Callithump

Uri Caine: “Callithump” (Winter & Winter)

Winter & Winter

António Branco

Na capa do seu novo disco a solo – o segundo, depois do já distante “Solitaire” –, Uri Caine estende as mãos na nossa direção. E fá-lo como que a oferecer ajuda para desvendar os mistérios da relação com a aparatosa fábrica mecânico-acústica que medeia a sua relação connosco.

O pianista, um dos mais relevantes do nosso tempo, tira o maior partido da liberdade que o formato lhe proporciona para explorar os vários parâmetros sonoros do ofício. A sua abordagem continua a exibir o cadinho alquímico pessoal para onde convergem e são processados elementos da música erudita (Bach, Mozart, Mahler), de diferentes períodos da história do jazz (Thomas “Fats” Waller, Thelonious Monk), da música popular, do cinema.

Tudo coberto por um manto de ironia e sátira burlesca: o próprio título do disco alude a um desfile turbulento, acompanhado por instrumentos de sopro e outros sons desconexos. Caine preparou música nova especificamente para este projeto e contou com a ajuda preciosa do seu produtor de duas décadas, Stefan Winter.

Neste nível, os fatores de contexto assumem uma ainda maior criticidade. A gravação decorreu, segundo a ficha técnica, de um só fôlego, sem segundos “takes” ou pós-produção. Tudo foi captado mercê da escolha de um piano Steinway especial, da judiciosa disposição dos microfones e diretamente para um gravador analógico, preservando as qualidades acústicas da sala utilizada.

A cascata de sons que brota da peça-título dá o mote para um programa diversificado mas de inatacável coerência. A atmosfera muda logo no início tranquilo de “Sepharad” (nome hebraico medieval atribuído ao espaço ibérico), que entretanto se densifica e transmuta em padrões de forte carga imagética. O seu lado mais lírico – ainda que não tão evidente como noutras gravações do pianista – fica bem expresso na grandiloquência melódica de “Map of the Heart”.

O colorido sincopado de “Greasy” acorda memórias de um Harlem renascido nas mãos de James P. Johnson, Willie “The Lion” Smith e Waller. “The Magic of Her Nearness” desnuda a apetência de Caine para construir baladas de recorte clássico, ainda que nada previsíveis e expurgadas de eventuais travos delicodoces. Um pianismo virtuosamente oblíquo – e de forte dinamismo rítmico/ percussivo – emerge de “Chanson de Johnson”, o mais claro nexo a Monk (e a Johnson?) aqui estabelecido.

As notas cristalinas de “Bow Bridge” (referência a uma ponte existente no nova-iorquino Central Park) desenvolvem-se num padrão circular, que aumenta e diminui de diâmetro desencadeando diferentes estados emocionais. O jocosamente intitulado “Perving Berlin” é simultaneamente uma charada musical dedicada ao compositor do sintomático “There’s No Business Like Show Business” e uma alfinetada.

A belíssima filigrana de “Raindrop Prelude” abre espaço – de forma absolutamente contrastante – para a acidez de “Everything Is Bullshit”, que funciona como estudo para uma banda sonora da fervilhante Tin Pan Alley, na sua amálgama de teatros e casas nocturnas, ilusão e decadência. A encerrar, a beleza inquietante de “Dotted Eyes”.

Uma proposta deveras excitante que, prospetivamente, já tem lugar reservado entre as melhores do ano.

 

António Branco

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    Callithump (Winter & Winter)

    Uri Caine

    Uri Caine (piano)

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