Explorar os limites
O contrabaixista e compositor André Carvalho vem alimentando um corpo de trabalho cada mais consistente e interessante, que se reflete numa discografia sólida: “Hajime” (2011), “Memória de Amiba” (2013), “The Garden of Earthly Delights” (2019) e “Lost In Translation” (2021). Neste disco, Carvalho apresentou uma proposta de música original para palavras intraduzíveis; agora, neste 2023 editou a continuação desse disco, com edição Clean Feed, novamente gravado em trio com José Soares e André Matos. Ao mesmo tempo, Carvalho começou a trabalhar no seu novo projeto Buk, inspirado no universo de Charles Bukowski, com José Soares (saxofone), Raquel Reis (violoncelo), Samuel Gapp (piano) e João Hasselberg (eletrónica) – tivemos a oportunidade de assistir à estreia do grupo no espaço Água Ardente, em Lisboa. Estivemos à conversa com Carvalho, que nos fala sobre estes projetos mais recentes.
Acabas de lançar o segundo disco deste projeto “Lost In Translation”. Como nasceu a ideia de criar música a partir de palavras intraduzíveis?
Começou no início da pandemia, por um lado por mero acaso, visto que acabei por tropeçar neste universo de palavras tão único e bonito. Por outro lado, por estar em confinamento como todos nós, e pensar que estávamos a sentir coisas novas para as quais não tínhamos palavras, não querendo isso dizer que não as haja eventualmente numa outra língua. Um universo de palavras que, tendo surgido por mero acaso e curiosidade, rapidamente se tornou numa fonte de inspiração para nova música.
E como se cria música para palavras que não conseguimos traduzir? Podes falar sobre o teu processo de criação/composição?
Primeiro houve um processo de recolha de palavras através de livros, internet ou amigos que foram sugerindo algumas. A partir destas, fui selecionando as que de alguma forma ressoavam mais dentro de mim, ou porque remetem para algo lírico, ou para algo do dia-a-dia em que nunca sequer pensei, para algo curioso ou para algum género de emoção ou sensação que provavelmente já pensei mas que nunca soube nomear. Depois disto, tentei perceber de que forma dada palavra poderia ser musicada, que género de atmosfera, timbres, cores, harmonias, melodias, que género de interação o trio poderia ter, etc. Fui apontando estas ideias que ia tendo e metendo mãos à obra, pensando como é que a partir destes sketches poderia passar para algo que o trio fosse tocar. Por vezes são ideias mais desenvolvidas em que o material tem um desenvolvimento que dei a priori, outras vezes são ideias muito simples e pequenas que servem de mote para o trio explorar em tempo real.
Como surgiu este trio com o José Soares (saxofone) e André Matos (guitarra)? Porque escolheste trabalhar com estes músicos, o que é que eles te podem acrescentar?
Da ideia das palavras intraduzíveis rapidamente me veio à cabeça um universo sonoro e tímbrico. Esta nova música teria de ter espaço, texturas, momentos contrastantes e que fluíssem entre partes contemplativas e partes mais cruas e ásperas. Por isso, a escolha do José e do André foi bastante óbvia. Por um lado, já tínhamos tocado juntos em diversos projetos, por outro lado sabia que eles iriam facilmente ajudar a construir a ideia inicial. No entanto, eles foram além desta ideia e contribuíram muito para o som do grupo e a forma como o grupo toca. São músicos singulares com quem tenho uma empatia muito grande. Julgo que esta empatia é visível quando se ouve o grupo a tocar, tanto ao vivo como nos dois discos que já lançámos.
Que diferenças podemos encontrar entre o primeiro disco e este novo volume de Lost In Translation?
