João Valinho / Luís Vicente / Marcelo dos Reis / Salvoandrea Lucifora: “Light Machina” (Multikulti Project)
Multikulti Project
Por esta altura já todos o sabemos: quando a polaca Multikulti lança um novo disco com capa de fundo vermelho e “lettering” a negro (ou vice-versa no caso dos álbuns com improvisadores espanhóis – regra geral catalães), esse álbum inclui necessariamente músicos portugueses. É difícil saber da intencionalidade da editora ou do seu “designer”, mas essa particularidade parece conotar a livre-improvisação ibérica com o anarco-sindicalismo ou o anarco-comunismo, até pelos motivos históricos que lhe servem de contexto (os da Guerra Civil Espanhola: recorde-se que a Catalunha foi temporariamente anarquista, até ser traída pelos leninistas e depois vencida pelas tropas de Franco). Se há alguma tendência para encontrar na prática improvisacional um essencialismo supostamente “libertário” do irrepetível e do intemporal, e isso está bem patente nas “liner notes” de “Light Machina”, o certo é que os próprios factores de impermanência e mutabilidade tanto da música improvisada quanto dos princípios anarquistas comprovam que a irrepetibilidade e a intemporalidade musicais não são, nem podiam ser, valores absolutos e inertes.
E tanto assim que, sem repetição (de motivos, de “ganchos”) e sem os equacionamentos implicados pelo facto de se tratar de uma arte do tempo (seja assumindo-o como fluxo ou linearidade ou contrariando-o por meio de uma ilusória espacialização) não há música enquanto metodologia organizativa dos sons, tendo sido essa, precisamente, a premissa do minimalismo norte-americano e dos seus derivados europeus. Pode a primeira geração da música improvisada, na sua utopia de criar uma “música não-idomática”, ter recusado em finais da década de 1960 as convenções do jazz, da generalidade da música popular e da música “erudita”, mas quando a própria tendência se tornou numa música idiomática (até o ideólogo do não-idiomatismo, Derek Bailey, contribuiu grandemente para tal desfecho) a repetição tornou-se, em alguma medida, um processo ou uma ferramenta, justificável pela própria ideia não-essencialista de liberdade como “modus operandi”.
O que ouvimos neste CD que junta os portugueses João Valinho, Marcelo dos Reis e Luís Vicente ao trombonista siciliano Salvoandrea Lucifora é uma comprovação do que está acima exposto: repetir e temporalizar não são necessariamente acções contra o carácter libertário da improvisação, designadamente daquela, como é o caso, que dispensa condicionantes escritas; são, pelo contrário, a comprovação de que nada é proibitivo, de que nenhuns tabus musicais restam, finalmente, na improvisação, de que a liberdade é, não uma utopia, mas uma práxis, não uma metafísica, mas um materialismo. As repetições de Marcelo dos Reis na guitarra são estruturais, fornecem esqueletos, compõem no momento, criam musicalidade, fazendo com que os voos livres de Lucifora ganhem uma ainda maior relevância, inclusive por assim se estabelecer um plano relacional e efectivamente interactivo. As alusões idiomáticas do mesmo dos Reis ao country & western, à folk, aos blues, bem como os típicos fraseados jazzísticos de Luís Vicente no trompete tornam-se tão válidas, tão fundamentais para a dramatização que a música também é enquanto “teatro sonoro”, quanto as texturas abstractas criadas na bateria por João Valinho.
O espectro assim aberto resulta naquilo que desde sempre se quis que a música improvisada fosse: uma experienciação anarquizante da música, um tipo de sociabilidade em forma artística. É isso, e tanto, que este disco nos proporciona, com as cores que representam tal propósito.
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Light Machina (Multikulti Project)
João Valinho / Luís Vicente / Marcelo dos Reis / Salvoandrea Lucifora
João Valinho (bateria); Luís Vicente (trompete); Marcelo dos Reis (guitarra eléctrica); Salvoandrea Lucifora (trombone)