Nelson Cascais: “Remembrance: The Poetry of Emily Brontë” (Robalo)
Robalo
A história deste disco começa a contar-se no momento em que Nelson Cascais (n. 1973), ao escutar “Wuthering Heights”, de Kate Bush, de que é admirador incondicional, entrou em contacto com o universo obscuro e enigmático da grande poeta inglesa Emily Brontë (1818-48). Só mais recentemente, porém, descobriu a sua poesia, também ela profunda e dramática, fruto de uma vida fortemente marcada pela tragédia, pela solidão e pelo sofrimento (a morte da mãe, de duas irmãs e de um irmão, tendo ela própria falecido com apenas 30 anos).
«Fascina-me a humanidade, a fragilidade e a profundidade com que ela trata destes estados da alma presentes nas vidas de todos nós e, consequentemente, em tanta criação artística, e o modo como o faz de uma forma nem sempre óbvia, com um sublime uso das palavras e com uma ousadia, uma irreverência e uma modernidade invulgares para uma mulher no Yorkshire do século XIX», diz o músico à jazz.pt.
“Remembrance: The Poetry of Emily Brontë”, o sexto disco de Nelson Cascais na condição de líder, surge longos oito anos depois de “A Evolução da Forma”, em decateto. Nele, o contrabaixista e compositor surge acompanhado por um conjunto de músicos de diferentes gerações e personalidades musicais: cantor/declamador (também, noutros contextos, dotado guitarrista) Cláudio Alves, o saxofonista Ricardo Toscano, o vibrafonista Eduardo Cardinho, o pianista Óscar Marcelino da Graça e o baterista João Lopes Pereira.
Inspirado neste universo muito particular, fundado na sensação de perda, germinou a ideia de desenvolver um projeto de cruzamento entre a poesia de Brontë e as suas próprias composições, em que a palavra seria usada como mais uma pedra no xadrez improvisacional. Para além de virtuoso instrumentista, Cascais é um compositor de pena lírica e refinada – faceta que há muito lhe reconhecemos – capaz de traduzir na perfeição o peso melancólico, a tristeza e o desespero que emanam das palavras de Brontë: «Escrevo o que a minha imaginação me deixa ouvir», sublinha.
«A minha ideia inicial foi a de usar a palavra como mais um elemento musical, que esta participasse ativamente no “interplay” da banda, na improvisação coletiva, que os poemas fossem expostos de uma forma livre e interativa com a banda. O desafio teve mais que ver com criar os ambientes certos para cada um dos poemas e o de garantir, especialmente nas peças mais livres, que os textos se mantivessem percetíveis, que não fossem obliterados pela restante música», complementa o músico.
O álbum abre com as notas cavas do contrabaixo que dão o mote para “The Night is Darkening Round Me”, de recorte camerístico, onde estrutura e liberdade se miscigenam, e fica quase tudo dito: saxofone e piano constróem um motivo, suportados pelo vibrafone esparso e a bateria detalhadíssima. No timbre doce da voz de Alves escutamos as palavras torturadas: «Clouds beyond clouds above me / Wastes beyond wastes below / But nothing drear can move me / I will not, cannot go.»
À belíssima “Remembrance”, que brota só com voz e piano e depois ganha outra densidade, segue-se “Ellis Bell”, onde em torno da linha de contrabaixo se entrelaçam os demais instrumentos, com destaque para um extraordinário solo de Toscano, músico que continua a impressionar pela inteligência com que aborda uma paleta sónica cada vez mais diversa.
Somos então rodeados pelo negrume avassalador de “Shall Earth No More Inspire Thee” («I’ve watched thee every hour / I know my mighty sway / I know my magic power / To drive thy griefs away.») Da tranquilidade de “Intimations of Mortality”, mais próxima de uma balada “clássica”, destaca-se o saxofone aveludado e o vibrafone de Cardinho e de “All Hushed And Still Within The House” ressalta a associação a certa pop sofisticada (de novo Bush), cortesia sobretudo dos sintetizadores de Óscar Graça. Ao crescendo de intensidade, segue-se uma função que tende para o silêncio...
O hiperlirismo de “Fall, Leaves, Fall” («Fall, leaves, fall / die, flowers, away») bebe na fluidez inquieta do piano de Graça e na notável segurança transmitida pelo contrabaixista, que também se escutam no instrumental “Gondal”, aqui avultando igualmente a riqueza da práxis baterística de um cada vez mais decisivo João Pereira. A dedicatória direta à poeta é-nos servida, de forma soberba, no longe de exaurido formato de trio piano-contrabaixo-bateria. O pano cai em “She Dried Her Tears”, tocante vinheta onde se escutam as palavras derradeiras: «With that sweet look and lively tone / And bright eye shining all the day / They could not guess, at midnight lone / How she would weep the time away.»
Porventura o trabalho mais audaz de Nelson Cascais, “Remembrance: The Poetry of Emily Brontë” é de audição indispensável e segue direito para a safra memorável de 2021. Há discos tristes, como este, que nos fazem imensamente felizes.
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Remembrance: The Poetry of Emily Brontë (Robalo)
Nelson Cascais
Nelson Cascais (contrabaixo, composição); Cláudio Alves (voz); Ricardo Toscano (saxofone alto); Eduardo Cardinho (vibrafone); Óscar Marcelino da Graça (piano, sintetizador); João Lopes Pereira (bateria)