Isabel Rato: “Histórias do Céu e da Terra” (Nischo)
Nischo
Não são os meses decorridos desde o seu lançamento que retiram importância ou negam um escrito a propósito de “Histórias do Céu e da Terra”, o segundo registo em nome próprio de Isabel Rato (n. 1981), pianista, compositora, arranjadora e produtora (e também letrista e cantora, embora não aqui neste último caso). Nele são confirmados e ampliados os predicados demonstrados no registo de estreia, “Para Além da Curva da Estrada”, editado em 2016 pela Sintoma Records, quer enquanto instrumentista valorosa, quer, e sobretudo, enquanto compositora de evidentes qualidades.
Com um passado formativo na música clássica, veio a licenciar-se em Piano Jazz pela Escola Superior de Música de Lisboa, tendo como mestre o pianista João Paulo Esteves da Silva, influência que, aliás, ressalta claramente percetível, direta ou indiretamente, em muito do que se escuta nesta coleção de peças. Ao longo do seu percurso, Isabel já teve ensejo de colaborar com muitos dos nomes mais relevantes do jazz nacional, um rol de oportunidades que aproveitou para sintetizar uma abordagem musical abrangente, na qual balança criteriosamente o material escrito com espaço de manobra para a improvisação.
A sua escrita permeável e elegante funda-se na confluência de elementos provenientes de vários territórios musicais, que vão do jazz (a trave mestra) à música erudita (as raízes), passando pela pop (mundo que continua a interessá-la) e pela rica tradição folclórica portuguesa. Guiou-a neste processo evolutivo a busca pela liberdade, através da improvisação, e a vontade de explorar mais a fundo as estruturas complexas a que o jazz a expusera. Também de realçar a atenção que Isabel Rato atribui à palavra, sempre em português, com Fernando Pessoa no cume das inspirações: depois de no primeiro disco ter musicado o heterónimo Alberto Caeiro, agora é a vez de Ricardo Reis e do poema “Segue o Teu Destino” (A realidade / Sempre é mais ou menos / Do que nós queremos. / Só nós somos sempre / Iguais a nós-próprios), palavras escolhidas pela autora para lidar com a dor da perda do pai.
Em “Histórias do Céu e da Terra”, Isabel Rato reúne um quinteto base de músicos competentes e de créditos firmados no panorama nacional, como o saxofonista João Capinha, o contrabaixista João Custódio, o baterista Alexandre Alves e o cantor João David Almeida. Como convidados surgem o Quarteto Arabesco – decisivo para acrescentar espessura a muitos dos arranjos –, as cantoras Beatriz Nunes e Elisa Rodrigues, o acordeonista João Barradas e o guitarrista João Rato (irmão mais velho de Isabel e o responsável primeiro por esta ter prosseguido uma carreira musical).
O álbum inicia-se com o tema-título, espécie de unificador conceptual, que conta com a participação do acordeão caloroso de João Barradas, em relação empática com o resto da formação. “Vem” é uma peça serena de sabor clássico, com voz (e letra) de Elisa Rodrigues, explorando aqui uma outra vertente da colaboração próxima que ambas vêm mantendo, e que já deu frutos, por exemplo, no duo Veia, estreado em outubro de 2018, e na leitura de “Estranha Forma de Vida”, incluída em “Com que Voz – Uma Canção para Amália”, disco de homenagem a Amália Rodrigues.
“Das Nuvens” conta com a voz de João David Almeida, que também se escuta, e de forma porventura mais interessante, em “Passagem”, neste caso sem recurso a palavras. A intensa carga emocional de “Terra Sem Ar”, da autoria do pianista e compositor Luís Barrigas – peça inspirada pela tragédia dos incêndios de 2017 – é o substrato ideal para a voz magnífica da sempre surpreendente Beatriz Nunes, afagada pelas cordas do Quarteto Arabesco.
“Mar”, balada majestosa de João Rato pontuada pela guitarra do próprio, e “Solstício”, com um lindíssimo arranjo de feição mais clássica e do qual emana um soberbo solo de João Capinha no saxofone soprano (para estes ouvidos, Capinha é o melhor executante deste instrumento no jazz nacional), são dois dos momentos mais reconfortantes do disco. “Linho Mourisco”, um tema tradicional português especialmente arranjado e re-harmonizado, traz de vez à tona a portugalidade que perpassa todo o disco.
“Histórias do Céu e da Terra” volta a atestar, se necessário fosse, os talentos e a importância crescente de Isabel Rato no jazz nacional e vinca a necessidade de lhe seguirmos atentamente os passos.
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Histórias do Céu e da Terra (Nischo)
Isabel Rato
Isabel Rato (piano); João David Almeida (voz); João Capinha (saxofones soprano, alto e tenor); João Custódio (contrabaixo); Alexandre Alves (bateria) + Quarteto Arabesco: Denys Stetsenko (violino), Raquel Cravino (violino), Lúcio Studer (viola), Ana Raquel Pinheiro (violoncelo) + Beatriz Nunes (voz); Elisa Rodrigues (voz); João Barradas (acordeão); João Rato (guitarra elétrica)