PUI4: “A Pearl in Dirty Hands” (AUT Records)
AUT Records
O nome PUI4 diz pouco sobre o que indica e talvez devamos começar por aqui: o grupo em causa é um quarteto de improvisação composto pelo clarinete baixo de João Pedro Viegas e o violino de Carlos “Zíngaro”, com o italiano Nicola Guazzaloca no piano e o uruguaio Alvaro Rosso no contrabaixo. Apesar de os estrangeiros deste disco serem figuras conhecidas, talvez não seja desperdício de caracteres apresentá-los: Guazzaloca tem uma enorme carreira pianística, com inúmeras colaborações internacionais em que se englobam nomes como os de Muhal Richard Abrams, Roscoe Mitchell, Anthony Braxton, William Parker, Barre Phillips e Tristan Honsinger, para só nomear uns quantos. Em paralelo, tem sido um dos grandes dinamizadores da Scuola Popolare di Musica Ivan Illich, de Bolonha. Alvaro Rosso estudou música em Montevideo, Buenos Aires e Estrasburgo, tendo sido em França que contactou com a improvisação livre. Desde essa altura que divide a sua carreira entre esta e a clássica, de há uns anos a esta parte estando fixado em Portugal.
São dois músicos com uma carreira musical importante, que se juntaram a “Zíngaro” e Viegas, nos Estúdios Namouche, em Lisboa, para gravar as sessões fixadas neste novo disco. Creio ser escusado ressalvar a importância do violinista e o seu reconhecimento internacional, mas é importante referir que Viegas intensificou nos últimos anos a sua dedicação à música, sendo hoje muito mais convicto e tecnicamente equipado. Com o quarteto devidamente apresentado e credenciado, é tempo de colocar o laser nos 10 temas que integram este disco. Todos eles são diferentes, mas constroem uma unidade global, muito por via da permanência da instrumentação acústica. Ouvido o CD de uma ponta à outra parece soar como um contínuo, se bem que, quando ouvimos cada faixa mais atentamente, percebemos que têm uma identidade própria e que, quase todas, se resolvem no final, fechando-se.
O disco instala-se com uma enorme elegância através de notas soltas do piano, cortadas pelo contrabaixo. Tudo parece fazer sentido quando o violino de “Zíngaro” descobre um processo de unir as ideias num todo coerente. Guazzaloca é quem decide conduzir nesta fase inicial e é dele que vão surgindo os maiores estímulos a mudanças; contudo, é Zíngaro quem consegue sempre arranjar um modo de integrar coerentemente os diferentes acontecimentos. Percebemos desde o início que o quarteto funciona muito bem: os músicos falam uns com os outros através da música. O clarinete baixo e o contrabaixo têm um sentido mais abstracto e as suas intervenções criam sons e fundos inesperados, enquanto o violino e o piano parecem sempre soar mais clássicos e reconhecíveis, definindo as ideias musicais de cada momento.
A audição continua sempre com este prazer de ouvir uma música superiormente criada: um grande espírito colaborativo, uma procura constante de sentido e de beleza e a ideia de que em cada momento os músicos têm coisas para contar. É muito recompensador, para o ouvinte, seguir estas pequenas histórias: Viegas inicia o sétimo tema com um arabesco nos graves do clarinete. O piano cria uma situação percussiva e o contrabaixo acompanha. O violino inverte o discurso grave e cria um chilreio que o clarinete baixo resolve acompanhar. O piano propõe uma saída para aquela situação aguda e o contrabaixo apoia. O jogo de intensidades é gerido com experiência, sem se cair nos ciclos típicos da improvisação livre: silêncio-crescendos-grito-silêncio. O tema resolve-se com uma frase belíssima no piano. A música é-nos dada, mas nós também temos de ir à procura dela. Não chega deixá-la passar.
A improvisação livre foi uma porta que se abriu para a música nos anos 60 do século passado e que, com o tempo, se transformou num idioma. Já fará pouco sentido falar de “música não-idiomática” quando somos imediatamente capazes de reconhecer a sua linguagem – mesmo quando, paradoxalmente, este idioma resultou da recusa de todos os outros. E a língua da música improvisada faz-se de muito mais do que dos sons. Faz-se em primeiro lugar de músicos que acreditam nos outros músicos. Que não se sentem superiores ou não procuram competir tecnicamente pelo seu destaque. É ainda feita por uma segunda fé, que é a de que juntos podem construir algo de novo, verdadeiro e belo. Parece pouco, mas não é: acreditar nos outros e do nada, em conjunto, criar alguma coisa é mesmo algo de heróico. Uma música feita de diálogos, de afirmações, respostas, ideias, destruição de ideias e ainda da capacidade de entrar numa espécie de transe, ouvindo e respondendo em simultâneo.
“A Pearl in Dirty Hands” é um grande disco de improvisação, muito bem tocado e gravado, destinado a todos quantos não se contentam em ouvir “fast music”. É para parar e ouvir com ouvidos racionais.
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A Pearl in Dirty Hands (AUT Records)
PUI4
João Pedro Viegas (clarinete baixo); Nicola Guazzaloca (piano); Carlos “Zíngaro” (violino); Alvaro Rosso (contrabaixo)