Whit Dickey Trio: “Expanding Light” (Tao Forms)
Tao Forms
“Expanding Light” é a estreia discográfica do novo trio do polifacetado baterista, compositor e improvisador Whit Dickey, ao lado de um dos seus mais longevos comparsas musicais, o saxofonista Rob Brown – a parceria estende-se já por mais de 30 anos – e do contrabaixista Brandon Lopez, músico em ascensão e que em 2018 nos ofereceu a solo o excelente “Quoniam Facta Sum Vilis” (por curiosidade, Lopez nasceu um ano antes do início da colaboração entre os outros dois). Dickey e Brown, cuja química está bem documentada, retomam aqui um formato que lhes é caro: lembremo-nos de “Transonic”, editado em 1998, no qual eram acompanhados por Chris Lightcap no contrabaixo.
Dickey lançou no ano passado o mui recomendável duplo álbum “Tao Quartets” (AUM Fidelity) – confesso que só tardiamente lhe prestei a atenção devida –, registo que, de alguma forma, marcou o seu ressurgimento criativo. Em cada um dos discos, explorou universos, se não antagónicos, pelo menos complementares: “Peace Planet” representa o Yin e “Box of Light” o Yang, vincando o cariz dual da gravação. Baterista e saxofonista estão nos dois e muito do que acontece passa naturalmente por eles.
Os dilemas primordiais entre luz e sombra, conhecido e ignoto, e o equilíbrio entre uma cumplicidade envelhecida em cascos de carvalho e a frescura das novas relações são algumas das dicotomias exploradas pelo baterista. De certa forma, neste “Expanding Light” é dada natural continuidade à música que se escuta em “Box of Light”, com Dickey a perseverar na exploração dos fotões que emanam tanto da relação telepática com o saxofonista como, agora, com o contrabaixista (no registo anterior quem assegurou a função foi Michael Bisio).
“Expanding Light” tem chancela da Tao Forms, editora fundada no final de 2019 e de que Dickey é diretor criativo e produtor executivo (o termo chinês “tao”, do qual deriva “taoismo”, significa “caminho” ou “princípio”, e também pode ser encontrado noutras filosofias e religiões chinesas – o taoismo, concretamente, designa a fonte, a origem e a força motriz por detrás de tudo o que existe.)
Discípulo do grande Milford Graves, Dickey despontou e evoluiu ao lado de figuras como David S. Ware, Matthew Shipp ou Ivo Perelman, e é há muito, por direito próprio, um nome fundamental da cena que mantém bem acesa a fornalha do free jazz da “downtown” nova-iorquina. O baterista descreveu a experiência de gravar este disco como alguém que «agarra incessantemente e com força o dragão pela cauda, sem se importar». O que nos é dado a escutar balança entre o abstrato e o tangível, num processo classificado pelo próprio como “free grunge”, dadas as assumidas influências rock de uns Nirvana no seu melhor (no cômputo das referências, mas efetivamente não na sua tradução prática) e do free de uma vida.
Na peça inaugural, “The Outer Edge”, o líder introduz e logo surge o saxofone de Rob Brown que desenha linhas meandrosas e com laivos melódicos, suportado pelo intenso tricô rítmico. Só mais tarde se junta o contrabaixo, contribuindo para uma pulsação viva e, diria, um certo “swing”. De atmosfera mais recatada, “Desert Flower” exibe os predicados de Lopez, que após dialogar intimamente com o baterista durante três minutos (com este a usar escovas), lança as bases para o saxofonista elaborar num registo mais repousado. Por estes exemplos, fica claro que é Dickey quem efetivamente comanda as operações, ainda que concedendo amplo espaço de manobra aos outros dois.
“Plateau” é marcada pelo uso inteligente que Lopez faz do arco, adensando a tensão dramática, que é sublinhada por um Brown assertivo (jogando com referências que parecem ir de Konitz a Ayler num piscar de olhos) e pela bateria minuciosa de Dickey, jamais almejando protagonismo intrusivo. A energética peça-título, a mais extensa do disco e o seu centro nevrálgico, mostra a secção rítmica em ebulição e a fornecer o suporte para o discurso pujante, mas cristalino, do saxofonista. Assinalável a passagem que deixa Lopez e Dickey sozinhos em cena e a desafiarem-se mútua e relaxadamente, até que o saxofonista reentra para um final em crescendo.
Em “Möbius”, porventura o píncaro da jornada, o contrabaixista retoma o arco e utiliza-o para complementar as propostas de Brown e as ruminações delicadas do baterista. Antecâmara para a peça final, ironicamente (ou talvez não...) intitulada “The Opening”, onde um Brown flamejante na forma como trabalha os agudos, sopra com agilidade e em articulação com a sustentação vulcânica que a dupla rítmica lhe proporciona. Nos 40 segundos finais, o baterista ruma ao silêncio.
“Expanding Light” é um ótimo disco que mostra como Whit Dickey permanece uma força criativa merecedora do mais amplo reconhecimento, pelo que continua a fazer com paixão e entrega.
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Expanding Light (Tao Forms)
Whit Dickey Trio
Whit Dickey (bateria); Rob Brown (saxofone alto); Brandon Lopez (contrabaixo)