Trajeto etéreo
Natural de Mortágua, Joana de Sá é uma jovem artista sonora (não confundir com a pianista nem com a saxofonista), nascida no ano de 2001. Os seus interesses artísticos oscilam entre fotografia, ilustração e música eletrónica experimental. No seu trabalho sonoro, procura «explorar sons texturais, oriundos de gravações de campo, articulados com repetições melódicas feitas a partir de guitarra, sintetizador ou voz». Em março de 2022 editou o disco “Shatter”, edição Sirr, a sua estreia discográfica, que revela uma música exploratória – nas palavras da autora, enquadra-se «dentro do espectro da eletrónica experimental ou ambient». Agora, Joana de Sá vai atuar no Festival Rescaldo, num duo inédito com o pianista Tiago Sousa (dia 16 de fevereiro, no Damas em Lisboa). Antecipando esta atuação, estivemos à conversa com a artista, que nos fala sobre o seu percurso e o seu trabalho.
Como nasceu o interesse pela música?
Sempre gostei muito de ouvir música, desde muito pequenina. O interesse particular surgiu por volta dos meus 11, 12 anos, quando comecei a descobrir e explorar a discografia das inúmeras bandas que marcaram o final da década de 60, a Aquarian Age. Desde aí fui explorando e procurando referências no desenrolar das décadas e estilos correspondentes. Julgo ter sido quando entrei na faculdade, no primeiro ano, com 18 anos, que me comecei a interessar por música eletrónica e a querer explorá-la com os meus próprios recursos.
Quando e como começou a tocar? Consegue identificar esse momento em que percebeu que tinha interesse em criar música?
Depois de ter desenvolvido tanto fascínio pelas guitarras e pela natureza própria das bandas daquela época, quis aprender alguns licks dos temas que mais gostava. Por ocasião, a minha mãe tinha em casa uma guitarra acústica em desuso desde a sua adolescência. Foi então que decidi aprender a tocar e, instantaneamente, querer replicar aquilo que ouvia, com a ajuda de muitos vídeos que encontrava na internet e, depois, mais tarde, por ouvido. Alguns anos depois, no meu décimo ano, o meu pai ofereceu-me uma guitarra elétrica, tendo começado a explorar outros tipos de caminhos, quer na escuta, quer no próprio manuseamento do instrumento. Mais tarde, com 19, comecei a criar e a gravar a minha própria música no computador, através de loops gravados, combinados com algumas experiências de voz e, por sua vez, a publicá-los no Soundcloud.
No processo criativo usa loops de guitarra e sintetizador. Como é o processo de criação musical?
O processo de criação musical parte sempre de experimentação e improvisação, tentativa e erro. Quando o que sai dessa abordagem me agrada, tento memorizar e escrever o que faço e como faço, rabiscando ou desenhando, por vezes, em linhas gráficas, divindo as faixas e escrevendo o som ou o objeto sonoro que quero que cada uma tenha. Por exemplo nas diferentes tracks de uma peça, traço o que é mais ou menos denso, ou, utilizando um método mais prático, desenho os trastes da guitarra e identifico como e em que ordem toco nas cordas.
Além da música, tem interesse nas artes visuais, particularmente fotografia analógica e ilustração. Como combina o trabalho nestas diferentes dimensões artísticas?
Penso que o exterior (propostas de faculdade; sugestões musicais/visuais de amigos; notícias; etc) tende a influenciar-me bastante em qualquer prática artística, por vezes respondo a uma fotografia com uma peça, ou respondo a uma peça com uma fotografia. Julgo que tendo sempre a trabalhar conforme o que me rodeia; claro que faseada/ciclicamente, há alturas em que presto mais atenção ao desenho, outras em que me interesso mais por fotografia, outras em que estou particularmente sensível ao som.
Serve-se de electrónica experimental para criar uma música quase ambiental, atmosférica... Como poderia descrever a sua música?
É sempre difícil classificar ou avaliar produtos ou criações próprias. No fundo acaba por ser uma expressão pessoal em jeito de resposta ao meio em que me insiro, não estando propriamente atenta ou inquieta em inseri-la num género específico. A minha criação/música acaba, de certa maneira, por ser influenciada pelos géneros que mais me interessam ouvir, neste caso, é, precisamente, música que esteja dentro do espectro da eletrónica experimental, ou ambient.
