João Sousa / José Lencastre: “Free Speech” (Partícula Records)
Partícula Records
Este “Free Speech” é o regresso às colaborações entre João Sousa e José Lencastre, desta feita sem outros músicos envolvidos. Ainda que, como acontece logo na primeira faixa, “Burmese Spring”, seja um trio o que ouvimos, com o saxofonista José Lencastre a desdobrar-se em dois na sobregravação de pistas. E é, também, um regresso à música improvisada, ao jazz criativo (há, claramente, motivos composicionais e uma assunção da linguagem jazzística) e à bateria por parte de João Sousa, que por estes dias se tem dedicado, sobretudo, à música dita “meditativa” com instrumentos como o sitar e a flauta bansuri. Nem sempre com resultados interessantes para estes ouvidos, pelo menos ao nível a que o músico nos tinha habituado e que agora novamente atinge. Em “Mahatma” ouvimos Sousa com a bansuri, e é como se se estabelecesse uma ponte de reconciliação entre a sua actividade na improv e a que desenvolve nos ashrams de yoga.
Neste álbum que celebra a liberdade e que foi lançado por alturas do 25 de Abril há toda uma dimensão política que parecia ter desaparecido da improvisação e do jazz nacionais, um factor que, por si só, justifica uma audição atenta do que aqui vem. Aliás, o tema “Marielle” não poderia ser mais explícito sobre esse alcance: trata-se de uma homenagem à vereadora do Rio de Janeiro, activista LGBTQ e socióloga brasileira Marielle Franco, que foi assassinada a tiro por partidários de Bolsonaro. Outros aliciantes são de apontar, sendo o primeiro o facto de em nenhum momento a dupla se situar na herança daquela outra que modelou a equação de um saxofone com uma bateria, a de John Coltrane e Rashied Ali.
O posicionamento de Sousa e Lencastre é totalmente outro, com exposição de pequenos elementos melódicos e rítmicos e sua exploração até ao limite das possibilidades quando são tão reduzidos os materiais em uso. Em vez de uma re-adopção da “estética do grito” do Coltrane tardio e de Albert Ayler, este duo que às vezes é trio prefere uma abordagem introspectiva e, sim, meditativa na melhor acepção do termo, pois convida-nos ao silêncio e à reflexão. Suave e calma a música não será, mas está uns bons patamares abaixo do expressionismo a rodos que passa por representativo de todo o free jazz. Aqui e ali entram alguns “atractores estranhos” de duração extremamente breve, funcionando como apontamentos ou cápsulas referenciais da universalidade do jazz, designadamente pulsações que nos remetem para África e “beats” de rock. Uns simbolizam as origens e os outros o alcance desta prática musical que, ao longo do tempo, foi esticando as suas molduras para integrar o mundo dentro de si e para se fazer valer como uma “fala livre”, um “free speech”. E bem que este disco fala…
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Free Speech (Partícula Records)
João Sousa / José Lencastre
João Sousa (bateria, bansuri); José Lencastre (saxofones alto e tenor)