The Art of Song Vol. 1: When Baroque Meets Jazz

Rita Maria / Filipe Raposo: “The Art of Song Vol. 1: When Baroque Meets Jazz” (Roda Music)

Roda Music

António Branco

Em “O Aprendiz Secreto”, António Ramos Rosa (1924-2013) refere-se ao momento em que se impõe a «tarefa de unificação das formas e a circulação viva dos contrários». Este fascínio pelos diálogos entre universos aparentemente disjuntos, mas que se aproximam e distanciam desafiando as leis do espaço e do tempo, parece ser o mote para “The Art of Song Vol. 1: When Baroque meets Jazz“, disco que volta a reunir a cantora Rita Maria e o pianista Filipe Raposo, ambos também compositores por direito próprio, após “Live in Oslo” (Lugre, 2018).

Rita Maria é senhora de um canto límpido e versátil, tão à-vontade quando trabalha as palavras ou quando delas prescinde. Filipe Raposo, melodista por excelência, é um músico de visão ampla e que busca burilar criativamente os materiais sonoros que o rodeiam, sejam eles provenientes da tradição erudita, do jazz e da improvisação ou do cancioneiro tradicional de diferentes latitudes, desígnio, aliás, partilhado por ambos.

Neste novo disco – com chancela da coimbrã Roda Music – o duo foca-se na interpelação do universo musical formal do período barroco – influenciado e influenciador –, explorando de forma aberta as estruturas musicais, tanto nos seus elementos basilares como em tudo o que se dissimula nos interstícios, criando laços com a espontaneidade e a liberdade estilística tão caras à improvisação e ao jazz. «Quando em 2020 decidimos trabalhar este tema, trazemos connosco todo um passado estético que nos molda, mas também trazemos uma contemporaneidade que liga esse passado ao presente. Assim, este disco é uma visão subjetiva deste período, que partilha também com a música improvisada muitos dos seus princípios fundamentais estruturais», diz o pianista à jazz.pt.

«Gosto de pensar que a barreira entre a chamada música erudita de tradição europeia e outros géneros musicais como o jazz e a música tradicional é cada vez menor. A elasticidade deste material permite que seja usado em contextos muito distintos», acrescenta. Premissa que é reforçada por Rita Maria: «Abordar essa diversidade, através do nosso denominador comum do jazz e da improvisação, foi o desafio que assumimos.»

O olhar que lançam é, de facto, abrangente: estão representados o barroco alemão (Johann Sebastian Bach), inglês (Henry Purcell), italiano (Giovanni Battista Pergolesi e Arcangelo Corelli) e francês (Jean-Philippe Rameau). Para além de referências incontornáveis, com geografias próprias e abordagens musicais diversas, são igualmente figuras importantes para Rita Maria e Filipe Raposo, seja por terem estado presentes no seu percurso académico ou por fazerem parte das suas memórias afetivas. «Cada um destes compositores possui características composicionais distintas, como o gosto melódico e harmónico. No entanto, uma das características transversais é precisamente o gosto pela improvisação – eram excelentes improvisadores», sublinha Raposo.

“Les Sauvages”, a famosa “entrée” final da ópera-ballet “Les Indes Galantes” de Rameau, estreada em 1735, surge aqui com voz, piano e sons da natureza, numa apropriação que inaugura esta coleção de peças de forma radiosa. Purcell é o compositor mais representado. Desde logo por uma belíssima versão de “Dido's Lament” – a imorredoura ária “When I Am Laid in Earth" da ópera “Dido e Eneias” –, impecavelmente cantada por Rita Maria. Resiste ao tempo a dor lancinante que se liberta das palavras: «Remember me, remember me, but ah! forget my fate.» A dupla põe à prova a intemporalidade de “Music for a While”, mas onde surpreende verdadeiramente é na transfiguração de “Welcome to All the Pleasures (Here the Deities Approve)”, composição de 1683, a primeira de uma série que Purcell escreveu em honra da santa padroeira da música, Santa Cecília, e que aqui ganha contornos de peça da Broadway (as palavras não poderiam ser mais conformes: «All the talents they have lent you / All the blessings they have sent you / Pleas'd to see what they bestow / Live and thrive so well below.»)

Rita Maria e Filipe Raposo perseveram na ligação à música de cariz popular – na mais nobre aceção da expressão – oferecendo leituras de temas portugueses e de “Svenska Polska”, tema proveniente da tradição sueca (país onde Raposo residiu e este projeto começou). As características melódicas, harmónicas e rítmicas das peças servem de ponto de partida para a sua exploração, num processo em que as tornam suas, também.

A combinação virtuosa de todas estas dimensões é especialmente patente nas Suítes I e II, onde a dupla atravessa os vários territórios sonoros de forma tão natural quão coerente. Avulta a “Suíte II” (ponte entre o sagrado e o profano), que se inicia com uma “Ouverture” (composta por ambos), a que se segue um trecho inspirado numa “ladainha” tradicional trauteada pela “Ti” Catarina Chitas, que «no final da sua existência, entretida nos confins da sua memória, perdeu-se das palavras, trabalhando no seu tear», revela-nos a cantora.

Segue-se uma leitura muito particular do hino “Von Gott will ich nicht lassen” (“Eu Não Devo Abandonar Deus”), de Bach, que parte de um coral da segunda metade do séc. XVII e é baseado em jogos contrapontísticos, aqui retomados, que servem de antecâmara para “Já Lá Vem a Manhã Clara”, tema tradicional beirão superlativamente interpretado. Filipe Raposo exibe o seu pianismo melódico, mas sempre desafiador, em peças de atmosferas tão contrastantes como “Sangue & Fogo”, vibrante, e na beleza etérea de “The Mournful Song (Pulcinella)”, de Pergolesi, via Igor Stravinsky. “Dança ao Sol”, tema composto pela cantora propositadamente para este disco, é outro notável momento.

A menção a “Vol. 1” deixa no ar a ideia de que haverá continuidade. É Rita Maria quem levanta a ponta do véu: «Cada volume dedicar-se-á à exploração de um desses universos estéticos dos quais bebemos, sempre com uma proposta de apropriação, uma busca por nova linguagem, que ganhe expressão nos arranjos e nos temas originais.»

Aqui está um disco que é um raio de luz nos tempos plúmbeos que vivemos.

  • The Art of Song Vol. 1: When Baroque Meets Jazz

    The Art of Song Vol. 1: When Baroque Meets Jazz (Roda Music)

    Rita Maria / Filipe Raposo

    Rita Maria (voz, composição); Filipe Raposo (piano, composição)

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