Este é um trabalho de continuação, sendo que estou certo que há um desenvolvimento grande no trio. Acho que esta evolução é fruto do grupo se apresentar regularmente desde que tocamos pela primeira vez juntos no verão de 2022. Além disso, tanto o José Soares como o André Matos são músicos que estão em constante mutação e procura. São também pessoas que me desafiam e me fazem ver as coisas de outra perspetiva, que contribuem regularmente com a sua opinião. Por vezes chegamos mesmo a discordar, mas esta comunicação natural tem feito e, espero que continue a fazer, o trio ter novas abordagens e formas de se expressar. Neste novo volume a gravação aconteceu de uma forma completamente diferente relativamente ao primeiro volume. No primeiro volume, antes de gravarmos já tínhamos tocado quase todo o material. Desta vez, fomos para o Teatro Municipal Amélia Rey Colaço e praticamente não ensaiámos. A música tinha sido escrita pouco tempo antes e julgo que a gravação é uma fotografia muito fiel e fresca do trio a abordar nova música pela primeira vez. Desta segunda gravação também lancei um desafio ao José e ao André: para além da música que tinha escrito, levei também uma série de palavras intraduzíveis. A partir destas, disse-lhes o significado de dada palavra e improvisamos sobre isto. Resultaram várias improvisações livres de certa forma guiadas por esta parte programática. Isto é algo que temos feito também ao vivo e tem sido sempre engraçado ver o que surge no momento.
No processo de descoberta das palavras intraduzíveis, quais foram aquelas que mais te deixaram fascinado?
Há mesmo muitas que são incríveis e muitas que ficaram de fora dos dois álbuns. Gosto particularmente de: Mångata (sueco para a estrada de luz que a lua deixa sobre o mar/água), Gurfa (árabe para a quantidade de água que cabe numa mão), Boketto (japonês para olhar para o infinito sem qualquer pensamento), Gökotta (sueco para acordar cedo de manhã para ir ouvir o primeiro canto as aves) ou Murr-ma (wagiman para procurar debaixo de água quando estamos na praia ou beira-mar usando apenas os pés).
A tua música é muito estruturada, mas assenta em estratégias pouco convencionais, que estão sempre a surpreender o ouvinte. Como é o teu processo de composição e criação?
A composição sempre foi algo muito querido. Talvez ainda mais do que tocar contrabaixo. Talvez 51% compor, 49% tocar contrabaixo! O processo de composição depende muito de quem para estou a escrever, qual a fonte de inspiração, etc. E por isso tento sempre que a música tenha abordagens diferentes conforme o contexto final. No caso do trio com o José e o André Matos, a questão está em quanto devo escrever. Ao longo deste tempo em que temos tocado, tenho vindo a aprender a gerir o que escrever e o que não escrever, o que dizer e o que não dizer, a aceitar a imprevisibilidade do momento. Tem sido uma verdadeira lição tocar com o trio. Para outros grupos, tento perceber exatamente o mesmo. A escolha dos músicos neste aspeto é crucial, visto que conto com a voz singular de cada um dos elementos dos meus grupos para criarem no momento e interpretarem o que está e não está escrito. Sinto também que, no meu processo criativo, ter um conceito/programa/inspiração é algo cada vez mais importante e se colocasse isto noutras palavras, diria que a parte de storytelling é o que realmente me cativa. Quer seja com mais ou menos música escrita, com mais improvisação e espontaneidade ou mais interpretação. Acho que todos estes universos são ferramentas de expressão que estão ao nosso dispor. Talvez por isso nos últimos tempos me tenha interessado muito por cruzar música com outras áreas artísticas.
Tens desenvolvido trabalho na composição de música para filmes e foste finalista no Berlin International Film Scoring Competition 2023. Como tem sido este trabalho? O que é que mais te cativa nesse trabalho?
Deste interesse em cruzar artes e dessa ideia programática na música, foram surgindo algumas oportunidades na área do cinema. Tudo começou por sugestão do meu amigo realizador Pedro Caldeira, quando saiu o primeiro volume de Lost in Translation, que me disse que devia explorar a área do cinema. Fiz uma pós-graduação na Film Scoring Academy of Europe e tenho concorrido a várias competições, entre elas a Berlin International Film Scoring Competition 2023 (finalista), a Oticons 2023 (finalista) e a Call for Scores 2022 (menção honrosa). Tenho também feito os meus primeiros trabalhos com jovens realizadores e tentado conhecer mais pessoas nesta área me tanto me cativa. Tem sido uma experiência incrível e sinto-me mesmo muito motivado para escrever mais música para cinema. O que mais me cativa é mesmo a relação e papel que a música pode ter para ajudar a aumentar a mensagem emocional que o realizador quer dar. Gosto também da subjetividade que há já que tenho o papel de pôr o espectador a interpretar dada cena de um ou outro ponto de vista, conforme a música que apresento.
