Variações de uma solid body

Grupos com guitarra

Variações de uma solid body

Rastascan

texto Rui Eduardo Paes

No domínio do jazz como no do rock, a guitarra tem papéis predefinidos que só muito raramente se contradizem. Na improvisação sem idioma definido a utilização do instrumento é bem mais plural e também mais imprevisível, como verificamos por estes três discos…

A incorporação da guitarra eléctrica “solid body” em grupos de improvisadores – abarcando, bem entendido, a improvisação que utiliza estruturas composicionais de base – com vocação exploratória é mais variada ao nível das abordagens do que ouvimos em quaisquer situações inseríveis nos domínios do jazz e do rock, mesmo nos casos em que há uma orientação “alternativa”.

A impressão acima exposta é demonstrada por estes novíssimos discos (“Interactions Quartet” está prestes a ser lançado, “Volumes A + B” saiu nos primeiros dias de 2013 e “Eye of Newt” circula há apenas uns meses) em que encontramos três dos mais falados guitarristas da actualidade – o norte-americano John Shiurba, o francês Jean-Sébastien Mariage e o português Abdul Moimême. E não, os títulos em questão não foram escolhidos para justificar esta tese: calhou terem chegado à minha mesa de trabalho em simultâneo.

A diferença de posicionamentos e execuções não é especialmente ditada pelos “backgrounds” dos músicos referidos, que até em muito se assemelham. Shiurba tem um percurso que abrange o rock, a música improvisada e a new music, Mariage incorporou o vocabulário e as técnicas do rock numa moldura jazz que subsiste mesmo em contextos de livre improviso e Moimême parte do jazz e do rock para chegar a desfechos bruitistas próximos do experimentalismo electrónico em tempo real.

A verdade é que são muitas as possibilidades que se abrem hoje ao emprego da guitarra nesta área, dependendo apenas dos propósitos e das motivações existentes (além, está claro, das capacidades técnicas e criativas de quem toca). Essa permanente transfiguração guitarrística pode cobrir todo um vasto campo de aplicações, indo desde uma refrescante derivação dos papéis típicos do instrumento até ao extremo do uso deste como uma interface de manipulação da electricidade. Com diferentes níveis de sucesso, como se verá… 

Segundo plano

John Shiurba 

O John Shiurba que encontramos no CD de Andrew Raffo Dewar não é, decididamente, aquele que ouvi a interpretar Jimi Hendrix, integrado no grupo Eskimo ou na que talvez seja a sua mais importante edição em nome próprio, “5x5 1.1=M”. “Interactions Quartet” é um disco cozinhado na intersecção da música contemporânea electroacústica e da música improvisada. Ou melhor: a linguagem é a da improvisação segundo o modelo europeu (supostamente “não-idiomática), mas convertida pelas lógicas americanas da música erudita escrita que combina instrumentário acústico (no caso o sax soprano do próprio Dewar, o oboé ou o corne inglês de Kyle Bruckmann e a percussão de Gino Robair) e electrónica (a cargo de Bruckmann e Robair, com aparição episódica).

No painel de elaborados contrapontos, uníssonos e congregações, cruzamentos e oposições grupais (o factor interactivo prometido pelo título), a guitarra surge para reforço dos elementos electrónicos, mas se nessa função é mais constante do que os dispositivos analógicos que se fazem ouvir, torna-se ainda mais discreto do que estes.

Shiurba faz uso das técnicas extensivas e preparações que são apanágio do seu “jogo” pessoal, mas raramente as podemos captar em primeiro plano. O seu trabalho limita-se a dar uma contribuição para o todo, e o certo é que, seja isso intencional ou uma falha, brilha menos do que os seus parceiros – as peças reunidas (“Interactions #1-6” e “Piece for Four Instruments”) privilegiam os sopros na mistura final e a irrequieta intervenção de Robair fá-lo destacar-se mais. É o único senão de um registo que roça a excelência. 

