Ingrid Laubrock: “Contemporary Chaos Practices” (Intakt)
Intakt
Para recomendar este disco, e com a nota máxima, numa revista de jazz é preciso relembrar que, em tempos, aquilo que se chamou “third stream” tentou incorporar a música orquestral clássica no jazz (ou vice-versa, é difícil de dizer). O que temos neste novo disco é um processo semelhante, só que Laubrock não vai beber à mesma fonte. Também é uma peça orquestral, incorporando a improvisação e músicos de jazz, mas usa a linguagem da música contemporânea em vez da do século XVII. Faz todo o sentido, dirão, mas a coisa fica muito mais complexa. E certamente muito mais interessante.
Vivemos numa época muito particular, em que a maior parte das pessoas não ouve a música orquestral do seu próprio tempo. Um homem do século XIX ouvia Wagner; um homem do século XXI ouve Wagner. Os ouvintes e consumidores regulares de jazz e pop-rock actual podem desconhecer Salvatore Sciarrino, Helmut Lachemann, João Madureira ou Avet Terteriam. Ora, acontece que Ingrid Laubrock usa formas compositivas actuais, o que faz com que talvez seja mais justo chamar a esta música “fourth stream”: é a improvisação a dialogar com a música orquestral do século XXI.
Assim sendo, fica desde já o aviso: o rótulo “jazz” pode ser enganoso, especialmente para quem ficou parado no tempo ou para quem tem uma dieta exclusivamente à base de pop e derivados sem glúten. Chamar “jazz” a este disco é apenas uma forma de comercializar a música, que podia ser igualmente vendida como “música contemporânea” (ou “new music”, como agora é costume dizer).
Pedimos ajuda à saxofonista alemã residente em Brooklyn para o esclarecimento de várias dúvidas. Também ela concordou: «Colocaria o disco mais na caixa da “new music”, apesar das partes interactivas e improvisadas - a maior parte do que está em ambas as peças é totalmente notada.» Disse-nos ainda que, nos últimos anos, se tem interessado mais pela composição para grandes formações, o que explica este disco inaugural com tamanha qualidade: «Em 2012 participei no segundo Jazz Composers Orchestra Institute da UCLA, liderado pelo compositor / multi-instrumentista George Lewis. O resultado foi a primeira versão de “Vogelfrei”, composta e interpretada pela American Composers Orchestra. Em 2014 revi a peça para incluir secções para interacção com improvisação, além da escrita para vozes. Esta segunda versão foi tocada na Roulette, em Brooklyn, pela Tricentric, uma orquestra dedicada ao trabalho de Anthony Braxton e de outros compositores que lhe são próximos.»
O disco que temos em audição foi a resposta à encomenda do Moers Festival. A primeira versão foi tocada pela orquestra EOS, conduzida por Susanne Blumenthal em 2017. Além da orquestra, a peça inclui o cornetista Taylor Ho Bynum como um dos maestros, mais os solistas Nate Wooley, Mary Halvorsosn, Kris Davis e a própria Ingrid Laubrock. O título – “Práticas Contemporâneas do Caos” - refere-se, segundo a compositora, «a um tipo de sortilégio que enfatiza a criação através de métodos não ortodoxos, o individualismo e ainda a aceitação de uma abordagem pouco ortodoxa baseada numa espécie de fé». Acrescenta ela: «Pareceu-me que se estabelecia assim um paralelo com a modo como componho, toco e penso.»
A música que ouvimos no álbum assenta em duas estruturas: uma composta e uma improvisada. A improvisação usa partes orquestrais interactivas (com o solista e a compositora) que são modeladas no momento pela condução. Para que este engenho complexo funcione, Laubrock usou dois maestros capazes de perceber bem as intenções da saxofonista: Eric Wubbels para as partes compostas e Taylor Ho Bynum para as secções interactivas.
Ao observarmos as pautas que a compositora nos enviou notamos que alguns dos fundos que sustentam a improvisação são escritos (instrumentos de sopro, bombo, metais), mas podem ser tocados sempre que os músicos quiserem, havendo por isso também alguma liberdade e imprevisibilidade nas estruturas orquestrais. Na partitura podemos observar que a instrução para uma das partes de cordas é «condutor 2 conduz fundos de cordas; folha separada». Nesta separata há descrições numeradas de sons, como notas longas, ruídos, etc., que Bynum pode utilizar em reacção ao que faz o solista (neste caso, a própria Laubrock). A partitura diz que «as cordas tocam formas circulares / seguem o condutor para a forma» («strings play swirls / follow conductor for shape»), deixando depois o saxofone sozinho para uma cadência.
Laubrock dá-nos mais pistas para a compreensão do projecto: «A minha música tende a incorporar a improvisação e a composição em várias camadas, e interessou-me tentar desvanecer as fronteiras entre as duas formas. Quando componho, muitas vezes começo intuitivamente. Ouço um trecho internamente e anoto o gesto e o contorno geral dessa peça, muito rapidamente, numa folha de escrita para orquestra. Faço-o com palavras, gráficos, alguma notação musical e uma breve descrição.» Por vezes é, inclusive, adicionada uma foto evocativa. «Trata-se da captação impulsiva de uma ideia. Depois, esculpo os detalhes; não é muito diferente do modo como imagino que um escultor possa funcionar.»
O resultado ouvido é muito mais interessante e rico do que estas palavras conseguem descrever. A música de Laubrock é belíssima, com um equilíbrio notável entre os detalhes e a composição global: «Vou e volto entre os pontos finos e o quadro maior para ter a certeza de que há coesão geral. Outra técnica que me traz de volta ao lugar intuitivo é cantar frases até que as sinta ritmicamente como parte de mim e como algo de pessoal.» O que explica o sentido melódico estranho no meio de formas muito abstractas e texturais. «Tenho mantido diários de sonhos há anos, porque gosto imenso de ter acesso ao meu lado surreal, que também usei como inspiração inicial para a composição.»
Ficamos com um disco particularmente estimável. Daqueles que vamos querer manter toda a vida para a ele regressar frequentemente. Este é um jazz culto, que vive no seu tempo e com ele dialoga, capaz de usar os elementos mais sofisticados numa procura de beleza. Fundamental.
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Contemporary Chaos Practices (Intakt)
Ingrid Laubrock
Ingrid Laubrock (saxofones soprano e tenor); Nate Wooley (trompete); Mary Halvorson (guitarra eléctrica); Kris Davis (piano) + orquestra de 43 elementos conduzida por Eric Wubbels e Taylor Ho Bynum