Consegue indicar músicos/artistas/bandas que considere como influências ou inspiração para a sua própria criação musical?
À medida que fui crescendo, fui sempre sendo influenciada por artistas muito diferentes. No entanto, nestes últimos tempos, para a criação musical tenho prestado atenção especial (enumerando três) ao trabalho da Claire Rousay, nomeadamente o disco que saiu no ano passado, “Everything perfect is already here”. Acho que o manuseamento e o cuidado que teve a conciliar inúmeras gravações de campo (vozes, instrumentos ou sons exteriores) me persuadiu a explorar também essa matéria; Também o trabalho de artistas como Steve Roden ou Sawako, têm sido fontes de inspiração para a criação pessoal. Destaco, do Steve Roden os álbuns “Flower of Water” e o “Stars of Ice” e da Sawako, o “Hum”, julgo serem trabalhos com os quais tenho tentado aproximar a minha abordagem.
Em março de 2022 editou o disco "Shatter", pela Sirr. O que representou esta edição?
O lançamento do primeiro disco é sempre especial. Na verdade não contava em fazê-lo tão cedo, foi algo que me deixou muito feliz durante as várias semanas seguintes. Foi uma porta que se abriu também para realizar e trabalhar apresentações ao vivo, que nunca tinha feito antes. Foi um ponto de partida para me dedicar mais a fazer e desenvolver coisas dentro deste campo, deixando para trás a ideia de tocar e fazer música como um mero “hobbie”.
Vai atuar num duo com o Tiago Sousa, no Festival Rescaldo, uma parceria que é uma estreia. O que poderemos esperar deste encontro com o Tiago Sousa?
Será um particular (e especial) encontro sonoro. Na verdade julgo que a organicidade sonora do Tiago cruzar-se-á harmoniosamente com os drones/loops de guitarra e pedaços de gravações de campo. Acho que há uma certa consonância entre a minha música e a do Tiago que resultará num bonito trajeto etéreo dentro do espaço do Damas. Fico muito feliz pela proposta feita pela organização do Festival Rescaldo, em poder colaborar e apresentar este projeto.
Já conhecia a obra do Tiago Sousa, antes desta parceria? O que acha da sua música?
Já conhecia grande parte da obra do Tiago. Confesso que, depois da proposta do Festival Rescaldo, procurei ouvir mais. É um tocar pessoalmente deleitoso, onde impera um claro e leve encanto tonal que me agrada muito. Acho que a maneira como cada parte da composição própria do Tiago se desdobra, quer no orgão, quer ao piano, é lindíssima, quase romântica. Tanto a repetição como o suster das notas na composição da peça, ou mesmo a suave organicidade em determinados trabalhos são objetos de um delicado encanto.
Em que outros projetos está atualmente envolvida?
De momento, paralelamente a este projeto musical, estou a finalizar a licenciatura em Design de Comunicação, no Porto, por isso acabo por ter de conciliar metodicamente as duas coisas, além de trabalhar enquanto assistente de sala numa Sala de Espetáculos. Tento, sempre que surge oportunidade, cruzar estes dois campos, no entanto, por vezes torna-se complexo conseguir distribuir a disponibilidade por outros projetos fora estes compromissos, embora, nunca seja impossível; tenho sempre espaço livre para novas ideias ou colaborações.
Que projetos tem planeados para os próximos tempos?
De momento, estou a terminar um disco. Tenho explorado outras abordagens, algo parecidas com os discos que mencionei em cima; Tenho utilizado gravações de campo (por exemplo, conversas, vozes, sons exteriores que captam a minha atenção) paralelamente ao uso da guitarra ou sintetizador. Acho piada ao potencial identitário que certas gravações podem dar às peças. Apesar disso, tendo a rejeitar uma abordagem estritamente naturalista, alterando ou modificando algum do material recolhido e acabo por conciliar com um instrumento. Tenho também questionado uma certa linhagem, de faixa para faixa; procurar relações tímbricas ou contextuais entre a peça, e encontrar um propósito ou objeto para a mesma, sejam estas questões, talvez fruto da particular sensibilidade ou influências vindas do exterior.