Gregor Vidic / Nicolas Field: “Do You Have a Room?” (edição de autor)
«Nunca consegui compreender porque é que no free jazz os saxofonistas estão sempre a berrar. Por que raio se há-de fazer música sempre aos gritos?», disse-me certa vez Rão Kyao. O agora exclusivamente flautista que trocou o jazz pela world music até que pode ter razão, mas quando ouvimos algo de tão abrasivo quanto “Do You Have a Room?” há algo que em nós inevitavelmente se agita, um lado primário e selvagem remanescente, talvez, das origens da humanidade, mas que vamos interpretando como uma manifestação de raiva ou de alegria de viver, devolvendo ao existencialismo de Kierkegaard e Camus uma inquietação que é, afinal, positivista. Pois o eslovénio Gregor Vidic e o britânico Nicolas Field vão buscar os formatos deste disco ao free original dos anos 1960 e 70, e se o primeiro não está permanentemente aos gritos com o sax, as suas intervenções são pelo menos ruminantes e nevróticas, colocando-nos em bicos de pés, à espera de alguma explosão que suceda. Field não berra, mas as suas baquetas não páram quietas diante das peles e dos pratos da bateria.
Já por cá tivemos estes dois músicos: tocaram em quarteto no Barreiro com Albert Cirera e Hugo Antunes. Field conhecíamos melhor, dadas as suas colaborações com Otomo Yoshihide, Akira Sakata e Jasper Stadhouders, que este ano vamos ouvir, no Jazz em Agosto, com Ken Vandermark (Shelter) e, no Jazz no Parque, com Tobias Klein e Gonçalo Almeida (Spinifex Plus). De Vidic tínhamos apenas a referência de que integrava a suíça Insub Meta Orchestra de Cyril Bondi e d’Incise. Free jazz, portanto, é o que encontramos neste disco de vinil auto-editado pelos próprios, mas algo não joga bem com os modelos que parecem estar em jogo, os das duplas constituídas por John Coltrane e Rashied Ali e por Peter Brotzmann e Han Bennink. E a diferença não está, simplesmente, no facto de Vidic tocar menos notas que Coltrane e controlar-se mais do que Brotzmann. Está, isso sim, no facto de este free jazz importar aspectos provenientes de outras músicas, e designadamente de um certo rock extrapolativo e que improvisa como se viajasse numa “trip” de ácido, e de uma electrónica exploratória que tem no não-desenvolvimento, na suspensão do tempo, a sua estratégia. É, aliás, por esse motivo que o duo apresenta a sua música como free-psycho-jazz. O que aqui está é free jazz psicadélico, com muitas das soluções acústicas apresentadas a derivarem directamente do território criativo que utiliza sintetizadores e computadores. Seria inevitável: o free que hoje se toca dificilmente poderia ser o mesmo de há 50 anos. Aconteceu demasiada coisa entretanto e este LP reflecte isso mesmo. Com uns gritos, sim, e bem que os ditos nos vão apetecendo por estes dias…