O Carro de Fogo de Sei Miguel
Cenário e personagem
Clean Feed
Este é um disco que é também uma banda e uma música, e tanto cenário como personagem. Sei Miguel foi desenvolvendo um projecto de jazz de fusão com a sonoridade dos «órgãos infiltrados nas guitarras» de algum rock e o primeiro resultado em disco está, finalmente, aqui. Um LP excepcional, que se junta aos discos essenciais de música portuguesa que só se podem ouvir em vinil.
A frase mais irritante que permanece na crítica a Sei Miguel é «o segredo mais bem guardado da música portuguesa». Diz o mito que esta maldição foi lançada por Dan Warburton na revista The Wire, em 2005, numa recensão sobre o disco “The Tone Gardens”. Condenar um músico a ser um segredo é talvez a forma mais cruel de o silenciar. A Clean Feed tem sido fundamental para colocar os músicos portugueses no contexto internacional, ao editá-los a par de nomes conhecidos dos circuitos mundiais. Esta edição pela “label” da Parede é mais um passo para anular o enguiço tão frequentemente repetido.
Há vários discos essenciais da música portuguesa que só se podem ouvir em vinil. O “FMI” de José Mário Branco, o “Divergências” da Ama Romanta, o “Projecto Ena Pá 2000 Project!” dos Ena Pá 2000, o “Malpertuis” de Rão Kyao, o “Off-Off” dos Telectu e alguns mais. Junta-se agora este “O Carro de Fogo de Sei Miguel”, um disco igualmente excepcional. Este LP fixa a gravação inicial deste grupo / tema, feita em estúdio e com excelente som. Quem o quiser ouvir vai ter de arranjar maneira de tocar este CD antigo num leitor de vinil.
Como dissemos, “O Carro de Fogo de Si Miguel” é um disco, uma banda e uma música. Explicado o disco, vamos à banda. A vontade realizou-se em 2010 num concerto em Serralves. Assentava na vontade de Sei Miguel de ter um grupo, como é tão normal no universo rock. Um grupo com músicas próprias e que funcionasse como uma família. O carro começou por ser um sexteto, com John Klima, Pedro Gomes, Rafael Toral, César Burago e Luís Desirat. Na segunda vida da banda entraram Pedro Lourenço, Fala Mariam e Nuno Torres, saindo John Klima. Mais uma vez renovado, O Carro de Fogo fez depois entrar Guilherme Rodrigues e sair Pedro Gomes, Rafael Toral e César Burago. Chegámos finalmente à quarta encarnação, licenciada em 2017 e que agora ouvimos em disco: um octeto com Bruno Silva no lugar de Pedro Gomes.
O Carro está, portanto, sempre em actualização, mas é também sempre a mesma coisa; recebe instruções precisas de Sei Miguel sobre as partes e as funções de cada um, ensaia semanalmente na Rua da Rosa no Bairro Alto e assume-se colectivamente – na tradição do rock – para tocar a música do líder.
Sumariada esta questão vamos à música. “O Carro de Fogo de Sei Miguel” é uma peça musical em cinco movimentos, com pauta gráfica e a duração aproximada de 50 minutos (dividida em duas partes pela obrigação técnica do vinil). É mais uma peça para perceber o micro-universo musical criado pelo trompetista, feita para um grupo que milita na sua música. Assume-se como música de fusão, numa ideia aberta em que vivem bandas como Weather Report, Hot Tuna ou Jefferson Airplane. Música solar num único tema longo, que funciona simultaneamente como cenário e personagem.
Como nos diz Sei Miguel, a composição em causa tem «o espírito e as obsessões canónicas» da escrita orquestral para grandes formações, mas adaptada à ideia de um grupo de rock. Inscreve-se na cultura de bandas que o marcaram na juventude devido aos seus «órgãos infiltrados nas guitarras», como Steppenwolf, Grateful Dead ou Allman Brothers.
Esta ideia, passada pelo filtro cerebral de Sei Miguel, transforma-se numa espécie de blues ambiental, de movimentos largos e sem angústias. Um blues-raga ascético, que viaja para um mundo cósmico e onírico; um blues mortonfeldmaniano em que cada nota conta tanto como o espaço entre elas. Um blues transparente. Mutabilidade e rigor parecem ser os elementos estruturantes da música, que vive na procura de um equilíbrio formal e estilístico. Soa com elementos mínimos, pequenas unidades, contida, com o propósito de dizer pouco, mas dizer bem. O baixo de Pedro Lourenço tem um papel muito importante na colagem de todos os instrumentos e na construção de uma melodia estruturante que nos transporta por toda a peça e pelos diferentes acontecimentos. A música é colectiva, mas cada músico parece pegar numa parte, trabalhando-a e entregando-a de seguida ao grupo, transformada num processo próximo do do “cadavre esquis”.
«As pessoas têm duas ou três ideias durante a vida, não têm mais», afirma Sei Miguel e o seu conceito é singular e forte. Quando o aplica numa música – neste caso no rock –, o resultado é uma mistura única que não conseguimos ouvir em mais lado algum e que abre várias portas a músicos que trabalham neste contexto de elementos mínimos, com valorização do som e do silêncio. É uma teia de referências tiradas de inúmeros centros de cultura, inseparável do processo de leitura operado por Sei Miguel. Dentro daquilo que conhecemos como “a música do Sei Miguel”, esta peça – ou melhor, a gravação feita desta peça para este disco - é uma obra especial, de uma beleza muito particular.
Este é o disco que eu escolheria para apresentar, a quem não a conhece, a música do trompetista.
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O Carro de Fogo de Sei Miguel (Clean Feed)
Sei Miguel
Sei Miguel (trompete de bolso, composição, arranjos, direcção); Fala Mariam (trombone alto); Nuno Torres (saxofone alto); André Gonçalves (órgão); Bruno Silva (guitarra eléctrica); Pedro Lourenço (baixo eléctrico); Luís Desirat (bateria); Raphael Soares (percussão)