Tens trabalhado num trio com dois jovens músicos, o Bernardo Tinoco e o Diogo Alexandre. Que características tem essa música, que têm trabalhado? Há projetos para a edição de disco?
Sim, gravámos música fruto de uma residência artística que fizemos há um ano em Serpa. Estamos a acabar de editar tudo para ser misturado. Queremos editar o primeiro disco do trio. Sentimos que é um trio que ainda está a procura do seu espaço e forma, mas que gostamos do que temos feito. Tentamos explorar outras abordagens a um formato bastante icónico no universo jazzístico, o do trio sem instrumento harmónico. O Bernardo tem explorado outras formas de produzir som de vários instrumentos de sopro, eu tenho explorado pedais e efeitos e todos temos tentado explorar também parte mais eletrónica como sintetizadores tocados em tempo real. Estou muito curioso para ouvir o trabalho final!
Acabas de criar um novo projeto, chamado Buk, inspirado em Charles Bukowski. Que ideias trazes para este novo projeto?
A ideia do projeto inspirado no universo de Charles Bukowski surgiu também por mero acaso. Queria fazer um grupo com o José Soares (saxofone), Raquel Reis (violoncelo), Samuel Gapp (piano) e João Hasselberg (eletrónica), visto que um grande respeito e admiração por todos eles e por ser uma instrumentação atípica. Como sempre fiz com muitos projetos meus, marquei uma data para apresentação sem ter propriamente música e conceito idealizado. Sei que para mim ter um deadline é uma excelente forma de por mãos à obra e avançar com as coisas. Consegui agendar uma apresentação no Água Ardente para abril e, mais uma vez por mero acaso, acabei por tropeçar no Charles Bukowski. Já conhecia alguns dos seus livros, mas ao ir a uma livraria vi um livro dele que não conhecia intitulado “Música para Água Ardente”. E pronto, assim foi, comprei o livro (e mais outros dele), tenho estado a entrar no seu universo e a deixar ser influenciado por este. Quero explorar os diferentes timbres que podem surgir desta formação tão diferente. Explorar os limites entre composição e improvisação, assim como o acústico e o eletrónico. Há na obra de Bukowski muito caos e desordem, mas consigo ver um lirismo grande. Quero que o grupo de certa forma capte estes diferentes ambientes.
Não consideras que pode ser problemático homenagear ou buscar inspiração num autor “maldito”, considerado misógino, que se sabe que foi agressor de mulheres, sendo que se torna difícil “separar a obra do artista”, uma vez que boa parte da obra é autobiográfica e retrata esse comportamento?
Excelente pergunta, porque é algo em que tenho pensado muito nos últimos tempos, uma vez que só me apercebi de alguns casos mais recentemente. Como disse anteriormente, fiquei fascinado com o universo dele e isso levou-me logo a compor música. Quanto mais pesquisava mais me apercebia que há um lado mais negro nele, quer a infância terrível que teve (abusos do pai e mãe passiva), quer a adolescência marcada por isolamento e bullying, quer até pela sua relação com a sexualidade. Discordo em absoluto com a visão dele sobre as mulheres. Por isso, este é um tema sobre o qual tenho refletido bastante.
Viveste durante vários anos em Nova Iorque. Essa vivência foi importante para a tua evolução como músico e para encontrares a tua própria voz?
Sim, sem dúvida. Conheci imensas pessoas que me marcaram imenso, fiz imensos amigos e tive exposto a realidades, música e culturas muito diferentes. A cidade tem um ritmo que me cativa muito também. Sempre adorei cidades e sou uma pessoa completamente urbana e por isso Nova Iorque e toda a sua vida foi e é marcante. Conto ter sempre um pé em Nova Iorque, manter contacto com as pessoas que lá conheci e estabelecer sempre novos contactos num mundo artístico tão vasto e criativo. Foram sete anos cheios de coisas boas e experiências incríveis que marcam qualquer pessoa.
