Cipsela Records
Estreia prometedora
Cipsela Records
Novo ano, nova editora com dois discos de suma importância, um de Carlos “Zíngaro”, outro dos Open Field com Burton Greene. 2015 promete…
O ano de 2015 inicia-se com a estreia de uma nova editora portuguesa dedicada ao jazz avançado e à música improvisada, a conimbricense Cipsela Records. A iniciativa dos músicos Marcelo dos Reis e José Miguel Pereira arranca com dois discos, ambos tendo um simbolismo muito especial: “Live at Mosteiro de Santa Clara-a-Velha”, de Carlos “Zíngaro”, e “Flower Stalk”, do trio Open Field (dos Reis, Pereira e João Camões) com uma luminária do jazz, Burton Greene.
No primeiro caso essa dimensão simbólica deve-se ao facto de “Zíngaro” representar toda uma atitude que hoje é entendida, de novo, como urgente. Tal como referem as acertadas “liner notes” do CD, a actividade do violinista desenvolveu-se, desde finais da década de 1960, em reacção ao obscurantismo salazarista e marcelista, e esse tipo de resistência é necessário num período como o presente em que a cultura está novamente a ser trucidada por motivos ideológicos, ainda que os queiram mascarar com causas financeiras. Lemos: «Ele mostra-nos o que é a liberdade criativa, expressando-se como mais ninguém pode.»
No que respeita ao segundo álbum encontramos uma nova geração de improvisadores com projectos de uma admirável frescura como Fail Better! e Pedra Contida que se atreveu, num acto de afirmação que é de aplaudir por si só, a fazer-se acompanhar por um veterano do pianismo free original. O que resulta é como que uma passagem de testemunho, assumindo que o futuro se constrói a partir dos exemplos do passado, sem considerações sobre, por exemplo, uma qualquer “diferenciação de valores” devido a hierarquizações determinadas pelo país onde se nasceu ou pela idade que se tem.
Depuração
Outros dados contribuem para a relevância da edição de “Live at Mosteiro de Santa Clara-a-Velha”, memória documental do excelente concerto a solo que “Zíngaro” realizou em Coimbra na 10ª edição do festival Jazz ao Centro, em 2012. Ainda que a sua discografia ultrapasse os 50 títulos, é conhecida a indiferença do lisboeta pelo lançamento de discos, o que explica os intervalos por vezes de anos em que nenhuma nova edição sua aparece nos escaparates. Este registo vem contrariar uma ausência que já se fazia sentir, mas tem ainda um maior peso: a circunstância de a música ter sido gravada num mosteiro, este em Coimbra, mais antigo (finais do século XIII) e em ruínas, faz com que seja inevitavelmente comparado com “Solo”, a sua impressão violinística das condições acústicas do seiscentista Mosteiro dos Jerónimos.
E diga-se que sai muito bem do confronto. Não está ao mesmo nível – “Solo” é daquelas obras-primas que apenas surgem uma vez na vida de um músico e na evolução de uma tendência musical –, mas também não desmerece. Traz-nos, até, alguns sinais muito interessantes quanto à direcção tomada por Carlos “Zíngaro”. Embora a patente economia de materiais sonoros tenha sido condicionada pela reverberação natural do espaço da actuação, o que de resto já acontecia em “Solo”, este é um “Zíngaro” diferente do dos Jerónimos, mais sóbrio e essencialista, menos argumentativo, capaz de com menos fazer algo de tão belo quanto irreverente. Essa ambição depurativa tem marcado a sua carreira e parece ter tido na apresentação à beira do Mondego os seus melhores frutos.
Algo assim tinha mesmo de ficar em disco, ajudando-nos a compreender o que se mantém e o que mudou no trajecto de um dos poucos músicos do mundo que foram pioneiros e souberam manter-se na linha da frente, renovando-se e inovando-se continuamente. Por parte da Cipsela, é sem dúvida um gesto de reconhecimento, tão mais distintivo quando se sabe que outros, no seu país, não o fazem.
Sentido colectivo
No texto que escreveu para “Flower Stalk”, com o esclarecedor título “Music Improvisation Evolution”, Burton Greene recorda aquele que terá sido, em 1962, o primeiro grupo a tocar «música totalmente improvisada a partir da nossa intuição e não com base em formas estabelecidas», o Free Form Improvisation Ensemble, por si fundado com Alan Silva. E fá-lo claramente para apresentar a sua associação com os Open Field como um equivalente num contexto temporal – a gravação de estúdio (Namouche) é de 2012 – muito diferente. O intervalo de 50 anos é gigantesco, mas o que está em questão permanece: como ele próprio afirma, «fazer música com verdadeiro espírito colectivo».
É esse factor que mais transparece da audição deste desafiante álbum: trata-se de uma música tocada por iguais em igualdade de circunstâncias, sem funções apriorísticas ou delimitação prévia de âmbitos, em termos de elementos constituintes, temáticas, referências ou o que seja. Em nenhum momento Greene se coloca em primeiro plano – até seria desculpável que o fizesse, dada a sua experiência e a sua importância histórica, mas nunca tal se verifica – ou o jovem trio português se propõe como o núcleo das situações, o que também seria legítimo.
A fidelidade aos princípios que nortearam este encontro é completa: não há solos propriamente ditos, se bem que todos encontrem espaços para se fazerem ouvir individualmente, e mesmo o que a convenção dita no respeitante às combinações instrumentais – no caso, viola, piano, guitarra, contrabaixo – é contrariado por um interpolante, e extensivo, trabalho tímbrico e textural, mediante preparações pianísticas e guitarrísticas, utilização de percussões ou de vocais e até a introdução de algumas pinceladas etnicistas por uma flauta turca mey. Daqui resulta um magnífico tratado de improvisação, confirmando tudo o que de bom já se ouviu de João Camões, Marcelo dos Reis e José Miguel Pereira e enobrecendo essa figura mítica que é Burton Greene, homem para quem o conceito de liberdade continua bem vivo.
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Live at Mosteiro de Santa Clara-a-Velha (Cipsela Records)
Carlos “Zíngaro”
Carlos “Zíngaro” (violino)
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Flower Stalk (Cipsela Records)
Open Field & Burton Greene
João Camões (viola, mey, percussão); Burton Greene (piano, piano preparado, percussão); Marcelo dos Reis (guitarra, guitarra preparada, voz); José Miguel Pereira (contrabaixo)