Ballrogg: “Abaft de Beam” (Clean Feed)
Clean Feed
Falecido o peixe é preciso dar-lhe condições de ser comido. E o cozinheiro – malta da restauração – transforma postas cruas numa caldeirada de gabarito internacional. Daquelas que limpavam qualquer concurso televisivo sem problemas. Finda a refeição e a conversa, é tarde e estão 50 minutos de auto-estrada entre mim e a minha cama e é nesse momento que surge o problema que certamente muitos dos leitores percebem: que música escolher.
Muitos de nós sabem que este é um momento delicado que pode estragar tudo e levar a grandes perigos viários. Sei que muitos de vós percebem o que quero dizer: ao enfrentarmos uma viagem com distâncias significativas todos sabemos que a música que vai estar no carro pode ser tão ou mais importante do que o estado dos pneus. É ela que vai construir parte da viagem, dar-lhe memória futura e estabelecer uma relação com a paisagem.
Podemos ir à maluca e escolher um disco qualquer. Se estamos muito inconscientes a solução é sempre a de sintonizar a Antena 3: é uma espécie de “airbag”, pois sabemos de antemão que não vai construir nada mas também não vai lançar perigos e esforços, especialmente à noite, altura em que não se corre o risco de ouvir programas imbecis como “Palavras de Bolso”.
É então que me decido pelo Ballrogg, um dos mais recentes lançamentos da portuguesa Clean Feed, que continua com o ouvido afinado para lançar discos de 5 estrelas uns a seguir aos outros. E acertei, o disco é excepcional e encaixou na perfeição na viagem, construindo uma banda sonora melhor que a do Ry Cooder para o “Paris-Texas”.
Os Ballrogg são contínuos e flutuantes, mas, ao contrário do guitarrista americano, são também alegres e esperançosos. Dão sentido às coisas, têm um destino, um objectivo. Trata-se de um trio nórdico de clarinete(s), saxofone alto, contrabaixo e guitarra(s) que faz uma música serena, paisagista e abstracta. Ou seja, os temas do grupo partem de bases definidas, de ideias musicais simples, e depois surge a improvisação em que cada membro vai entrando com ideias novas no seu instrumento, instalando-as devagar e retirando-as com igual lentidão. Quase como a caldeirada (quase, atenção!) em que as camadas se sobrepõem em cru e os sabores se fundem por acção do calor e do vapor e a colher de pau não entra, não mexe.
Os Ballrogg não são mexidos por nada exterior, parecem estáticos. No entanto, a música move-se, evolui, com novas frases musicais e novas constituições sonoras a partir do uso de diferentes clarinetes e de diferentes guitarras. Ouve-se por isso de uma ponta a outra sem a sensação de repetição. Uma ideia simples vai-se renovando e apresentando sob diferentes perspectivas. São as diferentes naturezas dos músicos e dos seus instrumentos que somam novas linhas melódicas improvisadas, fundindo-se com as primeiras e transformando-se por acção desta adição sucessiva.
Claro que esta crítica não resulta só de tal audição “on the road”. No dia seguinte, digerida a caldeirada, foram reescutados com pormenor, mas o veredicto mantém-se. Os Ballrogg fizeram um disco melódico mas abstracto, pensativo, sereno e de enorme beleza. Obrigatório.
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Abaft de Beam (Clean Feed)
Ballrogg
Klaus Ellerhusen Holm (clarinetes, saxofone alto); Roger Arntzen (contrabaixo); Ivar Grydeland (guitarra pedal steel, guitarra, banjo)