Flautas
Caminhos paralelos
Caligola Records
Enquanto Mark Alban Lotz (foto acima) se desdobra em concertos por Portugal e esperamos pela vinda de Robert Dick em Agosto, eis que nos chegam dois discos que têm a flauta (melhor dizendo: vários espécimes da família flautística) como protagonista. Um é de Lotz, o outro de Massimo De Mattia, dois herdeiros de Dick que estão a percorrer caminhos paralelos, mas diferentes.
Pode parecer estranho que a flauta ainda seja um instrumento secundário no jazz e na música improvisada, mas numa altura em que Lisboa conta com as presenças de Mark Alban Lotz (concertos a decorrer em Junho de um novo grupo formado com Nelson Cascais, Mode, e com outros, “ad-hoc”, em que o encontramos com alguns livre-improvisadores portugueses) e de Robert Dick (a solo no Jazz em Agosto que se avizinha) ficamos com a ideia de que assim não é. Lotz é um continuador, na Holanda, das pesquisas iniciadas na década de 1970 por Dick e dele foi publicado um importante disco este ano, “Food Foragers”, em duo com o percussionista Alan Purves. Curiosamente, quase em simultâneo saiu outro álbum de um flautista também influenciado pelo músico norte-americano, “Ethnoshock!”, este pelo grupo do italiano Massimo De Mattia, Suonomadre, que tem a particularidade de incluir o veterano Zlatko Kaucic, nascido na antiga Jugoslávia e com várias passagens pelo nosso país no seu historial.
Se a herança dickiana é um factor comum aos dois CDs, sobretudo no que diz respeito ao trabalho com as flautas baixo e contrabaixo, outro se destaca que não vem propriamente da influência de Robert Dick, estando neste mais implícito em certos recursos técnicos do que explícito na linguagem musical: uma semelhante interiorização de aspectos da world music. Semelhante no gesto, que não nas respectivas abordagens. Se no caso de “Food Foragers” o factor étnico está disseminado no tratamento dado aos materiais, numa espécie de tradicionalismo futurista, e nos arranjos de dois temas ancestrais do Mali, no de “Ethnoshock!” vem conceptualmente anunciado nas “liner notes” e no próprio título: o propósito é estabelecer um diálogo entre o “background” europeu dos músicos intervenientes e as culturas que, devido ao corrente fenómeno dos refugiados, lhes chegam do Sul do Mediterrâneo.
Curiosamente, e contra todas as expectativas (inclusive as decorrentes da instrumentação utilizada – a inclusão de um Fender Rhodes prefigura habitualmente um determinado tipo de sonoridade), das duas obras aquela que mais se aproxima da matriz “savant” em que surgiu alguém como Dick – em contramão, diga-se de passagem – é a de De Mattia, precisamente aquele que reivindica como referências o jazz e o rock flautísticos de Roland Kirk e Ian Anderson. Só a agitada sustentação rítmica diferencia “Ethnoshock!” do experimentalismo improvisado que directa ou indirectamente se inspira na música contemporânea, se bem que de modos não coincidentes com o que esperamos de algo com proveniência de África ou do Médio-Oriente. Aliás, é “Food Foragers” que nos presenteia com o “groove” que esperamos de algo conotado com o chamado world jazz e é este que evidencia um maior trabalho de produção – em linha com a música gravada de Dick.
São diversificadas as vias hoje percorridas pela flauta quando a improvisação é um recurso, mesmo que as práticas existentes tenham partido de iguais pontos nevrálgicos, e estão aqui dois magníficos exemplos disso. De Matti tem toda a razão quando diz que esta é uma música «libertária», pelo facto de «recusar os automatismos» e «não mentir nem simular»…
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Ethnoshock! (Caligola Records)
Massimo De Mattia Suonomadre
Massimo De Mattia (flautas piccolo, em dó, alto e baixo); Luigi Vitale (vibrafone, balafone, electrónica); Giorgio Pacorig (piano eléctrico Fender Rhodes, sintetizador Korg MS20); Zlatko Kaucic (bateria, percussão, electrónica)
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Food Foragers (Unit Records)
Mark Alban Lotz / Alan Purves
Mark Alban Lotz (flautas piccolo, em dó, alto, baixo, contrabaixo, preparada e bansuri, electrónica, voz); Alan Purves (percussão, objectos, brinquedos)