Como Sísifo

Lokomotiv

Como Sísifo

Aduf

Rui Eduardo Paes

Passados 20 anos, e com novo disco a assinalar essa efeméride, "Gnosis", o grupo de Carlos Barretto continua a subir a colina da música com uma capacidade de reinvenção das suas coordenadas que mais pareceria indicar que o projecto está ainda no início do seu caminho se não fosse o entrosamento que muita estrada e muitos álbuns editados forjaram. A jazz.pt virou os ouvidos para os novos temas...

Carlos Barretto foi lembrando isso ao longo do caminho e agora que se assinalam 20 anos de estrada dos seus Lokomotiv a questão está ainda mais clara: quando chega um novo disco do grupo, ou um concerto com novo repertório, não está em causa para o projecto situar-se numa lógica de continuidade ou numa de ruptura. A música dos Lokomotiv quis-se sempre, desde o início, como uma construção permanente, um “work-in-progress”. Os feitos do passado e as expectativas do futuro são importantes, mas nada determinam efectivamente. O que interessa é a evolução das ideias e a maneira como estas vão sendo aplicadas. Como já afirmou o contrabaixista e compositor: «Tenho apenas de ser fiel ao que me vai na alma, ao que está dentro de mim. É sempre por aí que eu vou.»

O que se mantém é tão relevante quanto o que mudou neste caminho percorrido a três por Carlos Barretto, Mário Delgado e José Salgueiro. A escrita do primeiro foi-se abrindo progressivamente, dando mais lugar à improvisação e à espontaneidade, mas o gosto por aquilo a que chama «arquitectura concreta» é igual ao de “Suite da Terra”, o disco debutante do grupo, lançado em 1998. Neste aspecto em particular, se nos últimos tempos a maior presença do rock na música dos Lokomotiv parecia indicar uma diferenciação, o swing jazzístico volta neste álbum a ganhar predominância – com o tema-título, “Gnosis”, a mergulhar nas raízes do género, os blues.

Há avanços que se realizam por meio de retrocessos, todos o sabemos e um filósofo, Wittgenstein, definiu mesmo o ser humano como alguém que olha simultaneamente para trás e para diante, mas não é isso, sequer, o que aqui se verifica: uma mudança na forma não significa uma alteração nos conteúdos ou nos propósitos que lhes assistem. Os Lokomotiv sempre foram mais rock ou mais jazz nos seus diferentes momentos e até de composição em composição, no mesmo CD ou na mesma actuação em palco. Observando com mais atenção, percebemos que estas são apenas transformações de superfície, dado que o equilíbrio entre arquitectura e inventividade foi, na sua natural variação, uma constante no trajecto do trio.

No ADN dos Lokomotiv tem estado o desejo de «encontrar vasos comunicantes entre compartimentos fechados» (Barretto dixit), o que pode ser entendido tanto ao nível idiomático e dos vocabulários utilizados (os jogos entre jazz, rock, tradição popular e música erudita que foram realizando) como em outros nos planos estético e técnico, sempre no ponto de intersecção do património musical existente com o desconhecido. Sair de uma zona de conforto, arriscar, só é possível dentro destes parâmetros (só faz sentido, e só tem lógica como expressão de um desejo, neste contexto) e ainda que o risco, a invenção, não conduza à originalidade. Nada é realmente original. A música é um organismo vivo, experienciando a sua existência nas condições que lhe são dadas pelo seu próprio corpo. “Porta Líquida” tem tudo que ver com a realidade cultural das nossas urbes contemporâneas, mas aquele picado guitarrístico de Delgado vem directamente do espólio do rhythm and blues, uma tendência musical nascida na passagem dos anos 1940 para os 50.

Melhor ainda: a faixa “Lugar sem Lugar” é introduzida por um contrabaixo com arco de aparência renascentista, ainda que sobre um “drone”electrónico vagamente indiano, lembrando uma tambura, para depois se metamorfosear numa balada quase folk e desta surgir um solo de guitarra do mais claro recorte psicadélico, num “mix” que anula temporalidades, geografias e gramáticas. Ouvimos algo assim antes, nestes exactos termos? Não. E com outros procedimentos, outras nuances, outras proporções, outras cores? Sem dúvida que sim. A novidade tem a medida do possível e é apenas esse pouco ou esse muito, dependendo da nossa imaginação e dos nossos hábitos auditivos, que lhe podemos exigir. Disse Carlos Barretto numa entrevista: «A tradição é a memória da própria história e conhecê-la prepara-nos para a revolução. As regras existem para serem quebradas, mas sem as conhecer não vamos a lado algum». O “não-lugar” enquadrado pela tradição e pela revolução é aquele em que se situam os Lokomotiv, não sendo, pois, nem tradicional nem revolucionário. É aquilo que é, em estáticas (porque subtis e sub-reptícias) metamorfoses.

Esse não-lugar pode ter o aspecto de uma marcha robotizada (“Arriba”, com a sua guitarra fortemente processada) ou um carácter cinematográfico (“Percorrupto”, com a mesma guitarra a mimetizar um dos lados de um diálogo entre personagens), assim como pode aludir, algo humoristicamente, a uma mobilidade de paquiderme (“Tangram” com o seu estranho ritmo de dança). Um lugar sem lugar é muitos lugares. É também o que encontramos nos três improvisos integrais deste disco (“Cair com as Mãos nos Bolsos”, “Corrida Lenta” e “Trapézio do Catrapázio”), todos eles dispensando partituras e todos eles diferentes. Se um soa como se Derek Bailey estivesse em busca de um ponto focal, em vez de se afastar dele como geralmente acontecia, outro é lírico e romântico sem ser propriamente introspectivo e o terceiro vem confirmar-nos, com o seu “loop” final, que só a repetição permite atestar o que não se repete. Vinte anos depois o comboio de Carlos Barretto ainda sobe a colina, como Sísifo, e o certo é que não queremos que chegue lá acima.

  • Gnosis

    Gnosis (Aduf)

    Lokomotiv

    Carlos Barretto (contrabaixo); Mário Delgado (guitarra eléctrica); José Salgueiro (bateria)

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