Mar aberto

~Jean-Sébastien Mariage por Jacky Joannès

Já o trio de Bertrand Denzler, Jean-Sébastien Mariage e Antonin Gerbal pratica, com toda a evidência, uma forma integral de improvisação. Nesta proposta com a particularidade de se optar por uma abordagem tonal nos dois “Volumes” do disco, sobretudo no caso do saxofone. A performance deste é mesmo contrastante com o muito orgânico emaranhado tecido pela guitarra e pela bateria, que agem sempre em associação.

Mariage surge como um guitarrista no sentido tradicional, dedos sobre cordas, mas com uma inventividade que nunca deixa de surpreender – aquela que nos anos 1990 lhe descobri na banda Chamaeleo Vulgaris. Ora mantém a tensão no limite, nunca permitindo que haja um clímax e assim dando uma configuração dramática, de intriga, à música, ora sugere um fluxo por vagas de intensidade e de materiais, como se estivéssemos em mar aberto.

Por estranho que pareça, sendo o mesmo Denzler que integra o fabuloso quarteto Hubbub, é o saxofonista, e aparentemente líder dos Zoor, que deita tudo a perder. Os seus préstimos são de uma pobreza incompreensível, repetindo as mesmas estéreis fórmulas até à monotonia e distraindo a audição do que vai acontecendo atrás ou ao lado e que é, regra geral, bem mais interessante. Um desperdício, pois. 

Colectivismo

Abdul Moimême 

Nunca, nas três faixas de “Eye of Newt”, reconhecemos a presença de guitarras eléctricas. No plural, pois são duas, em simultâneo, que Abdul Moimême faz soar, dispostas na horizontal à sua direita e à sua esquerda e “atacadas” por objectos metálicos (ou mais exactamente: construções, esculturas) de dimensões variadas, algumas delas bastante grandes. Tanto assim que as guitarras desaparecem de vista, tornando a acção desenvolvida entre as chapas e os “pickups” num mistério.

Neste álbum o músico de Lisboa contracena com os elementos do duo Diatribes, D’Incise (Laurent Peter) e Cyril Bondi, ambos também utilizando objectos amplificados para além das suas habituais ferramentas, a percussão e a electrónica por computador. E porque a música tocada é iminentemente colectiva, difícil fica perceber quem produz que sons, de tal maneira estes se enovelam. As anteriores partilhas dos dois suíços com Barry Guy, Jason Kahn e Jacques Demièrre buscavam igualmente a dissolução dos egos numa fusão sonora, mas esta vai, sem dúvida, mais longe.

Nada surge aqui de guitarrístico, propriamente, ainda que saibamos todos, desde que Keith Rowe começou a torturar a “seis-cordas” nos AMM das décadas de 1960 e 70, que uma guitarra pode fazer estes sons. Ou estes ruídos, porque se trata de sons que não pretendem ser “musicais”, apesar da sua incorporação em peças de música. O que vem neste CD só não é noise porque se prefere o murmúrio, a fricção, as pequenas agitações da materialidade do mundo.

Pode até parecer que Abdul Moimême “desaparece” mais do que John Shiurba em “Interactions Quartet”, mas não. Está por todo o lado, umas vezes com proporções liliputianas (oiça-se “An Yll Wynde That Blowth No Man to Good”), outras sob a forma de nuvens de “feedback” que só não criam atmosferas oníricas porque têm uma carga ameaçadora. Exacto: uma guitarra eléctrica é mais do que uma central de acordes ou um “joystick” de decibéis.

  • Interactions Quartet

    Interactions Quartet (Rastascan)

    Andrew Raffo Dewar

    Andrew Raffo Dewar (saxofone soprano); Kyle Bruckmann (oboé, corne inglês, electrónica); John Shiurba (guitarra eléctrica); Gino Robair (percussão, electrónica)

  • Volumes A + B

    Volumes A + B (Umlaut)

    Zoor

    Bertrand Denzler (saxofone tenor); Jean-Sébastien Mariage (guitarra eléctrica); Antonin Gerbal (bateria)

  • Eye of Newt

    Eye of Newt (Insubordinations)

    Queixas

    Abdul Moimême (guitarras eléctricas preparadas, objectos); D’Incise (computador, objectos); Cyril Bondi (bombo, objectos)

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