Manuel Linhares: “Suspenso” (Carimbo Porta-Jazz)
Carimbo Porta-Jazz
Bem sabemos que o país jazzístico não é particularmente frutígero em vozes masculinas. No topo das exceções que confirmam a regra está Manuel Linhares, cantor e compositor nascido na cidade da Horta, Açores, mas desde muito novo a viver no Porto, e que agora apresenta o seu bem-vindo terceiro disco, “Suspenso”, no Carimbo Porta-Jazz. A jazz.pt já o escutou.
Para além das passagens pela Escola de Jazz do Porto, Taller de Músics (Barcelona) e Jazz Institute of Berlin, e da licenciatura em Canto Jazz pela ESMAE, aspeto não despiciendo no percurso de Manuel Linhares (n. 1983) é ter integrado, entre 2007 e 2010, o grupo a cappella Canto Nono, sob rigorosa direção artística de José Mário Branco, o que lhe permitiu munir-se de um arsenal técnico e estético capaz de o levar para onde quisesse. Sim, o tempo é uma máquina veloz. Parece que foi ontem, mas escutei-o pela primeira vez em 2013 – acompanhado pela Orquestra Angrajazz – e desde logo impressionou-me o seu registo elegante, de travo “sinatraniano”, pela atenção às palavras (nas línguas de Camões e Shakespeare), dicção cuidada e rara noção de tempo, sem tiques ou malabarismos histriónicos.
Depois do inaugural “Traces of Cities” (2013) e de “Boundaries” (2019), “Suspenso” é o seu terceiro disco, com chancela do Carimbo Porta-Jazz, braço editorial da Associação Porta-Jazz, mais relevante a cada dia que passa. O “modus operandi” que presidiu à gestação do disco, em tempos estranhos, está logo refletido no título: «Em suspenso: o mundo, o tempo, a respiração. Resistir como ato de criação. Criar como ato de resistência.» O cantor aposta em material original e faz-se acompanhar por um elenco de músicos nacionais e internacionais que trabalharam parcialmente à distância, desafiando os limites impostos pela pandemia.
A gravação aconteceu no Centro de Alto Rendimento Artístico (CARA), quartel-general da Orquestra Jazz de Matosinhos, com o cantor a ser acompanhado por um núcleo base formado pelo pianista Paulo Barros, o contrabaixista José Carlos Barbosa e o multi-instrumentista brasileiro António Loureiro, que também produziu musicalmente. Basta uma primeira audição comparativa para constatar um notório amadurecimento artístico pessoal face aos registos anteriores, não apenas no plano das letras, mas, e sobretudo, ao nível das composições, ao mesmo tempo sóbrias e desafiadoras, cruzando sem pruridos elementos filiados no jazz ou em certa pop sofisticada.
O tema de abertura, “Marcha Lenta” – escolhido como avanço do álbum –, assenta na melodia exposta pelo piano e exibe um balanço sereno, contrastante com a maior intensidade de “Intempérie”, ativada pela baixo elétrico de Frederico Heliodoro e com luxuoso arranjo. Em inglês, Linhares canta um ameno “Isolation 4”, mas é em “Oxigénio” (tema de autoria de António Loureiro), no diálogo entre a voz e o luminoso saxofone alto de David Binney, convidado especial que empresta mais do que o nome, que o interesse sobe verdadeiramente.
A fasquia já está alta e “Lamento” é-o sem recurso a quaisquer palavras, demonstração plena da maleabilidade da voz do cantor. “Jogo de Sombras” exibe um notável arranjo do argentino Guillermo Klein para o Coreto Porta-Jazz (sempre a alto nível, qualquer que seja o contexto) e “Sentimental Illness”, também com o Coreto, é de audição viciante. Na beleza encantatória de “Dança Macabra”, com letra da letrista e rapper Capicua, Linhares canta exemplarmente: «Sabem o que acontece quando a lava desce e encontra o mar / Se ela arrefece, ele aquece, ele ferve, aquece a fervilhar.» Hugo Raro acrescenta toda uma dimensão etérea com o seu Fender Rhodes. A cortina desce ao som da tranquilidade límpida de “Suspended”, epílogo para um belo álbum que, com sólidos argumentos, finalmente guinda Manuel Linhares para um merecido lugar na primeira linha do jazz nacional.
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Suspenso (Carimbo Porta-Jazz)
Manuel Linhares
Manuel Linhares (voz e composição); Paulo Barros (piano); José Carlos Barbosa (contrabaixo); António Loureiro (bateria, sintetizadores, baixo elétrico, composição e arranjos); David Binney (saxofone alto); Frederico Heliodoro (baixo elétrico); Rubinho Antunes (trompete e fliscorne); Alexandre Andrés (flauta transversal); Coreto Porta-Jazz [João Pedro Brandão (saxofone alto e flauta); Rui Teixeira (saxofone barítono); José Pedro Coelho e Hugo Ciríaco (saxofone tenor); Susana Santos Silva (trompete); Ricardo Formoso (trompete e fliscorne); Andreia Santos e Daniel Dias (trombone); AP (guitarra); Hugo Raro (piano e Fender Rhodes); José Carlos Barbosa (contrabaixo); José Marrucho (bateria)]