordar-te das circunstâncias?
Sim, é verdade! Eu sempre quis tocar com Christopher Dell desde aquela época, a nossa primeira situação real como trio foi em combinação com [o saxofonista] John Tchicai. Desde então trabalhamos regularmente nas nossas gramática e estética. A nossa real consciência sobre o trio começou em 2019, quando começamos a trabalhar intensamente na forma multidimensional de interpretação de composições e estruturas, para expandirmos a nossa gramática com conhecimento e coerência.
Desde o início, têm explorado estruturas composicionais complexas. Podes explicar-nos as fundações da vossa abordagem?
As nossas fundações são o próprio processo. Contribuímos em partes iguais como compositores, intérpretes e solistas. Temos de ser capazes de ver o potencial do existente. Trabalho é o que temos de colocar para esticar e expandir a nossa mente. Existem sempre infinitas verdades numa composição, estrutura ou situação. Temos apenas que entendê-las através de uma pesquisa real do material. Por exemplo, reproduzi-lo numa ordem diferente, da frente para trás, ou dividi-lo e por aí. Isso abre muito mais possibilidades.
O trio DLW tem vindo a ser expandido através da participações de outros músicos, como os pianistas Bob Degen e Tamara Stefanovich ou o violinista Mat Maneri, todos projetos com discos editados em 2022. O que procuram nesses outros músicos quando os convidam para tocar convosco?
Chamamos a isso “estrutura plug inn”. Consideramo-nos como uma plataforma expansível que oferece espaço para artistas convidados com a curiosidade de experimentar. O trio DLW, portanto, cresce situacionalmente dentro desse contexto como um coletivo de compositores. Com o trio no seu núcleo, o procedimento de co-composição é aplicado de forma alargada: por exemplo com Tamara Stefanovich, Johannes Brecht, John Tchicai, Bob Degen, Søren Kjærgaard ou Mat Maneri. O conhecimento do trio adquirido ao longo de muitos anos forma a base sólida para pesquisas musicais pioneiras.
Estás por estes dias a lançar a estreia do teu duo com Elias Stemeseder, “Penumbra”. O que nos trará este álbum?
Este é o nosso álbum de estreia. “Penumbra” representa a nossa utopia musical. Procura manifestar diversas correntes de práticas e utopias contemporâneas na produção sonora acústica e eletrónica, tanto em estúdio como em concerto. Fazemos uso de métodos de composição e produção de uma variedade de localizações geográficas e temporais e, por meio de uma síntese destas, forjamos um idioma sonoro radicalmente moderno, livre de modelos, mas rico em referências. No cerne do projeto está a reapropriação de um corpo sonoro barroco: o baixo contínuo como força motriz harmónico-percussiva do conjunto, que realizamos através do cravo e da percussão eletricamente amplificados. “Penumbra” expande a nossa compreensão dessa entidade sónica por meio de processos eletrónicos. Recontextualiza-a e coloca-a ao serviço do fazer musical contemporâneo. A primeira parte visa gerar um som poderoso a partir de uma imagem tonal tocada suavemente, para que a enorme plasticidade, profundidade de foco e polifonia da música se tornem audíveis. Através das interações de diversas perspetivas, são reenquadrados modelos de composição complexos que ganham uma nova manifestação. Alcançamos uma imagem tonal rica, plástica e poderosa, através da realização de pesquisas sobre diferentes formas de produção de som em estúdio.
A tua forma de tocar é uma combinação de oportunidade e precisão, de um rigor e elegância que considero muito especiais. O que procuras com a tua música?
Sempre me inspirei na música clássica de vanguarda, principalmente o piano foi algo que sempre me inspirou de várias formas. Articulação, estética e polifonia é nisso que trabalho há anos. Vou tentar fazer mais e mais experimentações.
O teu trabalho é absolutamente revolucionário em termos das possibilidades técnicas da bateria, métricas e da criação de estruturas complexas em tempo real. Dito isto, qual é o teu conceito de improvisação?
Muito obrigado! Eu não utilizaria mais a palavra “improvisação”. Para mim é a conotação de improvisação, como algo que nasce de uma falta (como um compromisso), e isso é negativo. A improvisação é para mim uma ciência e pressupõe conhecimento. Para mim, a improvisação é a forma positiva e construtiva de lidar com o desconhecido. Tens que praticar e preparar-te muito para poder analisar, organizar e moldar o momento em tempo real sem perderes a tua estética e o teu caminho.
Penso que no trio DLW há um mistério fascinante na forma orgânica e espontânea como gerem o desenvolvimento de estruturas com um pensamento que radica no serialismo integral...
