Paulo Chagas / Nicola Guazzaloca / Lee Noyes: “Where Fear Ends” (Zpoluras)
Zpolura
«This is our truth. (…) This is our way of sharing art and culture.» É assim que se apresenta a “label” Zpoluras Archives, escolhendo a Internet como plataforma de edição. O trio deste “Where Fear Ends”, constituído por Paulo Chagas com Nicola Guazzaloca e Lee Noyes, músicos da Itália e da Suécia que têm acompanhado o périplo do oboísta e flautista (além de saxofonista e clarinetista, que não neste álbum) português pela música livremente improvisada, poderia utilizar as mesmíssimas palavras para se anunciar. Tem sido essa a prática destes improvisadores, uma prática de “do it yourself”, DIY, que lhes permite criar o que querem, quando querem e como querem com o único risco de, por causa dessa opção, serem marginalizados pelo próprio circuito institucional do jazz criativo e da improvisação.
Com a Covid-19 (as gravações foram realizadas na solidão das casas de cada um dos músicos, a muitas centenas de quilómetros de distância entre si, e só depois misturadas) maior relevância ganharam os aspectos positivos e negativos do empreendimento: a música que aqui ouvimos reforçou os seus contornos de resistência e urgência «nestes tempos de quase isolamento», mas também passou injustamente desapercebida. Tanto assim que, tendo sido publicada em Novembro de 2020, só agora demos por ela.
É, por vezes, difícil discernir o que vem do piano de Guazzaloca e da bateria de Noyes, pelo facto de o primeiro adoptar uma abordagem percussiva com foco na manipulação das entranhas do instrumento, regra geral por meio de preparações móveis, e de o segundo valorizar um trabalho textural que desconfigura as funcionalidades convencionais (começando pelas rítmicas) de um “drumkit”. Se Chagas também faz usos heterodoxos do oboé e da flauta, ora colocando-se num plano de produção pré-musical, noise, ora indo para além das possibilidades físicas desses aerofones, graças à aplicação de técnicas extensivas, é, no entanto, ele o único a utilizar fraseados, linhas sequenciais de lógica e mesmo melodias.
Ou quase: no final da derradeira peça, “To Look After”, o piano assume por instantes o papel que lhe foi destinado pelo jazz, se bem que na forma de súbitos e muito breves assomos motívicos, logo se retirando de cena depois de lançar esses pequenos (e, neste contexto, agradavelmente despropositados) petardos.
A música de “Where Fear Ends” é meditativa, só não caindo num registo melancólico e lírico porque as suas explorações tímbricas têm um carácter analítico, como se fosse descolando uma a uma as camadas da nossa colectiva psique, de certeza que com o objectivo de «contribuir para um mundo mais livre e agradável», outro dos motes da Zpoluras e deste grupo. Curioso é o facto de, a essa vertente clínica de análise e questionamento, se acrescentar uma outra: a “bricolage” sonora a três é fortemente especulativa, lança argumentos atrás de argumentos, parecendo que procura “convencer” a própria música a desvelar-se e desvendar-se. O que consegue por inteiro, para prazer dos nossos ouvidos.
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Where Fear Ends (Zpolura)
Paulo Chagas / Nicola Guazzaloca / Lee Noyes
Paulo Chagas (oboé, flauta); Nicola Guazzaloca (piano); Lee Noyes (bateria)