Balanço
O outro lado da Creative Sources
Creative Sources
A editora de Ernesto Rodrigues não publica apenas as novidades do reducionismo e da improvisação electroacústica. O seu catálogo inclui também alguns títulos com instrumentações mais convencionais e um mais claro alinhamento com o jazz. Analisamos aqui sete exemplos recentes (foto acima: Louis-Michel Marion)…
A Creative Sources é habitualmente identificada com a corrente reducionista da improvisação, e quando assim não acontece o que se sublinha é o seu alinhamento com as actuais tendências da música electroacústica tocada em tempo real. E no entanto… o selo lisboeta dirigido pelo violetista Ernesto Rodrigues lança, igualmente, alguns registos do autodesignado jazz criativo ou próximos da tradição do free jazz. Aqui em análise estão sete exemplos (mais do que se poderia esperar, na verdade) desse investimento lateral, publicados no último ano.
Se não fossem alguns dos nomes mais conhecidos (John Edwards, Mark Sanders, Jacques Di Donato, Floros Floridis, Alexander Frangenheim, Roger Turner…), a consulta dos instrumentários nas fichas técnicas bastaria para perceber que estes discos não condizem com a orientação habitual da editora. As combinações de timbres são bem mais convencionais, com a clássica secção rítmica com bateria, contrabaixo e, às vezes, piano atrás de um ou mais sopros e de outros instrumentos melódicos e solistas. Ainda que as músicas tocadas fujam aos padrões e pouco fique das jazzísticas hierarquizações de naipes.
Como não podia deixar de ser, esta outra, e menos comentada, vertente da Creative Sources surge com vários matizes. Pode ir desde a mais explícita incursão na estética do grito inaugurada por Albert Ayler, aquilo a que os improvisadores mais experimentais chamam – mal ou bem – ”old school”, até uma música exploratória com vagas ligações reminiscentes com a gramática e o património do jazz. Entre um “estado” e o outro passando por diversos níveis de relacionação com essa matriz, entre distanciamentos e aproximações. Vejamos como, caso a caso…
Foils Quartet: “The Jersey Lily”
Este é um CD totalmente atípico no catálogo da Creative Sources, e sê-lo-ia até na sua irmã portuguesa Clean Feed. “The Jersey Lily” é uma retoma do formato original do free jazz e, sim, soa a coisa datada. Além disso, tem todos os vícios e tiques deste subgénero: os quatro músicos não criam espaços e há sons em excesso. A qualidade da gravação ao vivo não ajuda: o saxofone soprano de Frank Paul Schubert está demasiado presente – o que torna ainda mais desagradável para os meus ouvidos a maneira pouco imaginativa como fraseia, sempre ancorando em lugares-comuns –, com o trombone de Matthias Muller relegado para alguma distância, como se fosse a sombra mais grave do primeiro instrumento. Por sua vez, a bateria de Mark Sanders eclipsa o contrabaixo de John Edwards. Tudo parece estar errado nas duas longas improvisações aqui reunidas, menos o que é o traço distintivo desta música: a energia. Essa flui e impressiona, deixando-nos divididos entre a adesão ao que é proposto e a vontade de tirar o disco. A carga expressiva é avassaladora, mas tão só porque, mesmo em contexto equívoco, Edwards e Sanders são iguais a si mesmos – dois grandes músicos.
Aliás, este quarteto não é mais do que a junção de um par de duos, o do contrabaixista e do baterista ingleses que já gravou (para a Emanem) como tal e que se juntou a figuras como Evan Parker e Trevor Watts, e o dos sopradores alemães que conhecemos por Foils. A soma não chega a fazer-se sentir – das poucas vezes que Schubert (sobretudo este) e Muller continuam o que lhes é sugerido pelos seus parceiros de ocasião, acabam por deitar a perder a oportunidade. Foi devido a práticas como esta que a tendência reducionista surgiu na improvisação, e muito provavelmente terá sido por isso que o patrão da Creative Sources lançou este trabalho.