Definimo-nos como representantes da “Nova Nova Música” [no original Neue Neue Musik”], que delineia a direção de nosso trabalho criativo. Referenciando diretamente o heroico modernismo do serialismo, estruturalismo e da música concreta, bem como nos seus processos, este coletivo de compositores busca extrair as qualidades não reconhecidas da “Nova Música” (“Neue Musik”). Desta forma, criamos um terreno fértil para trabalhos contemporâneos relevantes e voltados para o futuro.
Quais são os principais desafios que enfrentas relativamente ao equilíbrio entre composição e improvisação?
Não há desafios porque não há diferenças. Para mim é o mesmo processo.
Como te descreverias enquanto músico? Como um músico de jazz que segue noutras direções?
Eu não chamo a mim próprio músico de jazz. Hoje em dia, o jazz não é suficientemente definido e não descreve realmente a minha abordagem. O jazz vai do free jazz ao smooth jazz, praticamente tudo, e isso é muito pouco claro. Considero-me um músico-investigador, compositor e artista de vanguarda. Isso encaixaria muito mais na minha abordagem.
Trabalhar sem convenções
Vamos voltar atrás no tempo. Lembras-te de como a música entrou na tua vida?
Só me lembro que tinha 12 ou 13 anos. Queria fazer algo com sentido na vida. Essa foi a minha primeira intuição e acreditando nisso surgiu a convicção clara de não fazer mais nada na vida a não ser música.
Começaste a tocar bateria aos 13 anos. O que te atraiu neste instrumento (ou conjunto de instrumentos)?
Isso é difícil de descrever, mas a bateria foi a maneira mais fácil de abordar [a música] sem perder a paixão e a diversão!
Quando ouviste jazz pela primeira vez, sentiste-te tocado?
Sim, muito, fiquei tão fascinado que não percebi nada. Aquilo que eu não entendia provocava-me sempre e dava-me as opções mais positivas da minha vida. Sempre foi assim e desde então sempre quis explorar o desconhecido cada vez mais.
Estudaste com Günter Baby Sommer, entre outros. Uma referência? Do que te lembras das experiências nessa época?
Günter Baby Sommer ajudou-me a ter a oportunidade de estudar aos 16 anos em Dresden, na Universidade Carl Maria von Weber, onde ele era o reitor. Essa foi a maior sorte da minha vida e nunca o vou esquecer. Sou muito grato ao Günter por isso! Ele abriu a possibilidade de estudar o instrumento dos meus sonhos. Sempre fui o mais novo e lembro-me de que nem sempre foi fácil, porque para além da música tive que aprender muito sobre solidariedade e sociedade, e isso foi um grande desafio.
Ouvindo atentamente a tua música, acredito que haja elementos da chamada “tradição do jazz”. Até que ponto essa influência está presente na tua abordagem hoje em dia?
Claro! Através da corporização e do fluxo para moldar a música.
Diferentes elementos coalescem na tua música. Ela reúne elementos que derivam do jazz, da música erudita contemporânea, da improvisação total. Queres falar um pouco sobre as tuas influências, sejam elas musicais ou não?
Aqui estão alguns impactos e influências importantes: “Eonta” e “Jonchaies”, de Iannis Xenakis; “Sur Incises and Structures 1a”, de Pierre Boulez; Charlie Parker; “A Love Supreme”, de John Coltrane; “Willisau Concert”, de Cecil Taylor, Wu Tang Clan Mf Doom; “Klavierstücke I-XI”, de Karlheinz Stockhausen; Adorno; “Welt am Draht”, de Rainer Werner Fassbinder; Thomas Bernhard; Luigi Nono; “Hamburg Concerto”, de György Ligeti; “Patterns in a Chromatic Field” e “For Bunita Marcus”, de Morton Feldman; “Les Espaces Acoustiques”, de Gerard Grisey; e “Limited Aproximations”, de Georg Friedrich Haas, só para citar alguns.
E quem são os teus bateristas e percussionistas favoritos?
Isso é algo que eu realmente não posso responder, há tantos como Paul Lovens, Roy Haynes, Elvin Jones, Art Blakey, Max Roach, Tony Williams, Buddy Miles, John Bonham, Jacques Thollot, Sid Catlett, Danny Richmond, Jeff Tain Watts, Dennis Chambers, Buddy Rich, Jack DeJohnette e muitos outros.
Tens parte do teu trabalho documentado na Clean Feed: com os Grund, “First Reason” (2009), com o pianista Joachim Kühn, e “Second Reason” (2012); e com Grünen (com Achim Kaufmann e Robert Landfermann), em 2010, entre outras colaborações gravadas. Qual é a tua relação com a editora portuguesa?
