Marcelo dos Reis
Dose dupla
JACC Records
O guitarrista sediado em Coimbra não pára quieto. Depois de três discos com a sua participação publicados este ano e aclamados pela crítica, eis mais dois, um em duo com Eve Risser e o outro a solo, formato difícil a que só alguns se atrevem. Mais dois numa carreira que se está a tornar notável, em análise já a seguir…
A publicação simultânea de dois álbuns com o nome de Marcelo dos Reis não terá acontecido por acaso, um pela JACC Records (duo com Eve Risser) e outro pela Cipsela (solo). São ambos o corolário de um período de intensa actividade do músico estabelecido em Coimbra desde, pelo menos, 2015, e que no ano corrente passou por uma digressão em vários países europeus. Em termos discográficos, vêm no seguimento de discos amplamente aclamados como “House Full of Colors”, com o Staub Quartet (tendo Carlos “Zíngaro” como o mais reconhecido dos seus elementos), “City of Light”, com os Chamber 4 (integrado pelos irmãos Théo e Valentin Ceccaldi, figuras em ascensão na cena francesa) e “Amethyst”, com os Pedra Contida, todos os três de 2017, bem como dos imediatamente anteriores “In Layers”, com Onno Govaert, Luís Vicente e Kristján Martinsson, e “Owt” (dos Fail Better!). A projecção trazida por estas edições traduziram-se na escolha do nome de dos Reis pela crítica internacional, a convite do “site” argentino El Intruso, como um dos cinco mais importantes guitarristas da actualidade.
“Timeless” é o registo do primeiro – e até à data único, tanto quanto sabemos – encontro de Marcelo dos Reis com a pianista francesa Eve Risser, por ocasião dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra de 2016. Um encontro que teve duas partes, um à porta fechada, durante a tarde, destinado a trabalho de entrosamento da dupla e a gravações, e o outro à noite, no mesmo Salão Brazil, perante uma numerosa assistência. Sobre o concerto público já se escreveu aqui na jazz.pt – o disco agora publicado parece conter faixas das duas sessões, umas ouvindo-se o rumor de fundo próprio das situações ao vivo (uma pessoa a tossir, por exemplo) e outras evidenciando o carácter intimista que só se consegue em ambiente de reclusão.
Eve Risser e Marcelo dos Reis dialogam com coordenadas bem distintas, mas que se complementam de formas não só eficazes como surpreendentes. A primeira adapta as sonoridades-tipo do piano preparado, as de John Cage, e realça-lhes as conotações etnicistas, por vezes mais parecendo que o seu instrumento é um gamelão do Bali. O que lhe ouvimos é tendencialmente abstracto, mesmo quando Risser centra as atenções no teclado, alicerçando as construções mais na música erudita contemporânea do que propriamente na linguagem da música improvisada. O seu parceiro contrapõe-lhe um discurso ele também de alusões populares e da tradição, mas ocidentais, desviadas da folk e dos blues, por ocasiões ora via rock, versão “camp” devido ao formato acústico, ora via um jazz mais explícito, ou pelo menos mais alusivo. Com esse procedimento “compõe” o pontilhismo textural de Risser com estruturas rítmicas repetitivas e malhas que assumem o tonalismo e introduzem a melodia. Este tipo de jogo torna “Timeless” em algo de substancialmente diferente da livre-improvisação que vai dominando, o que é uma opção refrescante e explica muito do que este CD tem de especialmente atractivo: o facto de trocar a norma pela pesquisa de possibilidades, libertando-se de constrangimentos idiomáticos sem nunca temer o idioma.
Esse mesmo interesse de Marcelo dos Reis pela folk (a norte-americana, de forte influência negra) faz-se sentir igualmente em “Cascas”, a primeira incursão do guitarrista pelo solo absoluto. Nesse sentido, segue a linha de rumo de obras com semelhantes características de Norberto Lobo, Filho da Mãe, Peixe, Tó Trips e Frankie Chavez, ainda que lhes acrescente o factor improvisação e, claro está, a sua própria personalidade musical. Há algo mais, no entanto, a referir: se em “Timeless” procura contrariar os elementos “clássicos” provenientes de Eve Risser, e se antes, em 2015, no seu dueto com a harpa de Angélica V. Salvi (“Concentric Rinds”), mergulhara na pura experimentação tímbrica, em “Cascas” o seu propósito primeiro parece ser o de congeminar novos vocabulários e novas gramáticas para a guitarra clássica. Os temas reunidos neste disco (à excepção de “Crina” e “Bostik Azul”, nos quais encontramos o dos Reis de sempre, entregue ao momento) soam, inclusive, a exercícios em que procura explorar uma ideia formal ou uma solução técnica para esse formato.
Esse será o único problema de uma colecção de improvisos que tem o brilhantismo a que fomos habituados por Marcelo dos Reis, mas também é verdade que o solo traz consigo um dilema: porque permite a introspecção, é entendível como um espaço de estudo pessoal. Um espaço que se julga mais real do que aquele outro em que se encaixa e que tem a presença de muitos pares de ouvidos. Ora, interessando à música improvisada não apenas os resultados como a própria maneira como aos ditos se chega, acontece que neste contexto há alguma tendência para mostrar os tijolos com que se ergue uma casa, mesmo quando seria melhor preservar algum mistério de pedreiro. Derek Bailey tinha uma boa maneira de fugir a essa tentação, o de entender uma gravação de estúdio ou um concerto a solo enquanto duo com quem ouve, como se este também tocasse.
O que há de mal num exercício? Nenhum, se não fosse este: um exercício é a procura de uma certificação da descoberta, enquanto na improvisação vale mais a descoberta não certificada, ainda que esta possa trazer outras complicações. Essas, de qualquer modo, são as complicações que dão encanto à forma de criar música abraçada pelo conimbricense originário de Lisboa de que hoje vos falamos, e ele tem sabido geri-las com uma enorme criatividade. Nem sempre se consegue, e por algum motivo a maior parte dos músicos foge do solo como o diabo da cruz. Marcelo dos Reis não fugiu.
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Timeless (JACC Records)
Eve Risser / Marcelo dos Reis
Eve Risser (piano, piano preparado); Marcelo dos Reis (guitarra, guitarra preparada)
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Cascas (Cipsela Records)
Marcelo dos Reis
Marcelo dos Reis (guitarra, guitarra preparada)