Neuser / Miethe / Floridis / Gschlössl / Anissegos / Ando / Martin: “The Alliteration”
Mais convincente na adopção das fórmulas estabelecidas no jazz é aquilo que ouvimos em “The Alliteration”. Os sopros ecoam, por vezes, a fundadora sonoridade de New Orleans, ainda que a abordagem esteja em linha como tipo de ensembles que vão do Coltrane de “Ascension” ao Brotzmann do Chicago Tentet. Há muito de bom para ouvir neste álbum transnacional, mas o mesmo acaba por ceder à vontade de fazer um pouco de tudo sem concretizar algo que seja. Torna-se derivativo, errante, impreciso – não em termos de roupagens, mas dos próprios materiais. Querer, em simultâneo, cobrir técnicas e vocabulários extensivos e criar música polifónica é tarefa ambiciosa e que neste caso não chega a ter a mais desejável resolução.
Isso é tanto mais estranho quando se torna evidente que, contrariamente ao exemplo anterior, o que aqui vem foi estruturado, composto e/ou arranjado. Esta música foi pensada e pré-organizada, mas nem isso lhe deu foco. Até o jogo com as referências do passado jazzístico não é suficientemente explorado – em vez de surgir como um motivo ou, pelo menos, uma coordenada, acaba por funcionar como uma mera, se bem que recorrente, piscadela de olho. Quando o disco chega ao fim, fica-nos na ideia mais o que poderia ter sido feito do que aquilo propriamente que está lá. Seria de esperar mais de músicos como Floros Floridis, Akira Ando e Gerhard Gschlössl.
Glue: “Chats with the Real McCoy”
A expressão “the real McCoy” significa, em Português, “coisa verdadeira” – o curioso é que surja no título do mais desalinhado dos discos já gravados pelo trompetista Tom Arthurs, seja com o trio Glue ou com outra formação. Regra geral, a abordagem deste é mais convencional, num registo romântico que o coloca na esfera de influência de um Kenny Wheeler. O curioso é que “Chats with the Real McCoy” mantém do início ao fim uma deliciosa ambiguidade: é experimental, abstracto, livre, mas nunca perde a fundamentação jazz. Mais ainda: nunca deixa de ser acessível a uma audição menos “especializada”.
O jazz deste CD não é propriamente o do free, a não ser que conotemos o Jimmy Giuffre de “Free Fall” com essa corrente. Há uma enorme contenção de notas e tudo parece ter proveniência no silêncio e remeter-se a ele. O “drive” específico do jazz é bem explícito, e no entanto não há propriamente uma narrativa rítmica. Como já um crítico escreveu a propósito, o conteúdo deste disco «está mais próximo dos Jazz Messengers de Art Blakey do que dos AMM». É verdade: para todos os efeitos, é como se estivéssemos perante uma versão cubista do bop.
The Wisseltangcamatta: “Movements”
O mesmo se poderá dizer de “Movements”, do trio Wisseltangcamatta. Com uma diferença: se o bop metamorfoseado dos Glue é o do ramo cool, aquele de que Giuffre emergiu, o deste grupo é o hard bop. Georg Wissel, o elemento em destaque – muito por causa dos seus instrumentos, o saxofone alto (preparado) e o clarinete –, esteve envolvido em realizações de várias frentes do jazz, do swing à vanguarda, e até em outras linguagens, como o rock e a música de câmara. Ora, essa perspectiva idiomática faz-se sentir a todo o momento. A forma como a transgressão e a busca do novo (ou a inserção do novo nas molduras do jazz) se conjugam com o respeito pela tradição é admirável, mesmo que os equilíbrios conseguidos sejam precários.
Se a improvisação reducionista tem mais conexões com a música escrita erudita do que com o jazz, a que aqui consta não deixa dúvidas quanto à sua ascendência. É a precariedade dos equilíbrios realizados, de resto, o que cativa nestes “movimentos”: estamos sempre à espera de verificar para onde pendem mais os três trapezistas. E sim, no meio de tantos desafios à gravidade temos o jazz, sempre o jazz.
Shibolet / Jacoby / Frangenheim / Bymel: “Skulking in the Big House”
Deste lote, “Skulking in the Big House” é o álbum que mais navega pelas águas do reducionista “near silence”. Porque o volume é baixo, muito baixo, mas não por haver qualquer frugalidade nas emissões sonoras – na realidade, há sempre algo a acontecer, numa mimetização do zumbido dos insectos. O que significa que não é por haver uma bateria (a de Ofer Bymel, um dos intervenientes israelitas que encontramos na companhia do alemão Alexander Frangenheim) que a música deixa de ser “pequena”. Se do reducionismo tivermos a perspectiva fundamentalista de um Radu Malfatti, não é disso que se trata: há demasiada actividade. Provavelmente, a mesma do free jazz, mas com uma drástica diminuição de decibéis e emoções. Mas não chega, o que neste CD vem, a ser um jazz de câmara – em lado algum se vislumbra o “deixar-se ir” que define o jazz.
