Harry Christelis & Pedro Velasco: “Scribbling” (Ubuntu Music)
Ubuntu Music
Primeiro produto de um consórcio criativo assinado por dois guitarristas e manipuladores de parafernália associada, Pedro Velasco e Harry Christelis, “Scribbling" convoca um alargado leque de referências que vão do jazz a paisagens devedoras de certo rock progressivo, melodias folk, ambiências eletrónicas e texturas mais exploratórias. A jazz.pt já o escutou.
Antigo aluno de Mário Delgado, quem no início o encaminhou para os domínios do jazz e da música improvisada, e de Bruno Santos, o português Pedro Velasco (n. 1979), perante a exiguidade de oportunidades para prosseguir estudos superiores, decidiu em 2003 rumar à capital britânica, para mais tarde se licenciar em Jazz na Universidade de Middlesex. A rede de amizades que então teceu permitiu-lhe cimentar um lugar na cena londrina, de que faz parte há quase duas décadas, tocando com músicos como Gilad Atzmon, Noel Taylor (Splatter), Kit Downes, Binker Golding, Ruth Goller e Julie Kjaer, apenas para nomear alguns. É líder de formações como Pedro Velasco Trio, Akimbo e Machimbombo, onde o foco é a música improvisada, nas suas diferentes declinações, do free jazz a formas mais tradicionais.
Amigos comuns mediaram, em 2016, o encontro com Harry Christelis (n. 1988) (Moostak Trio, Rubber Walrus Trio, Jamie Doe). Logo numa primeira sessão de trabalho ficou claro que nascia ali uma química musical, que levou a que continuassem a tocar regularmente em duo, prescindindo de outras companhias, partilhando composições e desenvolvendo uma abordagem individual de tocarem juntos. «A nível mais pessoal, tocar com o Harry é como ter uma conversa íntima com um grande amigo de há longa data. Tudo pode ser dito sem receio de julgamento, ambos ouvimos atentamente o que o outro "diz" e riscos podem ser tomados, porque ambos sabemos que o outro vai lá estar de braços/ouvidos abertos», salienta o guitarrista português à jazz.pt.
Sendo o culminar de anos a experimentarem ideias, “Scribbling”, gravado em dezembro de 2020, revela uma abordagem ampla e congregadora de elementos de diferentes tabuleiros sonoros. Para Velasco, o álbum representa não apenas essa intimidade musical, mas também as influências musicais que partilham. «Isso levou a que exista uma grande variedade não só de estilos, mas também da exploração das possibilidades sonoras que duas guitarras elétricas e seus efeitos podem criar», completa o músico.
Integram o disco 11 peças, das quais cinco são da autoria do português e três do inglês, sendo que as restantes pedem meças ao Tratado de Windsor. Estas últimas, de pendor mais exploratório – “Scribbling”, “Wool” e “Flash” – são improvisações livres baseadas num processo de ação/reação aos respetivos discursos. Sobre tapete atmosférico criado por Christelis, emerge em “Paul’s Closet” uma melodia de certa forma devedora do universo sonoro de Paul Motian (o próprio título foi inspirado pelo blogue “Uncle Paul’s Jazz Closet”, o arquivo musical do músico norte-americano na internet). Em “Time”, outra linha melódica de filigrana conduz-nos por nova jornada introspetiva, numa toada esperançosa, verdadeiro antídoto contra a incerteza motivada pelos tempos estranhos que vivemos.
Peça resgatada aos confins da gaveta de Velasco, “Charlie’s Dreamtime” exibe um travo mais bluesy, próximo de um Bill Frisell mais lacónico. Já “Gin”, saída da pena de Christelis, bebe muito da tradição folk, a que uma harmonia cromática acrescenta profundidade. Na sua tranquilidade dolente, “Nos Entretantos do Silêncio” é uma bela peça, cuja melodia vai sendo gradualmente complementada com interjeições abstratas da segunda guitarra (o uso dos pedais traz à memória David Gilmour e Mário Delgado, distintos utilizadores dessa maquinaria), tanto interessando as notas tocadas como aquelas que não o são.
“Wild Coast” é tudo menos selvagem, espécie de contraste entre pensamentos meditativos frente a um oceano encrespado. Tudo gira em torno de uma só nota, com a harmonia em movimento a injetar-lhe nova vida a cada momento. Em “Valsa Destes Tempos” descortina-se evidente “portugalidade”, expressa desde logo no lirismo – a peça foi escrita em 3/4 (daí o “valsa”), embora gravada em 4/4 –, remetendo o título para um jogo de palavras a partir de “Valsa de Outros Tempos”, porventura a peça mais conhecida de Gonçalo Paredes, avô de Carlos Paredes. Encerra o álbum “LD13”, décima terceira composição escrita por Christelis durante o confinamento: quando o espaço de movimentação doméstica era limitado, alargaram-se as paisagens sonoras.
“Scribbling” revela-nos o cosmos sonoro, ao mesmo tempo íntimo e vasto, que Harry Christelis e Pedro Velasco perscrutam em conjunto.
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Scribbling (Ubuntu Music)
Harry Christelis & Pedro Velasco
Harry Christelis (guitarras elétricas, efeitos); Pedro Velasco (guitarras elétricas, efeitos)