Alforjs: “QorusQoros” (Sucata Tapes)
Sucata Tapes
O saxofone da abertura parece anunciar algo em jeito de rhythm ‘n’ blues. Depois, o mesmo sax torna-se espinhoso e ficamos com a impressão de que quem o toca pode ser Steve Mackay, o homem que fez da canção “L.A. Blues”, dos Stooges de Iggy Pop, o hino do punk-jazz que hoje é. Nada disso se confirma uns minutos depois. A mesma frase aos tropeções vai-se repetindo, com ligeiras variantes, suportada por um contrabaixo tocado com arco e, finalmente, pelos pratos de uma bateria. O tema é uma serpente em perseguição da sua própria cauda e provoca uma sensação de vertigem pela forma como, exactamente com os mesmos motivos, toma ora uma dimensão épica, ora intimista. Intitula-se “Nossa Senhora” e é a aplicação pelos Alforjs de Mestre André, Bernardo Álvares e Raphael Soares de uma recomendação de John Cage: «Se a música se tornar monótona, toquem-na até que deixe de o ser.» No final é isso mesmo que acontece, numa explosão que nos lembra Albert Ayler, mas a emparceirar com monges de um templo do Tibete erigido no meio das nuvens.
“Oroboros”, a faixa seguinte, aterra em plena selva tropical (um “leitmotiv” do trio, que dedicou um álbum anterior, “Jengi”, ao deus da floresta com o mesmo nome), mas em vez de ouvirmos o canto dos pigmeus, surgem animais, num alvoroço em protesto contra o rumor electrónico de um ambiente de ficção científica. “Pedra D’ayah” é meio melopeia infantil, meio ritual xamânico – imaginamos gente pequena a balançar os corpos à volta de uma fogueira, até repararmos que nenhum dos bailarinos é humano. O segundo “Oroboros” do alinhamento é uma tradução do conceito de entropia, com o tal ambiente artificial de uma floresta a desmoronar-se ruidosamente. Continua então “Pedra D’ayah”, lembrando agora, e em simultâneo, uma marcha campestre de funeral no Japão e uma dança de bobos da Idade Média, munidos de pandeiretas e flautas. Volta “Oroboros”, e desta feita em “glitches” sintéticos: os macacos e papagaios de antes eram, afinal, seres robóticos já em disfunção.
“Pharopha” começa com um contrabaixo reminiscente do de Sirone no Revolutionary Ensemble, até deixar de o ser pela reiteração “funky” do padrão rítmico introduzido, com um fundo em “drone” e percussão comentativa. Funciona como um interlúdio em direcção a nada, num movimento feito por elipses que se vão apertando à volta de um centro imaginário. O final “Oroboros” é silêncio: o centro está vazio. Ao seu terceiro título, os Alforjs desmontam a sua própria cartilha. É difícil imaginar o que poderá suceder a esta desmistificação das coordenadas que conduziam o grupo. Estes três rapazes não facilitam as suas vidas no propósito de nos encantarem…
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QorusQoros (Sucata Tapes)
Alforjs
Mestre André (saxofone tenor, electrónica, voz); Bernardo Álvares (contrabaixo, voz); Raphael Soares (bateria, percussão, voz)