Ferran Fages / Albert Cirera: “Aliatge” (Multikulti Project)
Num disco que alude à metalurgia e à aplicação nos metais das leis da termodinâmica, a abordagem aos sons por parte dos catalães Ferran Fages (um habitual colaborador de Alfredo Costa Monteiro, português há muito radicado em Barcelona) e Albert Cirera (companheiro de estrada e estúdio de muitos músicos nacionais, ainda que tenha trocado Lisboa por Copenhaga como cidade de residência) só poderia ser alusiva. Mesmo sabendo que a música é a única arte não representativa, o guitarrista e o saxofonista preferiram descrever os processos físicos e químicos em causa por outros meios que não os musicalmente normatizados. Para tal, foram beber referências à única corrente da música do século XX que não é instrumental: a “musique concrète” tal como a conceberam Pierre Schaeffer e Pierre Henry, exclusivamente criada por meio de manipulações em fita magnética. Nela, e não nas suas descendentes electroacústica e acusmática, que já recorrem ao computador, encontraram Fages e Cirera o tipo de primarismo de que necessitavam para alimentar a autenticidade sonora que queriam dar a este “Aliatge”.
O concretismo era definido pela obliteração das fontes de que provêm os sons com o fim de os libertar de conotações racionalizáveis, e é precisamente isso o que fazem os dois intervenientes deste disco de uma tendência musical, a improvisada, que está nos antípodas da música gravada – o que é, pelo menos, irónico. Se, no caso, somos informados pela contracapa de que todos os materiais foram criados por uma guitarra eléctrica e por um de dois saxofones, o tenor e o soprano à vez, é para melhor ficarmos cientes do quanto os léxicos e as propriedades sónicas da guitarra e dos saxofones não coincidem com os que reconhecemos habitualmente como seus. Na encenação concretista a que se procede a guitarra faz-se pronunciar como uma massa metálica em formatação e os saxofones mimetizam os processos que são infligidos à primeira, num jogo entre os princípios da transformação e da resistência que explicam a tensão musical existente e o sentido de fluxo das peças, transmitindo-nos até a impressão de que mesmo uma música concreta pode ser “groovy”. Ora aqui está um convite muito agradável a que se discuta o tema da improbabilidade na arte…