Albert Cirera / Abdul Moimême / Alvaro Rosso: “Dissection Room” (Creative Sources)
Creative Sources
Quando um disco tem um título alusivo como “Dissection Room”, que nos remete de imediato para a frase em que Lautréamont descreve um rapaz como um «encontro ao acaso, numa mesa de dissecção, entre uma máquina de serrar e um guarda-chuva», está implícita a recusa de aceitar passivamente que a música seja, entre todas, a única arte não-representativa. Regra geral, não passa disso mesmo, de uma negação “post-factum” motivada pelo facto de vivermos num tempo de confluência dos sentidos, mas quando determinada obra tem uma qualidade imagética especialmente forte, mais parecendo um “zoom” sonoro sobre uma cena imaginária, não temos outro remédio senão admitir a existência de uma música que, afinal, tem mesmo características visuais.
O curioso é que essa representatividade é tão maior quanto mais abstractas forem as peças, num processo inverso ao das artes plásticas, que representam menos quanto menos figurativas são: a sala e a mesa de autópsias (de desconstrução analítica de um corpo) em questão, que são aquelas também em que o Dr. Frankenstein “montou” a sua criatura, juntam o trio formado por Albert Cirera, Abdul Moimême e Alvaro Rosso a uma anterior tentativa de fusão sinestésica, a dos Nurse With Wound em “Chance Meeting on a Dissecting Table of a Sewing Machine and an Umbrella”, com resultados muito diferentes – os implicados pelas matrizes de que os dois álbuns partem, um (o que acaba de ser editado pela Creative Sources) a da música livremente improvisada, o outro (o mais remoto, de 1979) do rock experimental, mas com uma semelhante abordagem “cinematográfica”. Digo cinematográfica porque os processos imaginantes do ser humano têm mais que ver com o cinema do que com qualquer outra disciplina artística, algo que já era verdade muitos milhares de anos antes de o cinema ter sido inventado.
No meio de todas as anteriormente descritas inversões de termos e parâmetros, “Dissection Room” acrescenta outras: a guitarra eléctrica preparada de Moimême tem um carácter surpreendentemente acústico, talvez porque as suas preparações (as grandes chapas que coloca sobre as cordas) quase obliteram a guitarra, enquanto os saxofones de Cirera mais parecem sintetizadores, raramente cumprindo aquilo que esperamos desses instrumentos. No contrabaixo, Rosso tem como função equilibrar este mundo às avessas, lembrando-nos que o que aqui está é música de câmara composta no próprio instante da sua interpretação, uma cozedura de carnes que junta o malvado Maldoror ao ingénuo Adam de Mary Shelley.
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Dissection Room (Creative Sources)
Albert Cirera / Abdul Moimême / Alvaro Rosso
Albert Cirera (saxofones tenor e soprano); Abdul Moimême (guitarra eléctrica preparada); Alvaro Rosso (contrabaixo)