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O efeito potlatch
Potlatch
Três dos mais recentes lançamentos da editora francesa Potlatch mostram-nos como a música ainda pode ser coisa de todos…
Potlatch. Assim se chama o ritual, em vias de desaparecimento, das populações indígenas da costa do Pacífico Norte (Canadá e Estados Unidos) durante o qual a propriedade de cada um é oferecida de presente a vizinhos e amigos. Esta era uma prática comum nas antigas comunidades humanas e considera-se que definiu o primeiro sistema económico da história. É também a grande causa do anarquismo verde de hoje: ter uma economia baseada na dádiva.
Não surpreende que uma pequena editora independente de França dedicada à música improvisada tenha escolhido o nome Potlatch como seu. Se está obrigada a funcionar segundo os ditames mercantilistas do sistema capitalista, a visão que nos meios da improvisação se tem da música é precisamente essa – a de que se trata de um bem a partilhar por todos.
Dirigida por Jacques Oger, a Potlatch está a viver a segunda fase do seu já longo percurso. Se no início circunscrevia o seu catálogo às práticas da livre-improvisação, excluindo outras limítrofes, a própria evolução da música improvisada, nos seus cruzamentos com o experimentalismo e com novas perspectivas composicionais, determinou uma diferente orientação. A Potlatch acabou por ser uma das editoras-chave da corrente reducionista e abriu-se depois às tendências “underground” da electroacústica que foram surgindo com o virar do século.
Postura lo-fi
É nesse contexto que surge um disco como “Hidden Tapes”, muito dificilmente podendo este ser considerado como de improvisação, ou pelo menos do entendimento convencional que se tem desta. Quem o assina é Marc Baron, antigo saxofonista que já antes a Potlatch tinha editado, por exemplo inserido no quarteto de saxofones que lançou o muito celebrado “Propagations”, com Jean-Luc Guionnet, Stéphane Rives e Bertrand Denzler. Quando Baron se virou para a electrónica, e muito particularmente para a manipulação de fitas magnéticas, também a música mudou.
O que Marc Baron faz actualmente aproxima-se dos princípios da “musique concrète” tal como foram definidos por Pierre Schaeffer e Pierre Henry, mas com uma diferença fundamental. Se estes se situaram na herança da música clássica, o jovem músico escolheu uma postura “lo-fi” que tem tudo a ver com a cultura DIY (Do It Yourself) nascida com o punk. Para além disso, se o concretismo se caracterizou pelos seus “concertos de altifalantes”, sem intervenção humana, o que Baron faz com as suas gravações (registos de ambientes sonoros, reciclagem de música comercializada em disco, captações da rádio e da televisão, etc.) pode ser executado ao vivo.
Ou seja, pode ser improvisado, ainda que os materiais sejam pré-existentes. O suficiente para que o rótulo “improvisação” seja questionável. No caso de “Hidden Tapes” parece, de qualquer modo, haver um trabalho laboratorial que implicou mais tempo do que o permitido por uma situação performativa. Baron recuperou umas quantas cassetes do armário, contendo bandas sonoras de filmes e gravações de música litúrgica e sinfónica, e mesmo que estas composições tenham implicado processos de tentativa e correcção não realizou nada de mais sofisticado do que acelerações e desacelerações de velocidade, montagens por camadas e alguns tratamentos com processadores analógicos.
Os meios podem ter sido simples, mas os resultados são magníficos. Mais do que um maestro de sons “encontrados”, como se lhe referiu a crítica, Marc Baron funciona como um realizador de cinema que determina os ângulos de filmagem, os zooms, as relações de distância e proximidade, a perspectiva, os planos de acção. A organização sónica de “Hidden Tapes” não é somente musical, é cinematográfica: os sons surgem, transformam-se e desaparecem como se fossem imagens em movimento. Ou memórias, pessoais necessariamente.