Aliás, este é um trabalho algo monótono. Não há intriga nem surpresa. Nada que contrarie o que vem antes, nenhuma mudança de rumo, nenhum acrescento. O disco ouve-se bem até deixar de nos apetecer ouvi-lo, simplesmente porque a escuta se esgota.
Duthoit / Frangenheim / Turner: “Kochuu”
É Frangenheim, novamente, que encontramos a tocar o contrabaixo de “Kochuu”, mas se no caso anterior era ele o principal factor de interesse, agora esse papel é protagonizado pelo inglês Roger Turner. O histórico baterista e percussionista da cena londrina está, porém, fora do seu meio natural. É como se lhe tivessem prendido os braços e as pernas, impedindo-o de ser o que é, um improvisador conhecido, precisamente, pelo seu agudo sentido da performatividade. Ainda assim, dele depende muito do que cativa nesta edição.
Isabelle Duthoit, essa, desilude. Os seus tão distintivos vocalismos guturais surgem nestas faixas como que amordaçados. Se, a crer no título japonês (que refere a integração da arquitectura na natureza), está em causa a exploração do espaço, o que implica uma noção de abertura, de relacionação com o que está em volta, este virar para dentro por parte de músicos habitualmente tão extrovertidos torna-se incompreensível. Seja um erro de “casting” ou algo de intencionado, saímos da fruição deste disco bastante frustrados. O que “The Jersey Lily” tem a mais, “Kochuu” tem a menos…
Clinamen Trio: “Décliné”
Chegamos, finalmente, à pérola deste conjunto de edições. O mentor do Clinamen Trio é o contrabaixista Louis-Michel Marion e este tem como princípio e finalidade aquilo exactamente que diminui o alcance de “Kochuu”: a construção de “esculturas do invisível”, isto é, de modos de ocupar o espaço desenhando o som e tornando-o “palpável”. Em “Décliné” consegue-o plenamente, com o precioso apoio do clarinetista Jacques Di Donato e do violetista Philippe Berger, ambos dignos representantes da improv francesa.
Entre o jazz e a música contemporânea (há qualquer coisa nestes temas do Messiaen do “Quatuor pour la Fin du Temps”), o que descobrimos leva-nos numa viagem sobre superfícies texturais constantemente em movimento. Curiosamente, é o único destes CDs que não inclui uma bateria. Não precisa: o coração está lá todo, a bater, mesmo que descompassadamente.
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The Jersey Lily (Creative Sources)
Foils Quartet
Frank Paul Schubert (saxofone soprano); Matthias Muller (trombone); John Edwards (contrabaixo); Mark Sanders (bateria)
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The Alliteration (Creative Sources)
Neuser / Miethe / Floridis / Gschlössl/ Anissegos / Ando / Martin
Nikolaus Neuser (trompete, fliscórnio, trompete piccolo); Gerhard Gschlössl(trombone); Manuel Miethe (saxofone soprano); Floros Floridis (clarinetes soprano e baixo); Antonis Anissegos (piano); Akira Ando (contrabaixo); Maurice de Martin (bateria, objectos)
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Chats with the Real McCoy (Creative Sources)
Glue
Tom Arthurs (trompete); Miles Perkin (contrabaixo); Horgos Dimitriadis (bateria, percussão)
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Movements (Creative Sources)
The Wisseltangcamatta
Georg Wissel (saxofone alto preparado, clarinete); Achim Tang (contrabaixo); Simon Camatta (bateria, percussão)
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Skulking in the Big House (Creative Sources)
Shibolet / Jacoby / Frangenheim / Bymel
Ariel Shibolet (saxofone soprano); Nori Jacoby (viola); Alexander Fragenheim (contrabaixo); Ofer Bymel (bateria)
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Kochuu (Creative Sources)
Duthoit / Frangenheim / Turner
Isabelle Duthoit (clarinete, voz); Alexander Frangenheim (contrabaixo); Roger Turner (bateria, percussão)
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Décliné (Creative Sources)
Clinamen Trio
Jacques Di Donato (clarinete); Philippe Berger (viola); Louis-Michel Marion (contrabaixo)