André Matos: “Estelar” (Robalo)
Robalo
O ano de 2021 tem sido particularmente intenso para André Matos (n. 1981), guitarrista lisboeta baseado em Nova Iorque desde 2008. Depois de “Casa” e do monumental “On the Shortness of Life”, o músico acaba de publicar na Robalo mais um registo a solo, “Estelar”, que deve o nome ao único instrumento que utiliza na gravação, uma guitarra acústica Stella, pequena e de uma gama destinada a estudantes, fabricada em Chicago nos anos 1960. «Não é um bom instrumento, mas tem uma ressonância focada e rouca que me agrada. Comprei-a por 80 dólares a um “luthier” que se entretém a restaurar guitarras deste tipo. Tem muitas limitações no som, mas também na tocabilidade», diz o músico à jazz.pt.
A marca de guitarras Stella foi fundada nos Estados Unidos em 1899 e era inicialmente propriedade da empresa Oscar Schmidt, que em Nova Jérsia fabricava também bandolins, banjos e harpas. As guitarras Stella foram utilizadas por muitos músicos seminais, incluindo Robert Johnson, Leadbelly, Charlie Patton e Doc Watson. Kurt Cobain, dos Nirvana, gravou numa Stella a canção “Polly” do álbum “Nevermind”. A marca foi comprada pela empresa Harmony em 1939, tendo sido descontinuada em 1974.
Numa manhã de maio, no seu reduto nova-iorquino, André Matos entregou-se à exploração das possibilidades sónicas da guitarra, mais amplas do que uma aproximação simplista poderia fazer supor, utilizando apenas um “slide” de forma crua e espontânea, algo que tem vindo a acontecer cada vez mais. «Sentei-me uma manhã para experimentar um novo microfone que tinha adquirido. E estive a gravar faixas umas duas ou três horas. Mais tarde ouvi e gostei do resultado, fiz uma seleção e saiu disco.»
Dez peças totalmente improvisadas – na medida em que não foram preparadas previamente, resultando de um processo de experimentação com diferentes afinações –, embora adquiram por vezes o formato de canção, sobretudo quando foi acrescentada uma segunda guitarra. A natureza das sonoridades que foram emergindo acabou até por surpreender o próprio músico. São, como lhes chama, composições improvisadas ou “comprovisações”, termo que não inventou, mas que admite descrever o que aqui logra, sem foguetórios ou exibições de virtuosismo inócuo.
Estamos perante o que de essencial já encontrávamos na longa série de registos solísticos anteriores do guitarrista, o meticuloso labor com que desenvolve melodias, timbres e texturas, embora adquirindo toda uma nova dimensão proporcionada pelas características peculiares do instrumento. Em nota pessoal publicada na sua página do Bandcamp, explica que foi capaz de captar um momento de unidade entre ele próprio e a guitarra, e que a música surgiu defronte de ambos, tendo ele sido apenas uma espécie de «facilitador». «De uma maneira geral, esteve presente uma dimensão do acaso, daí a minha sensação. Sinto que nessa manhã houve um espaço em que entrei e onde tudo ressoou.»
Se o som da Stella nos remete pavlovianamente para um imaginário americano, algo de muito português acontece em vários momentos. «Neste momento sinto-me tanto guitarrista de blues como de outro estilo qualquer. Está muito presente. Por outro lado sou português, não num sentido patriótico, mas no que toca ao espaço e ao tempo, e às minhas memórias de um e de outro.» Da melancolia sofrida de “Ao Relento” à serenidade de “Aguda” ou “Luz Súbita”, passando pelas ruminações de “Pensamentos”, a melodia assombrada de “Só” e a atmosfera sombria da belíssima “Chuva Miúda”. A par das deambulações mais exploratórias de “Fadiga do Concreto” (em que contou com a ajuda de um “post-it” colocado entre algumas cordas para criar o som percussivo) e do recorte mais “bluesy” de “Plantas Medicinais”.
Configurando uma importante etapa no longo processo de auto-indagação e de partilha de emoções que André Matos tem vindo a empreender no mais solitário dos contextos, “Estelar” é um álbum que reclama ser desvendado com vagar. E a história não acaba aqui.
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Estelar (Robalo)
André Matos
André Matos (guitarra)