Choques de frequências
Com “Microtonal Saxophone”, também Sergio Merce escapa aos figurinos habituais da improvisação. Se o argentino já foi, em tempos, um saxofonista coltraneano, em nenhum momento o que ouvimos neste CD soa como um saxofone. As adaptações que o músico realizou no seu alto tornaram-no num outro instrumento – num novo instrumento, para ser mais exacto – e o produto final é concordante com esse facto. Todos os mecanismos e chaves foram por si retirados e substituídos por aplicações contendo água, gás e ar comprimido, accionáveis por válvulas e botões. A dedilhação destes, e o apoio de um pedal de sustém, permite uma produção de multifonias e harmónicos que mais parecem de origem electrónica, remetendo-nos para a densa música de Phill Niblock e os seus choques de frequências.
O certo é que o “hardware” é acústico, como se verifica pelas vibrações e pelos batimentos de manuseação do “saxofone”, e as peças do álbum são bem mais doces do que qualquer coisa que Niblock tenha publicado. Nenhum dos códigos da livre-improvisação, e muito menos do jazz, é aqui repetido, o que não significa que Merce não tenha improvisado. Seja como for, e até mais do que aconteceria com um normal sax alto, o que toca tem como partitura o próprio instrumento. Curiosamente, é também com certas modulações de “Propagations” que estes temas se parecem, um só soprador fazendo as vezes de quatro.
Estamos já muito longe do reducionismo, mas esta é, sem dúvida, uma incursão de cunho minimalista – nesse aspecto, nada de novo se apresenta. O factor de novidade é esta música baseada na gestão de “drones” (bordões) ter sido concretizada da forma como foi. Tons e microtons são jogados uns contra os outros, mas os procedimentos de criação musical contrastam em simplicidade com a engenharia implicada para construir este saxofone mutante. O que quer dizer que, mais uma vez, se opõe brilhantemente uma abordagem artesanal à complexidade que hoje tem a tecnologia colocada ao serviço da arte dos sons.
Sinusoidais
Transmite-se assim a ideia de que o acesso à música e até à inovação musical é coisa que está ao alcance de todos, ou pelo menos daqueles de nós que têm veia criativa, numa espécie de “efeito potlatch”… Outro disco lançado pela etiqueta de Oger confirma-o. Em “Remoto”, Klaus Filip utiliza um computador para, singelamente, disparar sinusoidais. E o que com ele oferece Dafne Vicente-Sandoval são mais sinusoidais, recusando todo e qualquer uso definido para o secular instrumento que é o fagote.
Esta é a menos cativante das três edições reunidas e a que está mais conforme com uma tendência da música improvisada, a reducionista / near silence (apetece dizer que por causa disso mesmo). Tem, no entanto, os seus argumentos. Filip recusa voluntariamente as possibilidades que a informática lhe fornece, optando por recursos sónicos muito limitados para deles tirar o máximo proveito, e Vicente-Sandoval – que é, repare-se, uma intérprete de música erudita – desdenha da própria identidade do seu instrumento de palheta dupla, de tal modo que poderia ser um clarinete, um saxofone ou inclusive um trompete, e torna-o num mero transdutor de expressão primal e primária, para não dizer animal.
Quando a música escolhe tal via, obtém-se por regra um ataque visceral do mundo sonoro, mas em “Remoto” passa-se o contrário: tudo é extremamente contido e reduzido ao sussurro. Não há propriamente dinâmicas, mas também não se encontram quaisquer vestígios do fraseado da velha improvisação ou do free jazz. O que aqui vem são texturas liliputianas em contínua, mas diminutamente anunciada, metamorfose. Não há mudanças de rumo ou desvios, apenas um caudal de minúsculos eventos, de respirações, regurgitações, ruminações. É música aquém da música como normalmente a entendemos.
É como que um regresso à natureza, a um tempo em que dar e receber eram (ou podem vir a ser de novo) factores de organização social e de comemoração colectiva. Potlatch para os ouvidos.
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Hidden Tapes (Potlatch)
Marc Baron
Marc Baron (cassetes, electrónica)
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Microtonal Saxophone (Potlatch)
Sergio Merce
Sergio Merce (saxofone alto preparado)
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Remoto (Potlatch)
Klaus Filip / Dafne Vicente-Sandoval
Klaus Filip (computador); Dafne Vicente-Sandoval (fagote)