João Pedro Brandão: “Trama no Navio” (Carimbo Porta-Jazz)
Quem ouvir este “Trama no Navio” sem conhecimento prévio do que se trata repara logo num factor que chega a ser, até, definitório: a elementaridade estrutural e das intervenções. Algo assim tão nu e cru só poderia ser intencional. Acontece que o disco tem uma história: esta mesma peça começou por ser uma encomenda da Orquestra Jazz de Matosinhos a João Pedro Brandão, para musicar a segunda parte, “Drama no Navio”, do filme “O Couraçado Potemkine”, de Sergei Eisenstein. Mais tarde, o saxofonista e flautista do Porto resolveu pegar na mesma composição e adaptá-la para um grupo bem mais pequeno – este com o pianista e organista (inclusive quando o órgão Hammond parece um sintetizador) Ricardo Moreira, o contrabaixista Hugo Carvalhais e o baterista Marcos Cavaleiro. A opção, em termos de arranjos e revisão da partitura, foi radical: tirou os artefactos bigbandísticos, reduziu a música à sua «espinha dorsal», para utilizar as suas próprias palavras, e com a contribuição dos seus companheiros fez uma leitura livre do que estava escrito.
Esta depuração é feita de espaços, transparências e detalhes que convidam a uma audição com auscultadores, mas preserva a sua natureza programática, ou seja, o carácter narrativo e dramático que é de esperar numa música visual que, necessariamente, vive muito da sustentação de atmosferas. Uma geral, congregando os 39 minutos da peça única, e várias mais incidentes que nos levam a querer localizar as passagens específicas com que coincidem na longa-metragem do realizador soviético. O resultado é deslumbrante e, apesar de se perceber que a música foi criada para acompanhar imagens em movimento e um enredo, solta-se inteligentemente dessa subordinação. Não é uma música ilustrativa e sim um filme para os ouvidos desenvolvido em paralelo com o histórico filme para os olhos. Actualíssima na abordagem, também ela está carregada de história: há passagens que ora nos remetem para o legado de John Coltrane ora para alguns aspectos das sonoridades da Blue Note e da ESP-Disk nos seus respectivos anos de ouro, e num momento ouvimos Brandão a tocar os seus saxofones alto e soprano em simultâneo, lembrando-nos o saudoso Roland Kirk.