Marcelo dos Reis / Angélica V. Salvi: “Concentric Rinds” (Cipsela)
Cipsela Records
A primeira vez que ouvi este duo foi igualmente a primeira em que a colaboração entre Marcelo dos Reis e Angélica V. Salvi aconteceu. A sugestão partira de Evan Parker, por ocasião de uma residência artística do saxofonista britânico, em 2012, que reuniu em várias aldeias beirãs do xisto uma quinzena de músicos portugueses das áreas do jazz e da livre-improvisação. Parker pensou em vários pequenos grupos que ocupassem diversos espaços públicos de uma pequena povoação, e este foi um deles.
Curiosamente, a prestação a dois acabou por resultar num inesperado e fascinante trio: ao lado de Marcelo e Angélica estava uma fonte, e o som da água a correr envolveu e influenciou a música de um modo estranhamente belo. Tão auspicioso começo determinou que a parceria continuasse – esta é a materialização em disco do projecto, gravado numa galeria de arte do Porto, a Arara, em 2013. Mais aconteceu até hoje, mas a importância deste documento fica por demais evidente e mantém-se actual.
A combinação entre guitarra clássica e harpa, com e sem preparações, e com e sem utilização de técnicas extensivas, não é vulgar no domínio da música improvisada. E o facto de não ser exponencia à partida as possibilidades linguísticas da situação. Marcelo dos Reis e Angélica V. Salvi exploram-nas com uma requintada sensibilidade.
Vindo o guitarrista (e vocalista, tal como ouvimos em “Depth”) sediado em Coimbra de uma free music contaminada pelo jazz e pelo rock e a harpista de origem espanhola, mas residente no Porto, da música clássica e contemporânea, natural será que essas referências se façam sentir. Dos temas reunidos emana, no entanto, um sabor folk, ainda que este seja dificilmente mapeável. Decorrerá dos usos ancestrais, populares, dos instrumentos em causa (se a harpa de Salvi é a sinfónica, o certo é que este cordofone está presente na tradição céltica desde tempos imemoriais), que não de qualquer intenção previamente estabelecida.
“Concentric Rinds” partilha muitos dos ensinamentos de Evan Parker no ano anterior: é um disco feito de escuta mútua, com a música a respirar e espaços não preenchidos, silêncios. O que ouvimos decorre de gentilezas, partilhas, princípios democráticos . O que não quer dizer que haja aquele tipo de contenção que põe em causa a liberdade criativa individual. Por vezes o diálogo é uma discussão, mas não há notas a mais, assim como não há a menos. Vai-se sucedendo uma revivificante troca de desafios e até de armadilhamentos, comprovando que só existe consenso, compromisso, por via do desacordo e da diferença.
O que aqui vem não é música para entreter ou para distrair. Pode ter um efeito calmante, pode ser introspectiva e contemplativa, mas exige muito do ouvinte. Uma participação. Como se nós fossemos a fonte que acompanhou a estreia desta muito especial parceria. Em conclusão: eis mais um exemplo – um dos mais notáveis, na verdade – da excelente música que se faz em Portugal por estes dias.
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Concentric Rinds (Cipsela Records)
Marcelo dos Reis / Angélica V. Salvi
Marcelo dos Reis (guitarra clássica, guitarra preparada, voz); Angélica V. Salvi (harpa, harpa preparada)