Já editaste como líder os discos “Hajime” (2011), “Memória de Amiba” (2013), “The Garden of Earthly Delights” (2019) e agora os dois volumes de “Lost In Translation” (2021 e 2023). Tens na calha este novo projeto “Buk”. Olhando em retrospetiva, como vês a evolução do teu percurso?
Acima de tudo um percurso de contrastes e de procura de algo que me surpreenda. Julgo que todos os meus álbuns também espelham o André Carvalho, contrabaixista e compositor do momento em que gravou o disco X ou Y. Tenho um carinho por todos os álbuns sem exceção. Esteticamente, alguns deles me poderão dizer mais hoje em dia do que outros, julgo que isso é normal e ainda bem que assim é. Espero que os próximos desafios a que me colocar me surpreendam, me tirem da zona de conforto de alguma forma alcançada por trabalhos anteriores e que vá sempre descobrindo algo de novo em mim e isso se reflita na minha música.
Além da criação musical, desenvolves trabalho como professor. Do que gostas mais neste trabalho?
Sim, já dou aulas há vários anos. Gosto muito de estar em contacto com pessoas que querem descobrir algo na e através da música. Acredito num acompanhamento regular e personalizado e, apesar de ter uma série de coisas que gosto de abordar ao longo dos tempos, muitas vezes vejo-me como um médico que faz um check-up a dado paciente. Penso, como é que posso ajudar esta pessoa, o que ela precisa, o que é prioritário e o que não é, para já, tão essencial. Gosto que os alunos sintam que podem contar comigo sempre, mas também gosto de os desafiar a chegarem a conclusões por eles próprios, a procurarem soluções e a estimularem a curiosidade. Muitas vezes quando estou a dar aulas, lembro-me de alguns professores muito importantes com quem estudei e que me marcaram. Sinto-me grato por todo o tempo, dedicação e paciência que me dedicaram.
Que música tens ouvido nos últimos tempos?
Muitos compositores para cinema tanto históricos como mais recentes, uns que usam abordagens e formações mais tradicionais como orquestra, mas também compositores que usam muita eletrónica e hybrid scores com instrumentos “convencionais” e instrumentos eletrónicos. Exemplos como o Trent Reznor e Atticus Ross, Danny Bensi e Saunder Jurriaans, Hildur Guðnadóttir, Jonny Greewood ou Ludwig Göransson. Paralelamente, tenho ouvido compositores clássicos, de forma a aprender mais sobre orquestração, tanto os “clássicos” como alguns mais contemporâneos. E obviamente tento estar atualizado com os discos que vão saindo tanto cá em Portugal como lá fora.
Como vês a cena atual do jazz em Portugal? Que nomes te têm entusiasmado?
Como voltei recentemente, ainda há muitas pessoas que não conheço e quero ouvir. Mas sinto que a cena jazzística está cada vez mais interessante, muitas pessoas a tocar e muitas pessoas a criar música interessante, à procura da sua voz própria. Há também muitos músicos despreocupados com coisas estéticas e com compartimentos. Das gerações mais novas, gosto muito de ouvir o Bernardo Tinoco, o João Carreiro, o Zé Cruz, o Zé Almeida, o Diogo Alexandre, o João Sousa ou a Leonor Arnaut. Provavelmente estou a esquecer-me de muitos outros nomes!
O que tens projetado para os próximos tempos?
Tenho alguns projectos relacionados com cinema em mãos, nomeadamente música para a minha primeira longa-metragem e uma curta. Estou também a produzir um documentário sobre palavras intraduzíveis, realizado pelo Pedro Caldeira, onde investigamos este universo com alguns especialistas da área da Linguística, Psicologia, Tradução, acompanhamos o trio com o André Matos e José Soares desde a sua génese até à gravação do mais recente álbum e como as palavras se relacionam com a música que tocamos. Quero também que o novo grupo Buk vá para a frente e gostava de talvez o gravar ainda este ano, eventualmente fazer uma residência artística para conseguirmos explorar mais a nova música e o universo literário em que se inspira.