A Clean Feed foi um passo muito importante na minha carreira. O Joachim Kühn convenceu o Pedro Costa [fundador e responsável pela editora que opera a partir de Lisboa] a lançar o meu primeiro álbum na Clean Feed, o que foi incrível para mim porque eu já antes era um grande fã. Eles são simplesmente fantásticos. A forma como trabalham, especialmente nessa altura, era tão cheia de paixão. Sempre adorei o design do Travassos, um existencialista tão fantástico. Que etiqueta e catálogo fantásticos eles têm, só posso dizer parabéns.
Para além da Clean Feed, tens outras ligações fortes à cena do jazz e da improvisação em Portugal...
Admiro muito a cena portuguesa: Pedro Melo Alves, Gabriel Ferrandini, Luís Lopes, Rodrigo Amado e, no Porto, João Pedro Brandão, Demian Cabaud, Marcos Cavaleiro e muitos mais. Todos eles fazem um trabalho cultural muito importante em Portugal.
És também membro do Lisbon Berlin Trio/Quartet do guitarrista Luís Lopes, já o mencionaste. Como é trabalhar com esta formação que reúne músicos de renome da música improvisada lisboeta e berlinense?
Estou muito grato pelo Luís me ter pedido para integrar este projeto com ele e Robert Landfermann primeiro e depois mais tarde com o Rodrigo Pinheiro também. O Luís é muito intenso... Sempre gostei muito dele. Que personagem interessante ele é.
Conta-nos sobre outros projetos em que estás envolvido atualmente, Open Form For Society, Punkt.Vrt.Trio,…
Open Form For Society (OFFS) foi o meu trabalho mais elaborado até hoje. É a realização de um projeto próprio, que começou há quatro anos com o desenvolvimento de composições. O meu foco era um processo livre, intenso e discursivo no estúdio. O objetivo era trabalhar sem convenções de género e abrir um fluxo criativo entre os músicos. O processo de gravação, durante o qual todos os envolvidos trabalharam juntos no mesmo local, durou cinco dias. Isso permitiu rastrear aspetos que fazem as qualidades das minhas composições. Desenvolvi nova música de câmara dentro da âmbito sonoro da PLAIST [a editora fundada por Lillinger em 2018], nova música, jazz de vanguarda, hip-hop e música concreta. Isto acontece em cooperação com nove músicos europeus, na sua maioria jovens, que são instrumentistas de destaque nas respetivas cenas musicais. O projeto como um quadro: o desenho de cada etapa obedeceu a um plano cuidadosamente elaborado e a sua execução correu conforme o pretendido; desde a conceção criativa e pós-produção com o coprodutor Johannes Brecht até ao design dos suportes da gravação. Nada foi deixado ao acaso, nenhuma despesa foi poupada. Este pretende ser um novo padrão na mediação da complexidade na música entre as membranas sonoras (alto-falantes) e o ouvinte. Punkt.Vrt.Plastik é uma colaboração democrática com [a pianista] Kaja Draksler e [o contrabaixista] Petter Eldh, para o qual todos nós compomos.
Em 2018 fundaste a PLAIST Music, lançando exclusivamente música contemporânea de vanguarda; até dezembro de 2022, uma dúzia de álbuns. Quais são os principais objetivos para esta editora?
Representa uma forma de arte sem género, produzida com excelência e estruturada de forma criativa – tudo aqui manifestado como uma editora musical. As diretrizes para a PLAIST Music são: «Som a suportar o som; som através de estrutura; o som a tornar-se a plasticidade da música.» Som hiper-realista tornando-se plasticidade e clareza dentro da imagem sonora. A sua base é construída sobre o “padrão de ouro” da atual tecnologia de produção.
A tua discografia tem aproximadamente 110 álbuns, incluindo mais de duas dezenas em próprio nome. É um trabalho fascinante, sempre em evolução...
Sim!
O que tens na manga para o futuro mais próximo?
Na verdade muito (risos). O trio DLW lançará: “Beats #2, extended Beats” (com convidados como Klangforum Wien e outors) e “Grammar III”. Os próximos ciclos Penumbra e mais… com convidados como DoYeon Kim, Peter Evans, Tim Lefebvre, Brandon Seabrock, Russell Hall, Craig Taborn, Ikue Mori... Atualmente estou também a trabalhar em novas composições para “Open Form for Society II”.
(A jazz.pt agradece a Pedro Melo Alves pela colaboração.)