No Nation Trio: “Habitation” (Phonogram Unit)
Phonogram Unit
A Phonogram Unit é uma editora gerida por um coletivo de músicos (José Lencastre, Hernâni Faustino, Vasco Furtado, Jorge Nuno e Rodrigo Pinheiro) que pretende editar de acordo com as condições e tempos por si definidos, liberta das grilhetas impostas pelos convencionalismos da “indústria”. Sem qualquer ingerência ou limitação ao processo criativo e de distribuição, a editora visa cobrir um território estético de complexo mapeamento, que abrange as áreas das músicas improvisada, eletroacústica e experimental.
E eis que o selo frutifica pela segunda vez. “Habitation” é o registo de estreia do No Nation Trio, grupo que representa dois quintos do núcleo duro, o guitarrista Jorge Nuno e o contrabaixista Hernâni Faustino, a que se junta o baterista e percussionista João Valinho, todos nomes relevantes da efervescente cena lisboeta das músicas criativas.
Jorge Nuno tem-se destacado pelo trabalho que vem desenvolvendo nos Signs of the Silhouette e nos Dead Vortex, numa matriz de alta voltagem e forte travo psicadélico, mas que também se deixa atrair pelos domínios incertos da improvisação, experimentada em projetos como Uivo Zebra (com Faustino no baixo elétrico e João Sousa na bateria). Nuno reitera aqui a aposta numa vertente acústica, tal como aliás já havia feito em “ākāśa”, registo deste ano com os mesmos Sousa e Faustino, a que se junta o saxofonista José Lencastre (também em percussão e voz).
Faustino movimenta-se há muito no circuito do jazz de vanguarda e da música livremente improvisada, marcando indelével presença em inúmeros projetos (com o Red Trio à cabeça) que se estendem do noise ao reducionismo, passando pelo pós-bop, pelo free jazz e por outras vertentes. João Valinho é um jovem músico em ascensão, adquirindo proeminência em diversas formações, sendo exemplo as que integra com o mesmo Lencastre (escute-se cuidadosamente a sua contribuição para o notável “Anthropic Neglect”, acabado de sair na Clean Feed e já recenseado na jazz.pt pela pena sempre certeira do Gonçalo Falcão) e com Ernesto Rodrigues, Miguel Mira, Maria do Mar, Helena Espvall, João Almeida ou Mariana Dionísio.
Se no trio Uivo Zebra o volume tem uma importância central, outras possibilidades se começaram a vislumbrar na cumplicidade entre guitarrista e baixista. «Um dia desafiei o Jorge para fazermos um trio completamente acústico e sem recurso a qualquer tipo de efeitos, apenas um contrabaixo e uma guitarra acústica. O desafio era improvisar e tentar aguentar as matérias e motivos que surgiam e transformá-los abordando este processo de uma forma “micro” durante a nossa improvisação», revela-nos Faustino. Não demorou o convite a João Valinho para se lhes juntar, «porque achamos que ele era um polo importante, dadas as suas valências como músico criativo, sendo o baterista/percussionista ideal para tocar connosco», acrescenta o contrabaixista.
Quando o SARS-CoV-2 já andava por aí a preparar-se para virar as nossas vidas do avesso, o trio entrou no estúdio Namouche, para com Joaquim Monte (nome decisivo para o resultado final de tantas e tantas gravações) registar uma música em que nos é possível descortinar os mais subtis pormenores. A instrumentação é “clássica” – uma guitarra acústica, um contrabaixo, percussões diversas – e os três improvisadores trazem consigo os seus arsenais de referências, mas jamais se enquistam neles.
Constituem “Habitation” quatro peças/partes totalmente improvisadas, “Untitled” (I-IV), como que “andamentos” de uma suíte única, nos quais o trio explora os recantos desta geometria pitagórica, simples apenas no contingente, mas muito propensa a interações e desafios tão próximos quanto livres. Nas palavras do baterista e percussionista, a agregar conceptualmente estas partes está a «ideia de exploração de um território em que não há as limitações artificiais da soberania, do estado, do mapa. Daqui advém não apenas o título do álbum, em que se concebe a habitação como toda a Terra, mas também o do projeto.»
A música que nos é dada a escutar ergue-se a partir de estímulos e entrosamentos, proações e reações, num laborioso tricotar de ideias em que tanto pesa o som orgânico dos instrumentos como o silêncio que se insinua nos seus interstícios. Avulta a forma inteligente como o trio burila pequenos motivos que gradualmente vão ganhando corpo ou, noutros momentos, assume situações onde a repetição é processo fundamental para o desenvolvimento das estruturas e a injeção de tensão nas improvisações. «Funcionamos com uma abordagem de construção e desenvolvimento paulatino das ideias musicais, numa espécie de união em massa, com toda a variação que a improvisação livre permite. Mais do que combinado, foi algo que foi surgindo e que se discutiu através do trabalho continuado», diz-nos ainda João Valinho.
“Untitled I” revela, desde logo, o gosto pela utilização completa das respetivas alfaias: Nuno a esfregar e percutir cordas, Faustino a assumir-se como trave mestra, Valinho a fazer criterioso uso dos diversos elementos que constituem o seu “kit”. Segue-se “Untitled II” com as cordas da guitarra acústica atacadas de diversas formas, as ruminações de Faustino (em pizzicato e recorrendo ao arco para espessar a atmosfera) e a percussão sempre fecunda em detalhes. “Untitled III”, a peça mais extensa do disco, começa por continuar a trabalhar motivos que vão fluindo naturalmente e sem pressas, ganhando a espaços outra intensidade. Faustino e Valinho introduzem “Untitled IV”, que evolui adquirindo uma dimensão onírica, com a guitarra em dada passagem a soar como se de uma harpa se tratasse.
“Habitation” é um disco deveras interessante e cuja riqueza reclama vagar para se fruir na plenitude.
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Habitation (Phonogram Unit)
No Nation Trio
Jorge Nuno (guitarra); Hernâni Faustino (contrabaixo); João Valinho (bateria, percussão)