Dave Douglas / Uri Caine / Andrew Cyrille: “Devotion” (Greenleaf)
Greenleaf
Cinco anos após o notável “Present Joys”, o trompetista Dave Douglas (n. 1963) e o pianista Uri Caine (n. 1956) – companheiros de jornada pelo menos desde que o segundo se distinguiu como membro do celebrado sexteto (mais tarde quinteto) do primeiro, nos anos 1990, e depois em inúmeras colaborações – voltam a mergulhar na bicentenária tradição coral protestante “A Harpa Sagrada”, surgida na Nova Inglaterra e depois levada e desenvolvida no sul dos Estados Unidos durante o século XIX.
Desta feita, porém, os dois músicos surgem acompanhados pelo veterano baterista Andrew Cyrille (n. 1939), cuja presença decisiva acrescenta toda uma dimensão nova à música, completando a geometria ideal. “Devotion” consegue um feito nem sempre logrado em discos que juntam personalidades vincadas: apesar de a liderança ser claramente assumida por Douglas – que assina nove das dez peças –, não há aqui atropelos ou imposições. O que se escuta revela o perfeito equilíbrio entre as idiossincrasias de três músicos que bem conhecem os meandros da interação criativa.
Note-se a reiterada presença de Cyrille em contextos de trios sem contrabaixo, como foi também o caso de “Lebroba”, brilhante disco editado no ano passado onde se juntou a outro superlativo trompetista, Wadada Leo Smith, e ao guitarrista Bill Frisell. Apesar do alargamento da formação, a abordagem de base permanece intacta, visando a exploração criativa do hinário cantado “a cappella” em cerimónias religiosas, subtraído de qualquer réstia de austeridade puritana.
As peças são dedicadas a figuras que marcaram, musical e culturalmente, o trompetista, sem que tal encontre necessariamente respaldo na música dos(as) visados(as). “Curly”, dedicada ao comediante Jerome Horwitz, aka Curly Howard, um dos Três Estarolas, inicia o disco em alta rotação, com o piano em regime “stride”, percussivamente desenfreado, em diálogo com a bateria. A ausência de contrabaixo ajuda a focar a atenção na bateria, o que permite absorver em dose mais significativa a importantíssima contribuição de Cyrille. Douglas está ausente, e, dado o tanto que acontece nestes pouco mais de quatro minutos, conclui-se que nem precisou mesmo de lá estar.
De atmosfera inicialmente mais sombria, “D’Andrea” – tributo ao pianista e compositor italiano Franco D’Andrea –, deixa entrar a luz quando Douglas explora aquele trompetismo eficaz que lhe reconhecemos, com um pé no pós-bop e outro no free. A dado momento, Caine parece tomar conta das operações antes de emergir um longo solo de Cyrille, com pouco mais do que um címbalo. A utilização da surdina em “Francis of Anthony” confere à peça uma aura contemplativa, mas Caine e Cyrille parecem apostados em colori-la com tons mais vibrantes.
Em “Miljøsang” cozinha-se um funk em lume brando, assente num motivo explorado por Douglas. “False Allegiances” parece ser devedora da abordagem de Carla Bley – sobretudo em termos de estrutura –, transportando-nos para os bares de Nova Orleães dos alvores do jazz, com Caine exímio a desenhar a linha de baixo com a mão esquerda e, com a direita, emparelhando exemplarmente com o trompete. É talvez em “Prefontaine” – dedicada ao atleta olímpico de longas distâncias Steve Prefontaine, falecido em 1975 com apenas 24 anos de idade – que o trio se aventura em territórios mais livres, com o trompete sinuoso a imiscuir-se na telepatia entre pianista e baterista. Atente-se ainda na carga espiritual de “Pacific” e na forma magistral como Douglas gere o recato. “Rose and Thorn” evoca o pianismo efervescente de Mary Lou Williams e em “We Pray”, outra delicada balada, as linhas luminosas desenhadas pelo trompete cruzam-se com o piano amplo e a percussão de filigrana.
Funcionando como resumo da matéria dada, “Devotion” (peça escrita em 1818 por Alexander Johnson) é o magnífico epílogo de um disco onde ninguém brilha à sombra dos louros. Pleno de sensibilidade, este é um disco em que nada é previsível e que, amiúde, deslumbra.
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Devotion (Greenleaf)
Dave Douglas / Uri Caine / Andrew Cyrille
Dave Douglas (trompete); Uri Caine (piano); Andrew Cyrille (bateria, percussão)